Em meio a um cenário de desafios em constante mudança para o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, nossa equipe teve a oportunidade de conversar com um dos grandes nomes da saúde pública do país: Dr. José Carlos Seixas. Embora a entrevista tenha sido realizada em outubro de 2015, as observações e perspectivas do Dr. Seixas mantêm uma relevância impressionante, mesmo quase uma década depois.

Nascido em Marília, São Paulo, no ano de 1937, Dr. Seixas carrega um currículo robusto que inclui passagens como ministro da Saúde e várias outras posições de alto escalão. Ele é formado pela Faculdade de Medicina de São Paulo e tem especializações em Saúde Pública; Administração Hospitalar pela FSP da Universidade de São Paulo e em planejamento com passagem pela Cepal no Chile. A sua trajetória profissional hibrida entre a academia e as funções exercidas em sua passagem pelos governos estaduais e federais, colocam sua contribuição à saúde pública como uma das mais relevantes.

Nesta entrevista, conduzida pelos pesquisadores Nelson Ibañez e Josiane Roza Oliveira, rica em detalhes e perspectivas, ele reflete sobre sua experiência e delimita questões críticas que ainda ressoam no sistema de saúde atual. Entre os pontos discutidos, estão a necessidade de uma lei orgânica para regulamentar a saúde, as falhas na operacionalização do SUS e os desafios ligados ao financiamento e ao desperdício no setor.

Mesmo com a passagem do tempo, as palavras do Dr. Seixas servem como um barômetro precioso para avaliar onde estamos hoje e o que ainda precisa ser feito para melhorar o sistema de saúde do Brasil. Esta é uma entrevista que continua essencial para qualquer pessoa interessada em entender as complexidades e os caminhos futuros para a saúde pública no país.

Nelson Ibañez – Você mencionou o discurso recente do novo ministro da saúde, Marcelo Castro (2015-2016), com certo otimismo, mas também com uma dose de ceticismo. Você poderia expandir mais sobre essa mistura de sentimentos?

JCS: Claro! A questão é que, quando alguém está bem-informado e traça um discurso alinhado com as necessidades da saúde pública, como esse ministro fez, temos duas possibilidades. Ou ele realmente vai atuar em conformidade com o que diz, ou está sendo extremamente desonesto, pois conhece a fundo os desafios e sabe como manipular as palavras. Isso me coloca em uma posição de otimismo cauteloso. Ele mencionou o financiamento do sistema de saúde como prioridade, algo que todos nós sabemos que é fundamental. Mas a questão permanece: as ações seguirão as palavras?

Nelson Ibañez – Interessante. E sobre o legado da sua família na medicina, você acha que essa “herança” influenciou a forma como você vê a ética no sistema de saúde?

JCS: Certamente. Desde minha avó, que cuidava das pessoas na zona rural, até meu pai, que foi um médico generalista, vejo a medicina como uma vocação que vai além do consultório ou do hospital. Trata-se de um compromisso com o bem-estar humano. Essa visão me fez compreender que a saúde não é apenas uma questão individual, mas coletiva. Essa herança familiar, que brinquei ser um ‘defeito congênito’, me dá uma perspectiva única sobre o valor da saúde em nossas vidas.

Nelson Ibañez – Voltando ao novo ministro, ele é um psiquiatra e também tem experiência política. Você vê isso como um ponto forte ou fraco para o cargo?

JCS: Eu vejo isso como um ponto forte, principalmente porque ele entende as complexidades do ser humano não só a partir de uma perspectiva física, mas também mental e emocional. A experiência política também pode ser um ativo, desde que seja usada para navegar eficazmente pelas complexidades burocráticas e legislativas que envolvem a saúde pública. Mas, como eu disse antes, o mais importante é ver se ele vai realmente aplicar esse conhecimento em benefício do sistema de saúde.

Nelson Ibañez – Finalmente, com base em sua extensa experiência e em seu entendimento da história da saúde pública, o que você considera o maior desafio para a nova liderança?

JCS: O maior desafio, na minha visão, é encontrar um equilíbrio entre o pragmatismo necessário para fazer o sistema funcionar e a ética de garantir que ele funcione para todos. Isso inclui desde o financiamento adequado até a implementação de políticas que realmente abordem as necessidades das pessoas. Não é apenas sobre ter o conhecimento, mas sobre ter a coragem de aplicá-lo de forma justa e eficaz.

Josiane Oliveira – Dr. Seixas, voltando à sua trajetória profissional, você sempre quis seguir a carreira médica como seu pai?

JCS: Na minha vida, a medicina sempre esteve presente, principalmente por influência do meu pai, que era médico. Paralelamente, meu interesse por arquitetura foi alimentado pela minha mãe, uma ex-professora com uma paixão por design e reformas. Eles se conheceram numa pequena cidade do interior de São Paulo e, embora minha mãe tenha deixado sua carreira para cuidar da família, sua influência permaneceu viva, especialmente no meu fascínio por construções e design.

Meu pai decidiu me enviar para um internato, o Arquidiocesano, após alguns eventos infelizes na minha escola pública. A mudança foi um choque cultural e emocional para mim, saindo de um ambiente doméstico acolhedor para uma rotina escolar rigorosa. Isso me fez perceber como as escolas frequentemente falham em atender às necessidades individuais dos alunos, algo que continuei observando mais tarde na minha vida ao me envolver em atividades em centros de saúde comunitários.

No aspecto profissional, minha trajetória foi moldada por várias experiências e influências, que vão desde a profissão médica do meu pai até as inclinações humanísticas da minha mãe. A educação foi um fio condutor complexo na minha formação; adicionou e subtraiu valor da minha vida de maneiras inesperadas. O apoio do meu pai foi monumental, não apenas financeiramente, mas também em termos de valores e disciplina. Contudo, como qualquer jovem, tive que encontrar meu próprio caminho, especialmente quando se tratava de educação e carreira.

Durante meu tempo no colégio, descobri o mundo da política e essa liberdade recém-adquirida me permitiu mergulhar ainda mais profundamente na vida política. Surpreendentemente, Jânio Quadros tornou-se o paraninfo da minha formatura, ilustrando como as escolhas que fazemos podem ter efeitos imprevisíveis ao longo de nossas vidas. Além disso, minha jornada me levou a uma Congregação Mariana atípica, onde pude aprofundar meu entendimento da doutrina católica e também envolver-me em questões sociais trabalhando em favelas.

