Em entrevista, o Professor Dr. Carmino António de Sousa, ex-secretário estadual de Saúde de São Paulo (1993-94) e acadêmico, compartilhou com os pesquisadores Nelson Ibañez, Olga Alves Faberge, Mário Gustavo Mayer, Marcelo Lopes e Yvone Kasuko Yamaguchi sua rica jornada profissional e as experiências que moldaram sua visão sobre a saúde pública. A conversa, permeada por reflexões profundas e análises criteriosas, abriu caminhos para entender a complexidade da gestão da saúde em um dos maiores estados brasileiros, destacando as nuances e desafios enfrentados por um líder no cerne das transformações do sistema de saúde.

O professor Carmino, aborda os bastidores de sua gestão durante um período crítico da saúde pública em São Paulo. Ele detalhou as dificuldades e os sucessos na implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) no estado, enfatizando a importância de políticas integradas e o papel crucial de colaborações interinstitucionais. Sua perspectiva sobre a descentralização do SUS e os desafios da implementação dessas políticas iluminaram o caminho percorrido pelo sistema de saúde paulista, oferecendo uma visão clara das complexidades inerentes à administração pública em saúde.

Além disso, o Professor Carmino abordou a importância da integridade e da gestão ética, refletindo sobre como esses valores guiaram sua carreira e impactaram suas decisões enquanto secretário. A entrevista também revelou sua habilidade em navegar o terreno político e burocrático, mantendo-se firme diante de desafios como a epidemia de HIV e a gestão de crises sanitárias. Suas experiências, contadas com sinceridade e profundidade, ofereceram uma visão abrangente de sua abordagem à gestão da saúde e às políticas públicas.

Por fim, o professor Carmino compartilhou suas considerações sobre a transição de sua gestão e a continuidade das políticas de saúde, destacando a relevância do trabalho em equipe e o respeito à cultura institucional. Suas palavras, marcadas por uma clareza de pensamento e uma profunda compreensão do setor, não só retrataram o cenário da saúde pública no passado, mas também lançaram luz sobre os desafios e oportunidades para o futuro da saúde pública no Brasil.

Professor Dr. Camilo António de Sousa, poderia nos contar sobre a sua trajetória profissional?

Carmino António de Sousa: Bom, Nelson, muito obrigado. Primeiramente, quero cumprimentar a Olga, Ivone, Marcelo e Mário pela honra de estar aqui. Sou professor titular da Unicamp desde 2001, mas minha carreira começou dentro do SUS (Sistema Único de Saúde), mais especificamente no programa de Sangue e derivados. Formei-me em 1975 e, após a residência, fui contratado como professor assistente na Unicamp. Em 1985, o Prof. Pinotti, então reitor, me convidou para dirigir o Hemocentro da Unicamp e, posteriormente, fui convidado por ele mesmo, à época secretário estadual da saúde, para a cuidar da GEPRO do programa de sangue e derivados da secretaria. Esse convite ocorreu em meio à pandemia do vírus HIV, então conhecido como HTLV. Foi um período desafiador, perdemos metade da nossa população de hemofílicos, algo trágico para nossa especialidade. O programa foi um sucesso, com impactos duradouros. O Dimas, diretor presidente do Instituto Butantan, foi um colega essencial nesse período. Em 1993, fui convidado pelo governador Fleury para ser secretário de Estado da Saúde, uma posição que balanceei com meu papel na Unicamp.

Um momento marcante foi em 1993, durante a inauguração da Unidade de Transplante de Medula Óssea na Unicamp. O governador Fleury, que eu não conhecia pessoalmente, visitou a inauguração e ficou impressionado com nosso trabalho. Dias depois, fui convidado para ser o terceiro secretário de saúde do governo Fleury. Havia um dilema entre escolher um perfil mais técnico ou político para o cargo. Posteriormente fui chamado para uma reunião no palácio e, embora estivesse meio deslocado, essa reunião definiu minha nomeação para o cargo.

A reunião era com o Ministério da Saúde?

CAS: Sim, era com o Ministério da Saúde, mais especificamente a Secretaria de Assistência à Saúde. Não consigo lembrar o nome do secretário da época, mas sei que ele era um deputado federal e médico de Minas Gerais. Ao final da reunião, o governador me questionou se eu sabia por que estava lá. Expliquei que, se fosse convidado, aceitaria por ser servidor público e ver isso como parte do meu trabalho em gestão pública. Caso contrário, continuaria meu trabalho como antes. Eu nunca busquei ser secretário de Saúde e estava ciente das minhas capacidades.

Logo após, fui convocado para um encontro com o governador e vários deputados, onde fui oficialmente convidado para ser secretário. Antes de aceitar, esclareci duas coisas: nunca tive filiação partidária e não conhecia nenhum dos deputados presentes. Era uma posição desafiadora, especialmente por não ter experiência política e ser relativamente jovem para o cargo.

