Nesta entrevista exclusiva, os pesquisadores Nelson Ibañez e Josiane Oliveira conversam com Nelson Rodrigues dos Santos, uma figura proeminente na área da saúde pública no Brasil. A narrativa aborda suas experiências e percepções sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) e sua trajetória histórica. Nelsão, como é conhecido no campo da saúde coletiva, compartilha sua atuação no Ministério da Saúde, nas Secretarias Técnica do Conass e Executiva do Conselho Nacional de Saúde (CNS), além de suas notáveis contribuições na prefeitura de Campinas, onde participou do embrião da organização dos Serviços Municipais de Saúde e posterior criação dos cosems e Conasems.

Ao longo do diálogo, ele explora os desafios e avanços em sua carreira, destacando o desenvolvimento e os obstáculos enfrentados no contexto do SUS. O professor Ibañez questiona sua visão realista e otimista sobre o SUS, levando a uma reflexão profunda sobre o papel do sistema de saúde público no Brasil e sua interação com o cenário político e social.

Temas relevantes, como hegemonia e processo civilizatório, também são abordados, apresentando análises históricas e perspicazes de Nelson Rodrigues dos Santos sobre a saúde pública no país. A entrevista destaca a importância de lutar pela preservação e fortalecimento do SUS, buscando uma sociedade mais justa e igualitária na área da saúde.

Esse encontro revela saberes acumulados e perspectivas promissoras para o futuro do sistema de saúde brasileiro, convidando a vislumbrar um horizonte de esperança e transformação na busca por um SUS mais eficiente e inclusivo.

Conte-nos sobre sua trajetória na área de Saúde Pública.

NRS: Minha trajetória na Saúde Pública é marcada por uma forte militância em prol de causas sociais e valores que beneficiem a sociedade como um todo. Após me formar, iniciei minha carreira na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sob a inspiradora orientação do professor Samuel Pessoa. Esse período inicial moldou minha visão e despertou meu interesse por pesquisas com impacto direto na sociedade.

Concentrei meus esforços no estudo da esquistossomose no Vale do Paraíba, onde pude compreender as complexas interações entre os aspectos epidemiológicos, sociais, geográficos e climatológicos que influenciavam o cenário de saúde da região. Essa jornada desafiadora e recompensadora me mostrou a importância de abordagens de pesquisa com contato estreito com as comunidades afetadas, buscando soluções efetivas para suas vidas.

Reuni uma equipe de estudantes de Medicina e Enfermagem de diversas faculdades, contando com o apoio de artistas engajados, como Tonico e Tinoco e Mazzaropi, para promover uma eficiente educação sanitária em Roseira, onde a esquistossomose se alastrava. O envolvimento da comunidade foi crucial e conseguimos implementar mudanças significativas nas condições de saneamento e higiene domiciliar, cortando o ciclo da doença na cidade.

Esse trabalho bem-sucedido em Roseira inspirou-me a expandir minha atuação para outras localidades, como Mairiporã e Registro, onde realizei levantamentos médico-sanitários para diagnosticar as necessidades de saúde e saneamento da população. O envolvimento com estudantes de diferentes faculdades de Medicina foi uma experiência enriquecedora, e foi nessa época que conheci Nelson Ibañez, com quem compartilho uma longa amizade e parceria na militância pela saúde pública.

Essa fase inicial da minha jornada, até os anos 1970, foi marcada por descobertas, desafios e, acima de tudo, pelo sentimento gratificante de contribuir diretamente para a melhoria da saúde e qualidade de vida das comunidades que servimos. Cada projeto foi uma valiosa lição de trabalho conjunto e sensibilização das pessoas para a importância das mudanças de hábitos e medidas preventivas. Acredito que minha atuação nesse período fortaleceu minha paixão pela Saúde Pública e me impulsionou a seguir adiante, sempre comprometido com a causa e a promoção do bem-estar social.