Olhando para trás, fica claro que minha vida é uma tapeçaria rica de experiências e influências que contribuíram para a pessoa que me tornei. Cada momento, por mais insignificante que possa parecer, tem o potencial de moldar nosso caráter e direcionar o curso de nossas vidas. Nessa intrincada rede de experiências e decisões, encontrei e me tornei quem sou. E embora minha jornada para entrar na faculdade de medicina tenha sido árdua, persisti e, finalmente, conquistei meu lugar, refletindo uma complexa mistura de influências familiares e pessoais. No entanto, persisti e conquistei meu lugar, uma conquista que marcou o início de uma carreira focada não apenas na prática clínica, mas também na saúde pública.

Nelson: fale um pouco de sua trajetória na saúde pública …

JCS: Os anos que passei reformulando políticas de saúde pública com meu saudoso amigo e colega Juarez foram particularmente formativos. Mesmo sob o regime militar, tivemos a audácia de vislumbrar um sistema de saúde mais justo e eficaz para o Brasil. E embora minha relação com a escrita seja complicada, devido a traumas anteriores, foi durante esse período que aprendi o valor da política na medicina.

Minha vida acadêmica também tomou um rumo interessante quando comecei a lecionar. Abordado para ser parte do primeiro programa de residência em medicina preventiva do país, eu me vi ainda mais imerso no equilíbrio delicado entre a clínica médica e a saúde coletiva. Essa fusão de disciplinas reflete minha própria trajetória, uma que sempre buscou reconciliar o indivíduo e o coletivo em um sistema de saúde mais holístico.

Na esfera política, vivi períodos turbulentos, especialmente sob a ditadura militar. No entanto, meu perfil baixo permitiu que eu continuasse meu trabalho sem maiores problemas. Embora tenha sofrido derrotas políticas enquanto presidente do Centro Acadêmico, essas experiências apenas fortaleceram minha determinação de me concentrar nas questões fundamentais da educação e da saúde pública.

A participação em encontros internacionais ampliou ainda mais minha compreensão do que a saúde pública deve englobar. Não é apenas uma questão de resolver problemas médicos, mas também de abordar complexas questões sociais e políticas que impactam o bem-estar coletivo.

Nelson Ibañez – você pode exemplificar um caso vivido

JCS: Lembro-me bem da tensão no ar quando fui convocado para essa entrevista inusitada. Afinal, meu nome havia sido rejeitado pelo Ministério da Saúde para uma bolsa de estudos, mesmo depois de a Organização Panamericana de Saúde ter aprovado. Era um paradoxo e tanto, não é?

Eu realmente valorizo a solidariedade que recebi de Elza Berquó naquele momento. Ela estava em Washington e, quando soube da minha situação, imediatamente demandou uma explicação formal. Isso acirrou a atmosfera e obrigou as autoridades a darem algum tipo de justificativa para a comunidade internacional.

Então veio essa entrevista investigativa com o professor da UNB. E a coisa ficou um tanto quanto teatral. Mascarenhas, meu grande apoiador, decidiu estar presente durante todo o processo. Ele estava tão desconcertado quanto eu quando o entrevistador começou a fazer perguntas sobre meu possível envolvimento com a AP, tentando delinear meu perfil político.

Fui direto. Confirmei que fui um dos fundadores da AP, mas também fiz questão de contextualizar isso. Eu disse: “A AP que o senhor está descrevendo parece ser o que ela se tornou por conta das circunstâncias políticas atuais do Brasil. Quando foi criada, a AP tinha um propósito e natureza muito diferentes”. Expliquei que a AP que ajudei a fundar era socialista democrática, pluralista e rejeitava a violência como meio de conquista do poder. Fui tão honesto quanto possível, mas ao mesmo tempo, ciente da delicadeza do momento.

A reação do professor da UNB foi notável. Ele recomendou que eu fosse um pouco menos “realista” em entrevistas futuras, sugerindo que minha franqueza não seria facilmente compreendida ou aceita por todos. Foi um momento de risos, mas também uma lição aprendida sobre os delicados equilíbrios que muitas vezes precisamos manter em situações como essa.

Nelson Ibañez – Quando você fala: “O Mascarenhas que me acompanhou”, você já era docente da faculdade?

JCS:   Então, mas talvez, vale a pena retomar a ideia do que aconteceu. Eu me formei, tal e eu então comecei a trabalhar na faculdade de saúde pública como auxiliar de ensino. A trabalhar na Santa Casa como professor e tinha acabado de arranjar um emprego no Emilio Ribas como médico consultante, isso por esforço de todo mundo

 O período dos anos 60, e especialmente o ano de 1964 marcado pelo golpe militar no Brasil, foi uma fase crítica em minha vida. Eu estava no meio da minha residência médica, casado e com minha esposa Rita esperando um filho. A situação financeira apertou ainda mais quando perdi minha bolsa complementar da Sagmax devido ao golpe político. Essa bolsa era fundamental para mantermos um padrão de vida minimamente confortável.

Naquele momento, enfrentei um dilema profissional e pessoal: continuar a residência que tanto valorizava ou buscar um emprego mais lucrativo para sustentar minha família. Opções não faltavam, com trabalhos em hospitais federais públicos e outros cargos que pagavam bem mais. Consultei o Professor Mascarenhas, um orientador que eu respeitava muito, apesar de discordar em alguns pontos pedagógicos. Ele me ofereceu uma saída, um cargo de assistente que pagaria o dobro da minha bolsa e plantões combinados.

Contudo, a burocracia atrasou meu salário até dezembro daquele ano, o que nos obrigou a apertar ainda mais o cinto. Para fazer frente às despesas, retomei o trabalho com o Guedes na Santa Casa em medicina preventiva e até atuei no Hospital Brigadeiro. Mas essa experiência apenas intensificou minha paixão pela saúde pública. Eu estava vivenciando em primeira mão como as decisões políticas impactam diretamente o setor da saúde.

A ironia é que esse período turbulento serviu para consolidar meu compromisso com a saúde pública. Eu, que já criticava a falta de discussão sobre sistemas como o INAMPS durante minha formação, agora estava imerso na realidade prática dessas políticas de saúde. Todo esse contexto me ensinou lições valiosas sobre resiliência e sobre o profundo impacto das decisões políticas na nossa vida profissional e pessoal.

Em retrospectiva, cada obstáculo enfrentado durante essa época tornou-se um tijolo na construção do profissional e do homem que sou hoje. Ter o apoio e orientação de figuras como o Professor Mascarenhas e o amor incondicional de minha esposa Rita foram fundamentais para que eu não desistisse e continuasse a trilhar meu caminho.

Então, por mais que tenha sido “apanhado mais do que cachorro magro”, como diz o ditado, cada golpe sofrido foi um passo adiante. A experiência acumulada não só me tornou um profissional mais completo, mas também alguém consciente dos desafios multifacetados que o setor da saúde enfrenta no Brasil.