Durante a minha gestão como secretário, enfrentei desafios enormes, como a administração de contratos públicos em um período de instabilidade econômica e mudanças de moeda. A cerimônia de posse foi discreta, marcada pela saída traumática do professor Amato.

Como foi a transição com o professor Amato na Secretaria de Saúde?

CAS: A transição não foi tranquila. O professor Amato estava muito magoado e nem compareceu na transmissão do cargo. Algo sério deve ter acontecido entre ele e o governo, causando sua saída abrupta e magoada. Ele não conversou comigo após isso. Com o tempo, tudo se atenua, e mais tarde, tivemos contato, mas naquele momento, a transição foi realmente traumática. Ele não pediu demissão, foi demitido, e em cargos de confiança, isso é algo natural. Não houve uma cerimônia de transmissão de cargo, o que é habitual na secretaria. Conheci o governador em junho, na inauguração da unidade de transplante, e assumi em julho, ficando até o final do governo.

Durante meu mandato, passamos por quatro moedas, começando com uma e terminando com o Real. Duas políticas públicas, em minha opinião, deram muito certo no Brasil: o Real e o SUS. Elas trouxeram estabilidade ao país. Minha formação é em hematologia, trabalhando principalmente em câncer hematológico, linfomas, leucemias e transplante de medula óssea. Minha carreira acadêmica se concentra nessa área. Durante a epidemia de HIV, alguém precisava cuidar do sangue, e essa tarefa coube aos hematologistas, um modelo único no mundo que se mostrou bem-sucedido.

Como você enfrentou os desafios iniciais na secretaria?

CAS: A Secretaria de Saúde não era uma surpresa para mim. Eu já circulava pelos gabinetes e conversava com os secretários, então conhecia bem a dinâmica. Levei poucas pessoas comigo, apenas dois procuradores da Unicamp, Lenir e Elba, além de um assessor de imprensa espetacular da FURG, Antônio Marcos, e um assessor militar, inicialmente anônimo e depois o Coronel Chicão. O adjunto era um colega hematologista, Jordão, e o chefe de gabinete era Ênio Sevilha, que já havia trabalhado com o Professor Pinotti.

Quando assumi, enfrentávamos a epidemia de cólera, além do HIV. São Paulo teve poucos casos de cólera, acredito que nossa eficiência em fornecer água tratada mesmo em áreas vulneráveis foi crucial para evitar a propagação.

Os desafios institucionais eram enormes, pois o SUS era recente, criado na Constituição de 1988 e regulamentado em 1990. Apesar das dificuldades econômicas, com a receita do estado em baixa e alta inflação, havia o desafio de estruturar o SUS. Isso incluiu a criação dos conselhos de Saúde, a Comissão Inter Gestora Bipartido e o Código de Saúde de São Paulo, o primeiro do tipo no estado, tudo desenvolvido em meio a dificuldades administrativas e econômicas.

Ao final do meu mandato, houve uma transição de governo, e a eleição foi vencida por Mário Covas. Essa mudança de governo trouxe desafios adicionais, especialmente na articulação política e na relação entre governo estadual e municipais.

Como foi a influência das diretrizes do Ministério da Saúde na organização da secretaria, e como você lidou com a relação da secretaria com o Ministério e as greves na saúde de São Paulo?

CAS: Vamos separar os assuntos. O Estado de São Paulo sempre foi autossuficiente, e isso gerava uma certa resistência contra São Paulo em outros estados. A relação com o Ministério da Saúde não era fácil, mas tive sorte porque o secretário de Assistência à Saúde na época era Gilson Carvalho, um grande pioneiro do SUS e paulista. Havia conexões pessoais que ajudaram muito nesse processo, especialmente em questões institucionais.

Por exemplo, a primeira lei do Conselho Municipal e Estadual de Saúde em São Paulo não seguia as diretrizes federais, então tivemos que trabalhar para refazer a lei. Conseguimos tornar o Conselho paritário, o que foi um grande avanço. Essas ações ajudaram a amenizar o mal-estar com o governo federal e aproximaram a secretaria do Ministério. Naquela época, acredito que a secretaria tinha mais protagonismo do que hoje, com mais controle sobre o sistema de saúde.

Sobre a terceirização, na nossa época, a maioria das unidades de saúde era tocada por servidores públicos e quase nada era terceirizado. Isso mudou ao longo do tempo, e hoje muitas unidades são geridas por organizações sociais. No entanto, a secretaria ainda mantém seu papel, embora o SUS opere muito através dos municípios.