Professor Nelson, ao compreender melhor o processo de produção de sua tese, gostaríamos de saber quais eram suas principais referências em relação à metodologia utilizada para coleta de dados. Você tinha alguma referência bibliográfica, algum teórico específico, ou foi mais uma abordagem intuitiva?

NRS: Na verdade, minha abordagem foi mais aprendida na prática do que baseada em referências teóricas. Antes de realizar a tese, eu tinha alguma noção sobre o assunto por meio de leituras. No entanto, é importante destacar que não havia feito um curso formal de Saúde Pública na época. Somente após a tese, em 1968, cursei Saúde Pública, pois essa era uma condição estabelecida pelo meu professor, responsável pela minha contratação no Instituto de Medicina Tropical em São Paulo. Ele exigia que eu concluísse a tese antes de fazer o curso de Saúde Pública, embora eu quisesse fazê-lo antes. Dessa forma, a tese foi realizada sem ter feito o curso.

Minha abordagem metodológica foi guiada mais pela cultura geral, pelo bom senso e pelas dicas e experiências de pessoas que tinham alguma vivência prática no campo. Desenvolver uma planilha de perguntas, criar um questionário e tabular os dados coletados não foram problemas, pois aprendi de forma empírica e com a prática. Quando olho para trás, meio século depois, percebo que defendi duas teses. A primeira, como descrevi anteriormente. A segunda tese é que, para quem possui boa vontade e compromisso com a população, o aprendizado acontece de forma natural, profunda e não necessariamente por meio de um ensino acadêmico sistemático.

E em relação ao professor Samuel Pessoa, ele influenciou bastante na produção…

NRS: Com certeza, a influência do professor Samuel Pessoa em minha vida foi significativa. Ele me ensinou o compromisso com a população socialmente vulnerável e sofrida, aquela que enfrenta injustiças sociais e está exposta a várias endemias e doenças, sem ter acesso adequado à proteção de sua saúde. Essa lição foi uma grande inspiração para mim.

Outra lição importante que aprendi com o professor Samuel Pessoa foi a simplicidade na abordagem científica. Ele me mostrou que o cientista não precisa buscar a sofisticação em seu trabalho ou em sua comunicação com colegas e a população. Pelo contrário, a melhor ciência pode ser alcançada quando o cientista se conduz de forma improvisada e simples, transmitindo seus conhecimentos com humildade. Essa lição acompanhou-me ao longo da minha vida, e foi especialmente relevante no trabalho que iniciei em Roseira. O aprendizado com o professor Samuel Pessoa moldou minha abordagem profissional, norteando minha dedicação à saúde pública e à melhoria das condições de vida daqueles que mais precisam.

Você compartilhou uma história interessante sobre a Geografia Médica. Gostaria de ouvi-la novamente para que nossos espectadores também possam conhecê-la.

NRS: Certamente! Tudo começou com a influência do professor Samuel Pessoa, que trouxe conceitos de Ecologia aplicados à vida humana e à relação dos seres vivos com o ser humano após suas viagens à antiga União Soviética. Essa abordagem focava no potencial de transmissão de doenças para certos segmentos da sociedade, despertando minha curiosidade.

Sob a orientação do professor Samuel Pessoa, realizei um estágio em Geografia Humana na USP, estudando Climatologia Dinâmica, relevo, hidrografia, pedologia e granulometria dos solos, todos relacionados à transmissão de vermes e doenças. Essa experiência me motivou a direcionar minha tese de doutorado para a Geografia Médica do Estado de São Paulo.

Ao explorar a hidrografia, a Climatologia, o relevo, a urbanização e o impacto da derrubada das florestas na saúde pública em todo o Estado de São Paulo, o estudo avançou consideravelmente. No entanto, o professor Lacaz, meu diretor administrativo, sugeriu transformar a pesquisa em um livro sobre a Geografia Médica de São Paulo.