Nelson Ibañez – Emílio Ribas…

JCS: O Instituto Paulista de Pronto-Socorro! Aquele plantão foi realmente um dos momentos mais desafiadores da minha vida profissional. Imagine só, eu, um jovem médico com formação em saúde pública e clínica geral, me encontrava, por vezes, no meio de situações críticas envolvendo traumas cranianos. E os neurologistas? Bom, eles não faziam plantões presenciais e só apareciam quando bem entendiam, geralmente quando o caso lhes parecia “simples”.

Eu estava praticamente por minha conta, esperando ansiosamente que nenhuma ambulância chegasse com um caso crítico. Afinal, cada vez que isso acontecia, era uma angústia tentar contatar os neurologistas. E o sistema de telefonia da época não ajudava. Então você imagina a tensão de ter uma vida em suas mãos, enquanto você tenta desesperadamente entrar em contato com um especialista que deveria estar ali, mas não está. Era estressante, para dizer o mínimo. Eu voltava para casa exausto e com enxaquecas violentas, o que preocupava minha esposa Rita.

Era um paradoxo angustiante. Estava trabalhando naquele hospital privado para complementar minha renda, já que o Estado havia atrasado meu pagamento, mesmo depois da minha nomeação como assistente. Mesmo estando em uma situação precária, eu tinha responsabilidades médicas sérias nas minhas mãos, e a falta de apoio e organização do sistema tornava tudo mais complicado.

Mas quando finalmente recebi os atrasados em dezembro, foi como se um grande peso tivesse sido retirado dos meus ombros. De repente, eu tinha recursos para melhorar significativamente nossa qualidade de vida. Comprei uma geladeira, algo que ainda não tínhamos, e até uma sala de jantar! Foi um Natal memorável, para dizer o mínimo.

Toda essa experiência, apesar de estressante, foi uma imersão em fogo no mundo real da medicina e da administração da saúde. Reafirmou minha crença de que o setor de saúde carece de planejamento sério, de comprometimento de todos os envolvidos e, acima de tudo, de um profundo senso de responsabilidade ética.

A medicina é, sem dúvida, um campo nobre, mas como você bem disse, “medicina é um negócio sério, mas medicina nem sempre tem gente séria”. Essas palavras ressoam comigo até hoje. Elas servem como um lembrete constante de que o trabalho que escolhi fazer não é apenas uma profissão, mas um chamado que vem com uma pesada dose de responsabilidade moral e ética. E cada enxaqueca, cada noite sem dormir, e até aqueles plantões agonizantes, todos fazem parte da jornada, tornando-me cada vez mais resoluto em minha missão de contribuir para um sistema de saúde melhor e mais justo. Isso foi em 1966.

Nelson Ibañez – Então, em 66, você está como auxiliar de ensino na faculdade e você também tá na Santa Casa no departamento junto com o Ayrosa e com o Guedes, é isso?

JCS: O período de estágio com o Dr. Guedes no Instituto Emílio Ribas! Esse foi realmente um ponto de virada em minha formação médica e também na forma como enxergava minha própria carreira. Você vê, em meio a todos os contratempos financeiros e estresses emocionais, essa oportunidade de aprender mais sobre doenças infectocontagiosas com o Dr. Guedes surgiu como um farol no nevoeiro. Afinal, eu estava considerando seriamente me tornar um infectologista se as coisas com a saúde pública não funcionassem.

O melhor de tudo era o horário do estágio. Enquanto muitos médicos relutavam em pegar o horário de final de tarde, para nós era perfeito. Eu me lembro de sair do meu dia regular de trabalho, dirigir-me ao Emílio Ribas e ter essas sessões altamente instrutivas e práticas. Estávamos lá das 17h30 às 19h30, seja atendendo pacientes em ambulatórios ou fazendo rodadas pelas enfermarias. E o Dr. Guedes, bem, ele era uma lenda viva. Eu tinha muito a aprender com ele, e ele estava mais do que disposto a ensinar. Se eu não soubesse algo, ele me elucidava com uma profundidade que só um médico de seu calibre poderia oferecer.

E é engraçado que você mencione o ambiente durante nossos plantões. As enfermeiras sempre ficavam animadas quando sabiam que era o “plantão do Dr. Guedes”. Devo admitir que às vezes me pegava um pouco enciumado (risos). Mas eu entendia o carinho e respeito que todos tinham por ele. Ele era, afinal, um médico excepcional e um professor dedicado. A Santa Casa e o Emílio Ribas eram sortudos em tê-lo, e eu me considerava igualmente sortudo por aprender com alguém de seu calibre.

Esse período de estágio me ensinou mais do que apenas os aspectos técnicos da medicina; também me ensinou sobre a arte de ser um bom médico, sobre como equilibrar conhecimento, habilidade e compaixão. Dr. Guedes era a personificação dessa tríade, e eu me esforçava todos os dias para estar à altura desse padrão.

Olhando para trás, aqueles dias difíceis de início de carreira, repletos de incertezas e obstáculos, parecem agora como um rito de passagem necessário. Eles me moldaram, forjaram meu caráter e fortaleceram minha resolução de fazer a diferença no campo da saúde. O aprendizado que adquiri, tanto nas boas quanto nas más experiências, fez de mim o médico e o ser humano que sou hoje. E o estágio com o Dr. Guedes foi, sem dúvida, um dos pontos altos dessa jornada.

Nelson Ibañez – Vamos parar por aqui …

JCS: Embora eu tenha iniciado minha carreira em um ambiente hospitalar bastante difícil e tenso, esse período serviu para consolidar minha compreensão de que a saúde não se restringe apenas a tratar casos individuais. A complexidade dos problemas com que me deparei no hospital só reforçou minha convicção de que precisava focar no coletivo, na saúde pública.

Nelson Ibañez: Vamos continuar sobre sua opção e experiência na saúde pública …

JCS: Olhando para trás, vejo que cada etapa da minha carreira em saúde pública e medicina preventiva foi crucial para a minha formação. Desde os dias como auxiliar de ensino na Faculdade de Saúde Pública até minha prática médica na Santa Casa e Emilio Ribas, cada experiência contribuiu para minha visão holística da saúde no Brasil. Tive o privilégio de trabalhar com mentores incríveis como o Professor Mascarenhas, que enxergou em mim uma “liderança” pouco convencional, mas essencial. Isso sem mencionar a oportunidade de aprofundar meus conhecimentos através de estudos no Chile e da prática em planejamento de orçamento para a saúde.