Quanto às greves, curiosamente, não tive nenhuma durante o meu período. Acredito que o sucesso nesse aspecto se deveu a uma boa comunicação e negociação. Eu sempre conversei muito com os principais atores da saúde, o ‘quadrilátero da saúde’, que incluía comandos sindicais e associativos. Isso incluía a Associação dos Funcionários do HC, por exemplo. Cada ameaça de greve era tratada com seriedade, buscando entendimento e soluções.

A inflação da época era um desafio constante. Com 45% ao mês e receitas baixas, era difícil reajustar salários. A negociação era quase constante, primeiro com as associações e depois com os sindicatos. Esse método de abordagem me ajudou a evitar greves, apesar das condições desafiadoras.

Aprendi que a greve é algo imprevisível e potencialmente danoso. É fundamental saber a força que você e o outro lado têm. Portanto, evitá-la sempre foi o melhor caminho. No meu período, lidamos com muitas ameaças de greve, mas nenhuma se concretizou. E essa habilidade de negociação e diálogo foi algo que levei para minha gestão posterior como secretário de saúde em Campinas, onde também não enfrentamos greves.

Olhando para trás, considerando os desafios que enfrentou, quais seriam os principais avanços e obstáculos durante o seu período na Secretaria de Saúde?

CAS: Eu acho que os maiores avanços foram, de fato, institucionais. A implantação dos conselhos, a adoção de uma nova forma de gerenciamento e a aproximação com os municípios foram fundamentais. No SUS, é essencial trabalhar em complementariedade; não se pode agir sozinho. Não existe uma hierarquia onde a Secretaria de Saúde dita regras aos municípios. Os entes federados são autônomos e independentes conforme estabelecido pela Constituição. Portanto, tudo precisa ser pactuado, discutido e negociado.

Este período foi produtivo, conseguimos avançar nesses aspectos, mesmo diante de um cenário político desafiador. Havia um clima de resistência, especialmente de setores mais à esquerda na saúde naquele momento. Nesse contexto, acredito que conseguimos realizar um trabalho significativo, fortalecendo a estrutura e a funcionalidade do SUS em São Paulo.

Como foi gerenciar a descentralização e a regionalização na Secretaria de Saúde, considerando as tensões entre a autonomia dos recursos municipais e a coordenação estadual?

CAS: Primeiro, é importante notar que as ERSAS (Escritórios  Regionais de Saúde) eram mais fortes do que as DRSs (Diretorias Regionais de Saúde). Entre o secretário e as ERs, tínhamos coordenadores macrorregionais. Esses coordenadores trabalhavam de perto comigo e estavam sempre no gabinete. A questão era: como saber quem é a pessoa certa para dirigir regiões tão diversas como Presidente Prudente ou Vale do Ribeira? Nesses cargos, a influência política é uma realidade, mas minha estratégia era deixar claro que, uma vez indicados, eles eram meus subordinados e deveriam seguir as diretrizes da Secretaria.

Eu aprendi rapidamente que nenhum político consegue manter um indicado se este não estiver desempenhando bem. Muitas vezes, tive que negociar com os parlamentares para substituir algum diretor ou coordenador. A política era: ‘sugira três nomes e eu escolherei um’. Trabalhar junto com os parlamentares para escolher o diretor era eficaz e ajudava a manter o foco institucional.

Foi um período desafiador, pois era um governo já em fase avançada e havia problemas anteriores, como a questão do Carandiru e um cenário econômico complicado. Era uma conjuntura na qual era difícil ter projetos de longo prazo. A estratégia era trabalhar institucionalmente, focando na legalidade e na observância dos pilares da administração pública: licitações e concursos.

Sobre as dificuldades de financiamento, a transição para o Real foi um momento difícil. A saúde sofreu um corte significativo em seu financiamento, uma ‘tungada’ que começou ali e prevalece até hoje. Perder 18 a 20% do orçamento em moeda forte foi devastador. Isso marcou o início das dificuldades econômicas do SUS, algo que não se sentia tanto na época de hiperinflação. Cada dia tinha sua própria moeda e as correções eram feitas diariamente.

Resumindo, o maior desafio foi manter a institucionalidade da secretaria em meio a um cenário político e econômico instável, garantindo que as diretrizes fossem seguidas apesar das influências políticas. Foi um período de muitos desafios, mas também de aprendizado e avanços institucionais significativos.

Como você vê o financiamento da saúde, especialmente a participação do governo federal no SUS?

CAS: O orçamento da Seguridade Social nunca financiou adequadamente a saúde, essa é a verdade. A crise da Previdência, que não é recente, acabou consumindo a maior parte dos recursos da seguridade. O governo federal nunca se comprometeu com um percentual mínimo para a saúde. Enquanto São Paulo destina 12% do seu orçamento para saúde, atuando como um teto, e os municípios têm um piso de 15%, chegando até 40% em alguns casos, o governo federal não tem um percentual definido para sua contribuição. Ao longo dos anos, a participação federal no financiamento do SUS diminuiu drasticamente, de cerca de 70% para algo em torno de 28 a 30% hoje.