Assim, concentrei o doutorado apenas no Vale do Paraíba, conforme mencionei anteriormente. Essa experiência foi um marco em minha carreira, permitindo aprofundar meus conhecimentos em Saúde Pública. Desde então, sigo comprometido em aplicar esses ensinamentos para melhorar a saúde e o bem-estar da população em minha jornada profissional.

Após sua experiência em Roseira, você chegou à década de 1970, e uma consciência importante surgiu em relação ao seu trabalho de pesquisa e atendimento aos trabalhadores rurais. Você percebeu que, além de pesquisar criadouros de caramujos e contaminações, era crucial considerar o sofrimento e as doenças presentes na vida cotidiana dessa população.

NRS: Sim, exatamente. Durante meu trabalho com os trabalhadores rurais no Vale do Paraíba, percebi que, apesar de orientá-los sobre higiene e prevenção, havia uma lacuna no atendimento às necessidades imediatas de saúde. Eles relatavam que possuíam familiares doentes e tinham dificuldade em obter consultas médicas e tratamento adequado. Isso me fez perceber que era essencial considerar o bem-estar e o sofrimento presentes no dia a dia dessas pessoas, além das questões de prevenção.

Na busca por soluções, tive uma experiência significativa ao lidar com um médico que deveria atender em Roseira, mas raramente aparecia. Após pressioná-lo e obter a concordância dele para atender pelo menos uma vez por semana, percebi que isso representava o início de uma atenção mais abrangente à saúde dessa população. Essa prática de atender integralmente, não apenas focada na prevenção, mas considerando as necessidades imediatas, se consolidou como uma aprendizagem valiosa ao longo de minha carreira.

Posteriormente, em Londrina, nos anos 1970, minha experiência anterior me levou a ter a intuição de que o ensino de Saúde Comunitária deveria ir além das aulas na faculdade. Ao solicitar ao prefeito a abertura de postos de saúde nas periferias e zonas rurais de Londrina, conseguimos estabelecer uma rede de atenção primária à saúde com enfoque na integralidade. Essa rede priorizava a população mais necessitada, buscando universalizar o atendimento integral de saúde.

Nos sete anos em Londrina, trabalhamos de forma interativa com outras áreas da universidade, como Educação e Ciências Sociais, desenvolvendo essa experiência não apenas como um projeto universitário, mas também como uma experiência municipal. A prefeitura de Londrina, influenciada pelo nosso trabalho, contagiou outros municípios da região norte do Paraná, estabelecendo uma visão de futuro em um novo Sistema Público de Saúde baseado nas prefeituras municipais. Foi uma fase muito pródiga em aprendizado, construindo uma base sólida para avançar em direção a um sistema de saúde mais inclusivo e abrangente.

O impacto da implantação desse programa de atenção primária à saúde em Londrina foi imediato?

NRS: Sim, o impacto foi absolutamente imediato, inclusive no âmbito político. As campanhas municipais de saúde começaram a priorizar e expandir os postos periféricos, o que teve um impacto significativo na população. Essa fase em Londrina foi uma das mais ricas da minha vida, repleta de aprendizados. Porém, um problema político me levou a sair de Londrina. Um novo reitor ligado à ditadura, genro do Ministro da Educação da época, empreendeu uma investigação sobre meu passado em São Paulo nos anos 60. Fui acusado de subversivo e até mesmo preso em 1975, o que acabou afetando minha continuidade no trabalho em Londrina.

Compreendo a situação delicada que enfrentou em Londrina. E como foi o convite para coordenar o programa no Nordeste pela Organização Panamericana de Saúde?