Se há algo que esses anos me ensinaram, é o valor da experiência prática combinada com o conhecimento teórico. Aprendi que saúde pública não é apenas um campo técnico, mas também um campo intensamente político e social. Trabalhar em diferentes administrações, desde o governo de Ademar de Barros até o de Abreu Sodré, me mostrou como as mudanças na liderança podem afetar a entrega de serviços de saúde, e como é crucial adaptar-se para continuar fazendo a diferença.

Quanto ao futuro, bem, a saúde pública é um campo em constante mudança, com novas políticas, desafios e crises sempre surgindo. Mas o cerne da minha prática e filosofia continua o mesmo: focar em uma abordagem preventiva e coletiva para melhorar a vida das pessoas. Este ethos tem sido meu guia desde o início.

Minha inserção na gestão do Leser quando ele resolve fazer uma pesquisa para fazer a reforma da secretaria… Aí, ele fez tudo direitinho como mandava o figurino, fez concorrência pública, … quem ganhou teve a inteligência de ir na faculdade de saúde pública dizer: “Olha, eu ganhei isso aqui, eu queria que vocês fizessem e eu pago tudo que vocês pedirem”, aí o Reinaldo pegou, leu e o que ele queria? Ele pegou a região de Campinas, né, que já tinha dividido em regiões, que a região de Campinas, ir lá fazer um projeto novo de secretaria de estado da saúde nas partes de redes de unidades sanitárias, principalmente, de vigilância sanitária, deixando de fora os laboratórios, os centros de pesquisa, tal, tal, tal porque esse ele já estava fazendo um a um. Aí, o Reinaldo me chamou para fazer o trabalho, aí foi uma boa coisa porque a gente foi conhecer a região, foi ver e tal, resultado: nós fizemos todo o trabalho e fomos entregar. No trabalho, tínhamos chegado à conclusão de que a secretaria tava um caos, com sobrecarga de serviço, etc., e se dentro desse caos, a gente colocasse um projeto novo, ia aumentar o caos (risos), porque era mais coisa em cima, primeiro lugar, segundo lugar, ia estragar o projeto. Dificilmente, o restante da secretaria ia absorver o projeto. Então, a primeira coisa que a gente definiu era que: ou faz de vez ou não faz, resultado do trabalho. Bom, mas pra entregar isso pro Leser, o Reinaldo que era muito amigo do Leser, gostava dele, disse: “Bom, mas eu não vou entregar o trabalho” “Por quê que o senhor não vai entregar o trabalho?” “Por causa dessa nossa conclusão…. Mas eu não podia deixar o destino desse projeto significativo ser decidido sem uma discussão apropriada. O clima era pesado com a responsabilidade que sentíamos e com o respeito mútuo que tínhamos um pelo outro. Na apresentação falei: “O senhor às vezes me confunde,” eu disse, quebrando o silêncio. “Se tivéssemos uma lousa, eu poderia esclarecer algumas coisas com desenhos.”

Leser olhou para mim, um tanto surpreso, e tocou uma campainha debaixo de sua mesa. “Traga uma lousa e giz”, ele disse à secretária que apareceu, “o Doutor Seixas quer me explicar na lousa as coisas.”

Eu tinha trazido à tona um elemento novo à discussão, um espaço tangível para apresentar minhas ideias. Parece que isso foi suficiente para mudar o clima na sala. Leser, o homem que muitos consideravam ser difícil de se trabalhar, me deu uma abertura. A lousa e o giz chegaram, e eu comecei a desenhar o fluxo do sistema de saúde que havíamos planejado, com todas as suas complexidades e nuances.

Após horas de discussão e explicações, senti que havíamos chegado a um consenso. “Leser, precisamos falar muito com você”, interveio Vitor, meu outro colega que tinha acompanhado silenciosamente a reunião. Leser então finalmente admitiu, “Aceito em termos gerais as coisas mais…”

E assim, após o que pareceu uma eternidade, mas também num piscar de olhos, o encontro acabou. Leser disse que a secretaria faria o pagamento pela pesquisa e que, pelo menos, “serviria para ficar na biblioteca um bom trabalho feito de reforma”. Mas mais do que isso, ele me convidou para fazer parte da equipe. Ele notou minha vontade de discutir abertamente e de confrontar problemas, ao invés de simplesmente concordar para evitar conflitos.

Então lá estava eu, no meio de uma saga imprevista e extremamente complicada, ponderando sobre a complexa teia de burocracia, relações pessoais, e o imperativo ético da saúde pública. A história ainda não tinha terminado, mas uma coisa estava clara: a trajetória para a mudança nunca é fácil, nem linear. É sempre um emaranhado de circunstâncias, personalidades e, claro, um pouco de sorte. Tudo isso me mostrou como a “luta”, como bem disse, não é algo que se pode planejar meticulosamente; ela surge de circunstâncias existenciais imprevisíveis, pronta para nos testar em cada curva do caminho.

Assim que Leser terminou sua explicação sobre como as coisas funcionariam sob minha alçada, respirei fundo e disse: “Dr. Leser, com todo o respeito, sou competente na integração de serviços, mas não tenho experiência com laboratórios.” Ele riu e disse: “Não se preocupe, quem entende de laboratório sou eu. Você vai gerir a burocracia e os problemas cotidianos dessas instituições. Butantan e Adolpho Lutz não vão ser sua preocupação.”

Essa declaração de Leser me deu um certo alívio. A responsabilidade de transformar uma área da saúde pública que eu não dominava completamente seria uma tarefa monumental. Então, ter Leser como uma espécie de mentor técnico era tranquilizador.

“Já temos Paula Souza cuidando da saúde da comunidade”, continuou Leser, “ele está entusiasmado com a integração dos serviços, então vocês vão colaborar nesse sentido.”

Nelson Ibañez: e aí como foi seu processo de integração na gestão?

JCS: À medida que fui me integrando mais na equipe e trabalhando com o Comitê Técnico Assessor (CTA), fui exposto ao Conselho de Saúde do Estado, onde conheci várias personalidades relevantes na área. Uma dessas pessoas era Décio Pacheco Pedroso, representante do INAMPS, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social. A minha interação com Décio foi significativa porque eu sempre quis melhorar a integração com o INAMPS, e ele também compartilhava desse desejo.

Décio era uma daquelas figuras antigas, um dos “velhos cardeais” da previdência social. E isso me fez pensar sobre algo muito importante. A luta pela integração e pelo aprimoramento dos sistemas de saúde não era algo novo, nem exclusivo da nossa geração. Havia pessoas mais velhas, com anos de experiência e conhecimento, que também trabalhavam em prol dessa meta.