Essa redução significa que uma parte considerável dos recursos arrecadados pelos estados e municípios acaba sendo destinada à saúde, compensando a falta de recursos federais. Em qualquer país, o financiamento da saúde é, em grande parte, responsabilidade do governo federal ou central. Normalmente, aos municípios cabe a governança local, a atenção primária, mas o financiamento substancial deveria vir do nível federal. Até nos Estados Unidos, com sua abordagem mais liberal, o financiamento da saúde é majoritariamente federal.

Como foi a transição da Secretaria de Saúde para o secretário Guedes após sua gestão?

CAS: A transição para o Guedes foi realizada. No início, como é comum em mudanças de governo, especialmente após uma eleição, havia certos ruídos e tensões. Aqueles que ganham uma eleição e os que saem derrotados deixam sempre um clima de incerteza no ar. Mas quero enfatizar que, com o passar do tempo, esses ruídos se dissiparam e acredito que houve uma compreensão maior sobre as dificuldades enfrentadas na época.

O governo Fleury, no qual estive inserido, não foi um período fácil. Foi, de fato, bastante complicado devido a uma série de eventos desafiadores. Tivemos a questão do Carandiru, que foi um ponto de enfraquecimento significativo para o governo, além da instabilidade política com o impeachment do presidente e o governo transitório subsequente. Outro aspecto desafiador foi a situação do Banespa, que teve um impacto traumático para o Estado. Esses eventos moldaram o cenário em que a gestão foi concluída e influenciaram a transição para o novo secretário.

Quero deixar claro que, durante minha gestão, nunca recebi do governador qualquer pedido que fosse fora da lei. Essa integridade foi crucial para mim, especialmente por ser professor universitário e valorizar minha contribuição à sociedade. O governo Fleury, apesar dos desafios, não foi marcado por corrupção, e isso foi fundamental para a continuidade do trabalho.

Na Secretaria de Saúde de Campinas, onde fiquei por oito anos, também mantive essa postura. Acredito que a melhor maneira de se proteger contra corrupção é se blindar, recusando-se a participar de qualquer ato indevido. Essa atitude me permitiu trabalhar com tranquilidade, sabendo que estava fazendo o correto.

Sobre a vida em São Paulo, optei por não me mudar para lá. Eu viajava todos os dias de Campinas para São Paulo, o que era exaustivo, mas necessário. Essa decisão me poupou de muitas complicações e me permitiu focar no trabalho. E, apesar dos desafios, sempre tive um bom relacionamento com os funcionários e secretários subsequentes, mantendo uma relação de respeito e amizade.

Em retrospecto, acredito que a experiência na Secretaria foi extremamente valiosa. Aprendi muito sobre gestão, comunicação e como lidar com desafios complexos, como a questão das vacinas e a comunicação em saúde pública. Essas lições me acompanharam ao longo da minha carreira, reforçando a ideia de que devemos sempre agir corretamente, independentemente dos desafios.

No contexto de transição e implantação do SUS, qual foi o papel da Dra. Lenir Santos? Ela foi fundamental para desatar os nós jurídicos nesse processo?

CAS: Sim, a Dra. Lenir Santos teve um papel crucial nesse período de transição e implantação do SUS em São Paulo. Ela foi, de fato, a pessoa que desatou os nós jurídicos, facilitando a implementação do sistema. O processo de estabelecer o SUS foi complexo, especialmente em termos legais e administrativos. A Dra. Lenir, com sua expertise e dedicação, foi peça-chave para superar esses obstáculos jurídicos.

Ela trouxe uma compreensão aprofundada dos aspectos legais envolvidos na saúde pública e na estruturação do SUS. Sua habilidade em navegar nesse terreno complexo e sua capacidade de traduzir esses desafios em soluções práticas foram essenciais. Isso não apenas ajudou a pavimentar o caminho para a implantação do SUS em São Paulo, mas também estabeleceu um modelo que seria valioso para outras regiões do país.

A contribuição da Dra. Lenir foi além do aspecto jurídico. Ela também ajudou a moldar a maneira como o SUS operaria, garantindo que a lei fosse interpretada e aplicada de maneira que beneficiasse o sistema de saúde como um todo. Sua visão e entendimento do SUS e das políticas de saúde foram fundamentais para o sucesso inicial do sistema em nosso estado.

Na saúde, você lida com uma gama incrível de questões, desde doenças raras até epidemias. É um campo único, quase como um governo paralelo, e é essencial que os gestores públicos entendam sua singularidade e complexidade.

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