NRS: Recebi o convite da OPAS para coordenar um programa chamado “Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento” nos estados do Nordeste. Em Brasília, tive a oportunidade de interagir com técnicos de diversos ministérios, que eram contra a ditadura e buscavam construir um sistema democrático de saúde. Esse contato com diferentes áreas de conhecimento foi enriquecedor. Em 1977, participei da Sexta Conferência Nacional de Saúde, onde se discutiu a necessidade de uma rede única de atenção integral à saúde, apesar das pressões políticas. Essa experiência em Brasília foi um salto qualitativo para mim e enriqueceu muito meu aprendizado.

Você mencionou os técnicos dos ministérios, mas também houve uma articulação política, certo? Quando ocorreu o primeiro Simpósio Nacional? Em 79 ou 77? Essa articulação também se estendeu ao Congresso?

NRS: Sim, é importante lembrar disso. Em 1977, quando eu estava em Brasília, o sinal de uma novidade progressista e democrática, mesmo dentro do governo, foi a Sexta Conferência Nacional de Saúde, que votou pela criação de uma rede única de atenção integral à saúde. No ano de 1975, coincidentemente, aconteceram dois assassinatos perpetrados pela ditadura, Manoel Fiel Filho e Vladimir Herzog, que causaram comoção em vários setores da sociedade brasileira, incluindo a CNBB, a OAB e a ABI. Essas manifestações contribuíram para que o presidente da época tomasse a decisão de continuar o regime militar, mas sem a prática de tortura e morte, marcando uma virada na trajetória política do país.

Esse período realmente foi um marco importante. E como a saúde foi impactada por essas mudanças?

NRS: Exatamente, a democratização lenta e gradual a partir de 1975 trouxe novas possibilidades para a saúde pública. Nesse contexto, em 1976, foi fundado o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), que engajou não apenas sanitaristas, mas diversos profissionais da área de saúde, ciências sociais e políticas. Em 1979, a Saúde deu mais um passo significativo com a criação da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) e a realização do Primeiro Simpósio de Saúde na Câmara dos Deputados. Esse evento, aberto à participação democrática, contou até com pessoas em situação clandestina que buscavam debater livremente. Outro marco importante foi o Segundo Simpósio em 1982, que avançou ainda mais e delineou as bases para o que viria a ser o Sistema Único de Saúde (SUS) na Assembleia Nacional Constituinte.

Interessante ver como esses momentos foram cruciais para a construção do SUS. E como foi sua trajetória após sair de Brasília?

NRS: Depois de sair de Brasília, em 1977, aceitei um convite para trabalhar em Campinas. Inicialmente, atuei coordenando os postos de saúde periféricos na Secretaria Municipal de Saúde de Campinas e, ao mesmo tempo, dirigindo o Centro de Saúde-Escola de Paulínia, vinculado à Unicamp. Nesse período, desenvolvemos a residência em Medicina Preventiva e Saúde Pública, a residência multiprofissional e criamos um curso de especialização em Saúde Pública. Mais tarde, em 1983, assumi integralmente a Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, enfrentando desafios como a falta de recursos, infraestrutura precária e poucos profissionais contratados. Por meio de convênios com o Ministério da Saúde, a Previdência Social e a OPAS, conseguimos impulsionar o desenvolvimento dos postos de saúde e promover avanços significativos nos recursos humanos, como planos de cargos, carreiras e salários para profissionais da saúde. Essa fase na prefeitura de Campinas foi um aprendizado denso e enriquecedor sobre gestão em saúde e programas de atenção integral e universalidade à população.

Professor, fiquei curiosa. Na sua gestão, o senhor conseguiu trazer suas discussões e estudos sobre Geografia Médica para implementar programas e integrar secretarias tanto em Brasília quanto no Nordeste e em Campinas. Como foi essa experiência?