Mais tarde, quando houve uma mudança de governo, Décio se tornou coordenador e conseguiu estabelecer o primeiro convênio entre o estado e a previdência social. Ele nomeou esse projeto de alguma forma especial, cujo nome agora me escapa. Mas isso serviu para ilustrar o quão complexo e multifacetado é o caminho para criar um sistema de saúde mais integrado e eficiente.

Então, ali estava eu, agora parte desse intricado tapeçaria de pessoas, políticas, instituições e desejos para melhorar o sistema de saúde. Era uma mistura de gerações, de expertise, e eu estava aprendendo mais do que jamais poderia ter imaginado. Eu não estava apenas ali para executar, mas também para aprender com os que vieram antes de mim, e talvez, para ensinar aos que viriam depois.

Nelson Ibañez –Esse primeiro convênio era o CIAM?

JCS: CIAM! Ele sempre foi um defensor dessa iniciativa. Chegou até a cogitar que eu assumisse um cargo de secretário na área, algo que, para ser honesto, me deixou apreensivo. Trabalhar com o Leser já era desafiador o suficiente, imagine então assumir um cargo ainda mais alto. Leser foi escolhido por Laudo Natel, e eu sempre suspeitei que a paixão deles pelo São Paulo Futebol Clube teve algo a ver com isso (risos).

Ao longo dos anos, eu vi como um grupo diversificado de profissionais, abrangendo várias gerações, uniu-se na luta pela melhoria do sistema de saúde público. Não era apenas uma coisa da nossa geração; havia velhos guardiões da saúde que contribuíram significativamente. Pessoas do Rio de Janeiro, da Bahia, de Minas Gerais – todos contribuíram de uma forma ou de outra. O pessoal de Minas, especialmente, estava muito alinhado com os princípios de medicina preventiva que começaram a ganhar destaque. Essa rede se fortaleceu em cidades como Ribeirão Preto e Campinas e fez um impacto significativo.

Em minha época na secretaria, uma das realizações que mais me orgulho não foi algo que “eu fiz”, mas algo que “nós fizemos”. Trata-se da criação da carreira de médico sanitarista. Foi uma grande vitória para a saúde coletiva no Brasil. Isso permitiu que médicos atuassem nos centros de saúde de uma forma mais integrada, ganhando o apoio popular no processo. A desvantagem foi que isso se tornou altamente partidarizado, o que acabou diluindo o foco da nossa luta.

Josiane Oliveira – Professor, além dos sanitaristas, quem o senhor identifica como protagonista junto com esse grupo?

JCS: A formação acadêmica sempre foi uma questão interessante para mim, especialmente na área da saúde. Naquela época, você não encontrava nenhuma formação técnico-científica, muito menos Sociologia ou Psicologia, nos currículos das escolas médicas. Se você quisesse aprender algo fora do currículo médico tradicional, tinha que entrar para algum grupo político ou social, porque a formação era extremamente limitada.

Vou te contar, quando fui presidente do centro acadêmico durante a faculdade, eu estava mergulhado em responsabilidades financeiras e contábeis para as quais não estava preparado. Não tinha a menor ideia de como gerir finanças, nem pessoais, nem de uma organização. O curso de medicina, por mais rigoroso que fosse em termos científicos, deixava uma grande lacuna nesse sentido. No mundo real, não dá para administrar uma instituição de saúde com a mesma lógica da “dona de casa cuidando do seu lar”, como se dizia.

Por sorte, consegui um colega cujo pai era um contador muito rigoroso e competente. Graças a ele, a contabilidade do centro acadêmico ficou em ordem. E isso foi tão importante que quando veio o regime de 1964, com a cassação de professores e tudo mais, o nosso centro acadêmico foi poupado, precisamente porque estava tudo em ordem nas contas. Foi minha primeira lição sobre a importância do conhecimento técnico e administrativo, algo que até hoje considero fundamental para qualquer profissional, mas especialmente para os que atuam na área da saúde.

Acredito que o advento da medicina preventiva e social foi um divisor de águas nesse sentido. Começou a preparar profissionais de saúde, não só médicos, mas também enfermeiros e outros, para uma realidade mais abrangente, mais complexa. Não estávamos mais falando apenas de diagnósticos e tratamentos, mas de sistemas de saúde, de gestão, de interações sociais e, por que não, de política.

Os professores das faculdades desempenharam um papel crucial nessa mudança de paradigma. Eles não só formavam sanitaristas, mas influenciavam toda uma geração de profissionais da saúde que, de repente, começava a entender que sua atuação ia muito além do consultório ou do hospital. Era uma visão mais holística, que considerava o indivíduo não apenas como um paciente, mas como parte de uma comunidade, inserido em um sistema.

E assim fomos evoluindo, tanto na medicina quanto em áreas correlatas como a enfermagem. Tudo foi se ajustando, se adaptando a essa nova realidade. O resultado é que hoje temos um corpo de profissionais mais bem preparados e, embora ainda haja muito o que melhorar, acredito que estamos em um caminho mais acertado. É uma longa jornada, mas cada passo conta.

A visão de meu pai sobre nunca ser “empregado” realmente me fez parar para pensar. Mas percebi que meu impacto na saúde pública não poderia ser medido em termos de um salário ou status profissional. Quando vi o efeito da vacinação contra a meningite, fiquei mais do que convencido. O impacto que tive, que nós tivemos como profissionais da saúde pública, foi vasto. Salvamos mais vidas em um curto espaço de tempo do que uma carreira inteira em medicina individual poderia ter alcançado.

Em termos de realização pessoal e profissional, acredito que o trabalho em saúde pública oferece algo imensurável. Pode não haver a liberdade financeira que um médico liberal pode desfrutar, ou talvez eu tenha que preencher papéis e seguir burocracias que meu pai detestava. No entanto, o número de vidas que toquei e a magnitude do impacto que tive é algo que não trocaria por nada.

Essa “compensação” pode não ser imediatamente palpável, mas o valor humano é inestimável. Posso não ter a liberdade que meu pai tinha em sua prática, mas acho que a capacidade de afetar positivamente a vida de milhares, talvez milhões, oferece uma forma de liberdade e realização próprias. E essa é a beleza da saúde pública: o seu impacto vai muito além das quatro paredes de um consultório ou hospital. É um legado que fica na comunidade, na sociedade e, eventualmente, reverbera através das gerações. E essa é a recompensa que eu sempre busquei.

Nelson Ibañez – Você citou a vacinação da meningite. É isso a epidemia em 72? Só para marcar, em 72 onde você estava?

JCS: A campanha contra a meningite em 1974 foi um divisor de águas na minha carreira e na saúde pública do Brasil. A epidemia estava em seu pico e a situação era alarmante. Com milhares de vidas em risco, eu estava desesperado por uma solução. O senso comum na época era que a vacinação em massa não era eficaz para conter a doença. Contudo, um médico francês nos trouxe uma nova perspectiva, baseada em suas experiências na guerra de libertação da Argélia.

Segundo ele, o importante era vacinar o maior número de pessoas no menor tempo possível, em vez de seguir os protocolos de vacinação individual. Ele argumentava que, agindo assim, não apenas protegíamos o indivíduo, mas também criávamos uma resistência comunitária que impediria a propagação da doença. Eu estava imediatamente convencido, mas outros colegas eram mais céticos e até acusavam essa abordagem de ser uma conivência com o regime militar.

Arriscamos e fomos em frente com a vacinação em massa, com base na lógica de que a imunidade coletiva seria mais eficaz para eliminar a epidemia do que qualquer outro método. O resultado foi uma redução significativa no número de casos e mortes. Esse sucesso não apenas validou a abordagem do médico francês, mas também reforçou minha crença de que o poder da saúde pública reside na sua capacidade de afetar o bem-estar de uma comunidade inteira, e não apenas de indivíduos isolados.

Pessoas acusaram-nos de estar fazendo um “pacto” com o regime militar apenas porque queríamos resolver uma crise de saúde pública que estava tirando vidas. Mas aquele momento me ensinou algo: em saúde pública, às vezes você tem que correr riscos e ir contra a maré para fazer o que acredita ser certo. Afinal, o objetivo final é salvar vidas, e nessa campanha de vacinação em massa, nós conseguimos fazer exatamente isso.

Até hoje, a eficácia da vacina da meningite em um nível individual ainda é discutida, mas a eficácia no controle de um surto epidêmico é indiscutível. A vacinação em massa demonstrou que é possível salvar mais vidas em um curto período de tempo do que se tentássemos fazer isso individualmente. Esse episódio reafirmou para mim o poder e a importância da saúde pública. Não foi uma vitória pessoal, mas uma vitória para o campo da saúde pública e, mais importante ainda, uma vitória para as inúmeras pessoas que foram salvas. Isso solidificou minha crença de que, no âmbito da saúde pública, o coletivo sempre deve vir primeiro.

Nelson Ibañez – Seixas, agora, nós temos que fazer a continuação… o Ministério da Saúde

JCS: Durante seu trabalho no Instituto de Pesquisa da Amazônia (IPA), Dr. Paulo de Almeida Machado sofreu um infarto que o forçou a repensar suas prioridades. Nesse período, ele teve a oportunidade de hospedar o presidente Geisel, que estava de tour pelo Brasil. Os dois tiveram conversas aprofundadas sobre saúde pública e os desafios da Amazônia, levando Geisel a oferecer a Dr. Paulo o cargo de Ministro da Saúde. Dr. Paulo aceitou, mas sob condições que lhe permitiriam formar uma equipe de acordo com sua visão, incluindo profissionais mais jovens.

Embora o motivo para a escolha de Dr. Paulo permaneça incerto, ele e outros na equipe ficaram intrigados com a decisão de Geisel de incluir novos talentos, considerando que a equipe já existente estava envelhecendo e necessitava de renovação. Mesmo com diversas especulações sobre os critérios de sua seleção, o fato é que sua inclusão serviu como catalisador para novas iniciativas em saúde pública, permitindo um equilíbrio entre juventude e experiência dentro da equipe.

A complexidade dos desafios em saúde pública exigiu esse equilíbrio, e Dr. Paulo viu a nomeação como uma chance de fazer contribuições significativas em um campo que considerava sua verdadeira vocação. Ainda que os detalhes por trás da decisão de Geisel permaneçam desconhecidos, a oportunidade permitiu a Dr. Paulo, e à equipe como um todo, abordar de maneira mais eficaz os desafios multifacetados da saúde pública no Brasil.

Nelson Ibañez – então você foi convidado pelo Dr. Paulo para ir para o MS?

JCS:  Dr Paulo era meticuloso em seu trabalho e eu sempre tive muito respeito por ele, mesmo se nunca chegamos a entender os detalhes por trás de nossas respectivas escolhas para os papéis que desempenhamos.

Lembro-me bem daquele dilema moral que enfrentei ao considerar o cargo em um governo militar. Na época, estava bastante claro em minha mente que não queria ser visto como colaboracionista. A história já nos mostrou como a colaboração pode validar regimes autoritários e até mudar os valores coletivos de uma sociedade.

E então, havia a questão da minha família. Eu não queria tomar uma decisão dessas sem o consentimento da Rita. Quando conversei com ela, ela foi bem direta: ela iria se ela gostasse de Brasília. E isso também foi um fator determinante. Não podia pedir a ela que mudasse toda a sua vida sem saber se ela estaria feliz com essa decisão.

E a coincidência de encontrar o Montoro naquele voo para Brasília foi quase providencial. Nós nos conhecíamos desde os dias de estudante, então houve uma certa camaradagem ali. Eu sabia que ele entenderia as complexidades da situação, e ele de fato entendeu. A Rita queria conhecer Brasília, e eu tinha uma decisão importante a tomar. Com o Montoro ali, senti como se tivesse um conselheiro sensato para me ajudar a navegar por essa decisão complexa.

Ele ficou surpreso quando mencionei que o cargo seria de Secretário Geral do Ministério, especialmente porque eu nunca tinha conhecido pessoalmente o Ministro na época. Mas isso também fala volumes sobre como as decisões eram tomadas — nem sempre as coisas eram tão diretas ou transparentes quanto gostaríamos que fossem.

Em última análise, era uma decisão que envolvia tanto considerações profissionais quanto pessoais. Tive que ponderar o impacto de minha escolha não apenas em minha carreira, mas também em minha família e nos valores pelos quais eu queria me posicionar. Foi um período de muita introspecção e discussão, tanto internamente quanto com as pessoas que eu confiava. E no final das contas, eu fiquei satisfeito com a decisão que tomei, apesar de todas as incertezas e complexidades que a cercavam.

Nelson Ibañez – Que idade você estava, Seixas?

JCS: 37 anos. Quando Montoro jogou minha preocupação “na lata do lixo” e começou a conversar com Rita sobre o quão maravilhosa era Brasília, percebi que ele já tinha decidido que eu iria aceitar o cargo de Secretário Geral. Ele focou em resolver a questão mais imediata, que era o conforto e a aceitação de Rita ao novo ambiente. Isso, para mim, já indicava um pouco do político habilidoso e estratégico que ele era.