NRS: Essa visão de respeito à comunidade e à sua cultura, que eu trouxe desde o tempo de Roseira, teve que ser aplicada em uma outra realidade na periferia urbana de Campinas. Lá, as populações eram migrantes de várias regiões do país, e isso demandava sensibilidade aos costumes e necessidades das pessoas. Em vez de substituir os postinhos de casas alugadas por Centros de Saúde, adotamos um processo de interatividade com as sociedades amigos de bairro. Usamos um mapa de aerofotogrametria para localizar terrenos públicos municipais em todos os bairros, e convidamos as sociedades amigos de bairro para reuniões conjuntas. Discutimos onde deveriam ser construídos os Centros de Saúde, considerando fácil acesso para a população, como mães com crianças ou idosos. Houve debates tensos às vezes, mas essa interatividade com a população nos permitiu atender suas necessidades e direitos.

Essa interatividade parece ter dado frutos significativos. Como essa experiência evoluiu para outros municípios?

NRS: Exatamente. Essa experiência serviu como base para um grande intercâmbio entre as Secretarias Municipais de Saúde de várias cidades médias. Criamos um Colegiado de Secretários Municipais, e essa interação foi tão bem-sucedida que expandimos a municipalização dos Centros de Saúde Estaduais para todas as cidades do Estado de São Paulo. A experiência cresceu rapidamente, e outras cidades também almejaram a municipalização. Esse processo avançou muito no Estado de São Paulo, com várias conquistas em sequência. Houve a criação de um sistema de abastecimento para os postos, a municipalização de materiais de consumo das vacinas e geladeiras, e isso potencializou o processo de municipalização em todo o Estado.

Além disso, você mencionou a importância dos Encontros Municipais de Saúde e como eles deram origem aos COSEMS. Pode contar mais sobre esse fenômeno?

NRS: Sim, os Encontros Municipais de Saúde foram uma consequência natural do trabalho próximo à população realizado pelas Secretarias Municipais de Saúde desde os anos 70. Esses encontros propiciaram o intercâmbio de experiências entre diversas Secretarias Municipais. A partir daí, os Colegiados de Secretários Municipais de Saúde foram surgindo nos Estados, e depois vieram as Associações de Secretários Municipais de Saúde. No final dos anos 80, criou-se o CONASEMS, e todas essas instâncias foram fundamentais para a democratização e a organização do sistema de saúde no Brasil. O CONASEMS sobrevive até hoje graças à atividade dos COSEMS, e esse exemplo prático de pacto interfederativo na área da saúde foi bastante rico. Toda essa dinâmica de interação de baixo para cima impulsionou o SUS e permitiu a participação efetiva dos municípios na Assembleia Nacional Constituinte e na construção do sistema de saúde do país.

Foi um processo muito relevante e inspirador. Você também mencionou seu envolvimento na CIS (Comissão Interinstitucional de Saúde) após o Convênio SUDS. Como foi essa experiência?

NRS: Sim, a partir do Convênio SUDS, fui nomeado coordenador da CIS do Estado de São Paulo. Esse trabalho foi extremamente enriquecedor, pois envolvia diversas instâncias de poder estadual, como o Inamps, a Secretaria Estadual de Saúde e a Secretaria do Planejamento. A participação da prefeitura municipal também foi essencial. Com a criação do SUS, a CIS se manteve e continuou a desempenhar um papel relevante. A democratização na área da saúde e a interação entre os entes federados, baseada na experiência prática das Secretarias Municipais de Saúde, influenciaram o desenvolvimento do SUS e sua organização.

Realmente, sua trajetória tem sido marcada por um profundo envolvimento na construção do SUS e na democratização da saúde no Brasil. Essa terceira etapa de sua atuação abrangeu os anos 80 e finalizou nos anos 90?

NRS: Sim, a terceira etapa da minha atuação foi encerrada no final dos anos 80, com a coordenação do CIS. É importante ressaltar que, durante esse período, vivemos a transição da ditadura para a democracia, o que permitiu avanços significativos no campo da saúde. A participação ativa das Secretarias Municipais de Saúde, os Encontros Municipais e o estabelecimento dos COSEMS e CONASEMS foram marcos importantes nesse processo. E assim se concluiu essa fase, preparando o terreno para novos desafios e conquistas na área da saúde.