Mais tarde, durante o jantar, tive uma das conversas mais francas e reveladoras com Montoro. Ele me contou, em sigilo, que Geisel tinha planos de redemocratizar o país e que ele, Montoro, tinha sido convidado para ser um ator chave nesse processo. Aquela revelação foi um divisor de águas para mim. Ela mudou o cenário inteiro e colocou minhas preocupações éticas sobre trabalhar para o governo em uma nova luz. Eu também apresentei a ele a minha perspectiva, argumentando que talvez eu pudesse ser mais útil fora do governo, onde eu poderia expressar minhas opiniões livremente e ser um crítico construtivo.

Mas Montoro também me fez ver outro aspecto: a oportunidade única de conhecer o Brasil profundamente, algo que muitos de nós, paulistas “esclarecidos”, raramente fazemos. A noção de que eu poderia perder a “arrogância inútil” que ele dizia ser uma característica de muitos paulistas foi persuasiva. Ele me assegurou que eu sempre poderia contar com ele para aconselhamento e apoio, e isso também pesou na minha decisão.

Então eu aceitei, com a consciência mais tranquila e um novo senso de propósito. O fato de que eu poderia “pedir demissão” a qualquer momento também foi um fator de conforto, assim como o convite eventual de Montoro para trabalhar mais diretamente com ele mais tarde.

Nelson Ibañez: nos conte o resultado de um dos seus trabalhos em Brasília …

JCS:  O trabalho em Brasília foi desafiador e iluminador de várias maneiras, uma delas foi em relação a carreira de sanitarista. Em São Paulo a carreira era para sair multiprofissional, ficou só de médicos; esse defeito nós corrigimos quando fomos, para o Ministério da Saúde, nós fizemos uma carreira de sanitarista multiprofissional, né, e com um cuidado especial, não é para subir lá para cima só os privilegiados por algumas, né… por exemplo, a tendência seria se fizesse uma carreira, é que os médicos iriam ficar no topo e os outros iam demorar muito para chegar no topo. Não, cada profissão tinha uma carreira de acesso que era própria entre eles, tá, portanto todos poderiam fazer a carreira em todos os graus da carreira.

Nelson Ibañez:  depois você voltou para São Paulo no governo Montoro?

JCS: isso minha experiência ganhou uma outra dimensão quando Montoro me chamou de volta. Trabalhar com ele em um nível mais próximo foi completamente diferente do ambiente que eu tinha experimentado com Maluf. O foco aqui era mais voltado para o povo, mesmo que muitos dos projetos que ele queria implementar não tivessem o apoio financeiro necessário na época.

O fato de que alguns dos programas sociais que Montoro tinha em mente assemelhavam-se às políticas posteriormente implementadas por Dilma mostra como ele estava à frente de seu tempo. Porém, as limitações orçamentárias e a falta de apoio de figuras como José Serra e João Sayad fizeram com que muitas dessas ideias inovadoras não saíssem do papel.

Foi um período de aprendizado e crescimento para mim, e uma oportunidade para contribuir, mesmo que de forma limitada, para a direção que o país estava tomando. A orientação e o apoio de Montoro durante esse período foram inestimáveis, e eu olho para trás nesse capítulo da minha vida com uma mistura de gratidão e sabedoria adquirida.

Nelson Ibañez – você citou o Serra e o Sayad que ocuparam cargos no governo…

JCS: O ambiente político e econômico sob o governo de Montoro era extremamente desafiador. A falta de fundos até para pagar salários tornava muito difícil implementar novos programas sociais ou políticas mais ambiciosas. Montoro teve que equilibrar ideais elevados de redemocratização e desenvolvimento com a dura realidade de restrições financeiras. Essa situação revelou as complexidades inerentes à governança e ofereceu lições valiosas sobre a necessidade de ser flexível e pragmático, mesmo quando confrontado com ideais elevados e circunstâncias difíceis.

Nelson Ibañez – estamos em 82, quando Montoro ganha eleição…

Josiane Oliveira – Eu acho que a gente pode continuar falando sobre esse seu período no ministério e depois a gente volta…

JCS: Olhando para trás, vejo que cada etapa da minha carreira em saúde pública e medicina preventiva foi crucial para a minha formação. Desde os dias como auxiliar de ensino na Faculdade de Saúde Pública até minha prática médica na Santa Casa e Emilio Ribas, cada experiência contribuiu para minha visão holística da saúde no Brasil. Tive o privilégio de trabalhar com mentores incríveis como o Professor Mascarenhas, que enxergou em mim uma “liderança” pouco convencional, mas essencial. Isso sem mencionar a oportunidade de aprofundar meus conhecimentos através de estudos no Chile e da prática em planejamento de orçamento para a saúde.

Se há algo que esses anos me ensinaram, é o valor da experiência prática combinada com o conhecimento teórico. Aprendi que saúde pública não é apenas um campo técnico, mas também um campo intensamente político e social. Trabalhar em diferentes administrações, desde o governo de Ademar de Barros até o de Abreu Sodré, me mostrou como as mudanças na liderança podem afetar a entrega de serviços de saúde, e como é crucial adaptar-se para continuar fazendo a diferença.

Quanto ao futuro, bem, a saúde pública é um campo em constante mudança, com novas políticas, desafios e crises sempre surgindo. Mas o cerne da minha prática e filosofia continua o mesmo: focar em uma abordagem preventiva e coletiva para melhorar a vida das pessoas. Este ethos tem sido meu guia desde o início.

Em minha época na secretaria, uma das realizações que mais me orgulho não foi algo que “eu fiz”, mas algo que “nós fizemos”. Trata-se da criação da carreira de médico sanitarista. Foi uma grande vitória para a saúde coletiva no Brasil. Isso permitiu que médicos atuassem nos centros de saúde de uma forma mais integrada, ganhando o apoio popular no processo. A desvantagem foi que isso se tornou altamente partidarizado, o que acabou diluindo o foco da nossa luta.

Mas aqui vem a parte emocionante: tudo isso coincidiu com um período de redemocratização no Brasil. Isso permitiu que profissionais preocupados tanto com a saúde quanto com a democratização pudessem colaborar. Esse ambiente favoreceu a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que se solidificou na Constituinte. Embora eu não seja fã do nome “SUS” por vários motivos, é inegável que ele é único. Sua singularidade está em sua estrutura trilateral, envolvendo os três níveis de governo.

Toda essa evolução do sistema de saúde mostrou que quando técnicos e a base popular se unem, transformações significativas podem acontecer. Isso é notável especialmente aqui em São Paulo, onde frequentemente víamos pessoas da periferia indo à capital para discutir sobre a Constituinte. E, nessa confluência de vontades e esforços, surgiram as bases do sistema de saúde que conhecemos hoje. É uma tapeçaria multifacetada, uma que eu estou orgulhoso de ter ajudado a tecer, ainda que apenas um pouco.