O senhor foi secretário por um período.

NRS: Eu fui secretário por apenas quatro meses, e apesar de ter sido uma experiência rica e interessante, não teve um grande impacto em minha trajetória. Durante esse período, encontrei um sistema de compras no setor público que estava impregnado de propinas e porcentagens para autoridades. Percebi que não tinha força política para combater isso sozinho.

Então, organizei uma reunião com os vendedores de equipamentos e apresentei a eles as planilhas com os valores das compras e as porcentagens de sobrepreço. Fiz uma proposta para que eles vendessem aos preços normais, sem a taxa extra, e eu pagaria corretamente pelas compras. Em troca, pedi que parassem de atuar como intermediários entre eles e os diretores de hospitais e laboratórios na definição do que seria comprado.

Alguns vendedores ficaram hesitantes, mas, após dez dias, concordaram com a proposta. Assim, durante o período em que estive como secretário, fiz todas as compras com 20% a menos. Contudo, logo depois disso, fui demitido e percebi que seria “rifado” por isso e outras questões.

Apesar de ter sido uma experiência marcante, esses quatro meses não influenciaram significativamente minha trajetória. Minha jornada segue adiante, e agora estou em Brasília, onde enfrentarei novos desafios.

E você não teve esse tipo de problema nas prefeituras? Parecido com esse, de compras? 

NRS: Não. Eu tive uma sorte muito grande. O prefeito que me chamou pra Secretário Municipal de Saúde, eu tive muitos cargos públicos, inclusive depois nessa última fase minha que eu vou falar agora. Mas quando eu fui pra Brasília eu tive muito chefe federal, e ter chefe federal é a mesma lógica e é muito mais pesada. Mas de todos os chefes que eu tive, eu tive dois chefes extremamente dignos, um foi o primeiro reitor de Londrina, que me convidou pra ir pra Londrina, o segundo reitor foi o que me mandou pra prisão e esse primeiro reitor que me convidou pra ir pra Londrina era de uma decência incrível.

O senhor lembra o nome dele?

NRS: Ascêncio Garcia Lopes. Ele é um exemplo de decência. Quando fui preso, ele correu grande risco ao me defender em Curitiba, assinando um atestado em meu favor, na época da ditadura. Defender alguém como eu poderia resultar em prisão ou pressão para revelar informações sobre mim, mas mesmo assim, ele arriscou e foi lá me apoiar. Esse foi meu primeiro chefe em Londrina. Depois, fui convidado pelo prefeito Magalhães Teixeira em Campinas para ser Secretário Municipal de Saúde. Mais uma vez, tive a sorte de encontrar um líder extremamente íntegro, capaz de radicalizar na ética e na moralidade. Apesar de causar alguns desgostos a ele, ao confrontar propinas na Prefeitura de Campinas, ele permaneceu ao meu lado com tranquilidade.

Essa experiência mostrou-me que, embora o cenário político em Brasília possa ser podre, a trajetória que trilhei revela que há muitas pessoas boas dentro do Estado brasileiro, principalmente no setor público. Embora existam escândalos atuais, percebi que a maioria dos servidores públicos são pessoas corretas e íntegras. No entanto, é preciso ter cuidado na seleção dos dirigentes públicos para garantir que somente pessoas idôneas estejam no poder.

Passa pelas negociações. Só pra gente finalizar esse parênteses, por que o senhor acha que era tão relacionado à ideia de subversivo? Por conta dessa sua relação com a população, basicamente ou o senhor fazia parte de algum partido político?

NRS: Fui filiado ao Partido Comunista Brasileiro, mas me desliguei logo após o Golpe, quando o partido foi para a clandestinidade. Naquela época, havia uma divisão interna: uma parte buscava acumular forças nas vias democráticas, enquanto outra optava por diversas formas de luta armada. Pessoalmente, nunca me alinhei com a ideia de luta armada, pois não acreditava que essa abordagem traria benefícios à população ou acabaria com a ditadura.

Minha visão sempre foi buscar a democratização de forma gradual, devagar e sempre, o que acabou sendo eficaz, pois as lutas pelas liberdades democráticas, especialmente a partir dos anos 70, foram cruciais para o fim da ditadura no Brasil.

Atualmente, percebo os perigos da crise não vinculados ao Estado Islâmico ou a fundamentalismos religiosos, mas sim ao sistema financeiro, que exerce uma espécie de ditadura ao capturar os Estados. O real perigo está em concretizar um Estado Social Democrata, conforme idealizado na Constituição pela Assembleia Nacional Constituinte. Isso representa um leque centro-esquerda, uma social-democracia, e não uma ameaça de socialismo ou comunismo imediato, desafios que podem surgir para o futuro distante, talvez até cinco gerações à frente.

Na ditadura passada, o verdadeiro inimigo do regime não era o comunista ou o socialista, mas sim aqueles que se opunham à ditadura, mesmo que defendessem uma forma de capitalismo pela social-democracia, seguindo o estilo europeu, e não os moldes dos Estados Unidos. Compartilho essas posições pessoais porque, naquela época e nos anos 90 até hoje, quem é perigoso para o Estado é quem busca discutir e implementar uma democracia efetiva, buscando a liberdade da população. Enfrentar essas discussões e debates é que realmente representava uma ameaça. Prosseguindo com a história a partir dos anos 90…

Com certeza, é uma contribuição muito rica e abrangente sobre sua trajetória e também sobre a visão do SUS ao longo do tempo. É muito interessante a maneira como você vai mostrando os desafios, as conquistas e também as dificuldades que foram enfrentadas ao longo desses anos todos.

NRS: Exatamente. A história não é passiva, mas sim um campo de batalha, uma guerra de ideias, relações sociais e hegemonias. Hoje, tenho uma visão analítica do Sistema de Saúde brasileiro, incluindo o SUS, que enfrenta um campo de batalha e guerra mais difícil do que na época da ditadura. Antes, o campo de batalha era aberto, a ditadura combatia a população diretamente. Agora, é uma mistura de várias coisas, enganador e confuso, com propaganda ideológica forte do neoliberalismo, mas também com propaganda enganadora do outro lado. Enfrentar a Secretaria Nacional de Serviços de Saúde do Collor foi mais difícil para mim do que o terror do DOI-CODI. Hoje, sinto-me muito mais inseguro do que na época da ditadura. Essa é uma síntese resultado de várias análises que faço atualmente, mostrando que o campo de batalha político brasileiro é muito mais difícil, complexo e confuso do que o enfrentado durante a ditadura militar de 68 a 74.

O senhor é otimista ou realista com relação a esta?

NRS: Eu sou realista e otimista. Alguns dizem que sendo muito realista, fica-se pessimista, pois a realidade é dura. Porém, para mim, essa realidade é ainda mais otimista. Precisamos sair das análises de conjuntura, que é um defeito comum da intelectualidade, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. As análises de conjuntura são fundamentais, mas só focar nelas pode levar ao pessimismo. Precisamos voltar à ciência da História, à visão do processo histórico, que abrange muitas conjunturas e gerações.

Ao considerar o processo civilizatório, podemos olhar para a história da Idade Média, das Cruzadas, do Iluminismo, da Inquisição, do Positivismo e da sociedade socialista no passado. Também é relevante estudar a Comuna de Paris, a União Soviética e os desvios direitistas que ocorreram. A social democracia na Europa no início do século passado e seu resgate após a Segunda Guerra Mundial são pontos importantes nesse processo civilizatório.

Dessa forma, vejo razões para ser muito otimista. Precisamos ir além das análises conjunturais e compreender o processo histórico para entender as possibilidades de avanços e mudanças no futuro.

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