Nelson Ibañez – você falou que você tem um quadro de funcionalismo público ligado a saúde, o primeiro que não é da geração em que se dá a reforma, mas que também já costurava ideias desde a previdência até esses quadros e no nível nacional … Você estava colocando a questão do Leser e da possibilidade que a reforma da secretaria que ele ficou a serviço do centro de saúde, criou as coordenações… ela possibilitou também, de certa forma um…

JCS: Começar a trabalhar com assistência. E eu acho que uma coisa que é fundamental: ela possibilitou a formação de um quadro de profissionais tempo integral para saúde.

Nelson Ibañez – Que é a carreira de sanitarista…

JCS: Sem dúvida, um dos grandes desafios da gestão pública na área da saúde sempre foi a tentativa de criar uma carreira verdadeiramente multiprofissional. Mas como eu sempre digo, os “econométricos” — e friso bem essa palavra porque não os considero economistas de fato — sempre se colocam como barreiras. “Não tem dinheiro”, eles dizem, e assim tentam nos confinar dentro de modelos que são mais convenientes para os números, mas não necessariamente para a saúde pública.

Quando comecei a trabalhar na secretaria, naquele conselho técnico-administrativo, a primeira coisa que fiz foi trazer à mesa a questão das bolsas para cursos de saúde pública. A escolha dos beneficiados, porém, me irritava. Não eram os mais engajados ou os que tinham ideias inovadoras que eram escolhidos. Eram aqueles que, francamente, já não tinham mais interesse em contribuir, aqueles que estavam ali só para marcar presença.

E aí vem o Leser, com a ideia de pagar bem aos sanitaristas. E ele estava certo. O pagamento adequado atraiu profissionais qualificados. Na época, conseguimos assinar a relação dos primeiros dez aprovados por concurso. Isso pode não parecer grande coisa hoje, mas foi revolucionário naquele momento. Desmentiu todas aquelas teorias de que “a juventude de hoje não quer servir ao país”. Quando oferecemos uma carreira atraente, com remuneração adequada, as pessoas aparecem. E não só em São Paulo. Isso se espalhou pelo Brasil inteiro.

Então, quando tive a oportunidade de atuar no Ministério da Saúde, uma das primeiras coisas que fizemos foi implementar uma carreira multiprofissional para sanitaristas. E fizemos de uma forma inclusiva, de modo que todas as profissões tivessem acesso a todas as faixas da carreira, sem que os médicos ocupassem automaticamente os postos mais altos. Esse movimento foi crucial para garantir que diferentes profissionais da saúde pudessem contribuir, em pé de igualdade, para o bem-estar da população.

É um processo contínuo, claro. Não resolvemos todos os problemas, mas demos passos significativos. E essa troca, esse diálogo contínuo entre profissionais que entendem a complexidade da saúde pública, é o que permite que a gente vá além. Se você tenta falar de saúde pública com um ótimo cirurgião cardíaco que não entende nada do assunto, a conversa se esgota em minutos. Mas quando você tem uma equipe multiprofissional, engajada, você não apenas mantém o diálogo, como também aprofunda a discussão. E é isso que move o sistema de saúde para frente.

Josiane Oliveira – Professor, além dos sanitaristas, quem o senhor identifica como protagonista junto com esse grupo?

JCS: A formação acadêmica sempre foi uma questão interessante para mim, especialmente na área da saúde. Naquela época, você não encontrava nenhuma formação técnico-científica, muito menos Sociologia ou Psicologia, nos currículos das escolas médicas. Se você quisesse aprender algo fora do currículo médico tradicional, tinha que entrar para algum grupo político ou social, porque a formação era extremamente limitada.

Vou te contar, quando fui presidente do centro acadêmico durante a faculdade, eu estava mergulhado em responsabilidades financeiras e contábeis para as quais não estava preparado. Não tinha a menor ideia de como gerir finanças, nem pessoais, nem de uma organização. O curso de medicina, por mais rigoroso que fosse em termos científicos, deixava uma grande lacuna nesse sentido. No mundo real, não dá para administrar uma instituição de saúde com a mesma lógica da “dona de casa cuidando do seu lar”, como se dizia.

Por sorte, consegui um colega cujo pai era um contador muito rigoroso e competente. Graças a ele, a contabilidade do centro acadêmico ficou em ordem. E isso foi tão importante que quando veio o regime de 1964, com a cassação de professores e tudo mais, o nosso centro acadêmico foi poupado, precisamente porque estava tudo em ordem nas contas. Foi minha primeira lição sobre a importância do conhecimento técnico e administrativo, algo que até hoje considero fundamental para qualquer profissional, mas especialmente para os que atuam na área da saúde.

Acredito que o advento da medicina preventiva e social foi um divisor de águas nesse sentido. Começou a preparar profissionais de saúde, não só médicos, mas também enfermeiros e outros, para uma realidade mais abrangente, mais complexa. Não estávamos mais falando apenas de diagnósticos e tratamentos, mas de sistemas de saúde, de gestão, de interações sociais e, por que não, de política.

Os professores das faculdades desempenharam um papel crucial nessa mudança de paradigma. Eles não só formavam sanitaristas, mas influenciavam toda uma geração de profissionais da saúde que, de repente, começava a entender que sua atuação ia muito além do consultório ou do hospital. Era uma visão mais holística, que considerava o indivíduo não apenas como um paciente, mas como parte de uma comunidade, inserido em um sistema.

E assim fomos evoluindo, tanto na medicina quanto em áreas correlatas como a enfermagem. Tudo foi se ajustando, se adaptando a essa nova realidade. O resultado é que hoje temos um corpo de profissionais mais bem preparados e, embora ainda haja muito o que melhorar, acredito que estamos em um caminho mais acertado. É uma longa jornada, mas cada passo conta.

Nelson Ibañez – Você saiu, quando o Leser saiu?

JCS: O período do Geisel e as nuances de trabalhar na área da saúde pública naquela época. Eu me lembro muito bem da sensação de desânimo que se instalou em mim após algumas conversas sobre o cenário da saúde. Era como se estivéssemos sempre à beira de algo grandioso, mas amarrados por inúmeras restrições — algumas delas ideológicas, outras financeiras ou burocráticas. Naquele momento, eu decidi seguir o conselho de Mascarenhas e me afastei para fazer meu doutoramento.

Quando voltei ao cenário público em 74, durante o governo Geisel, a situação foi diferente, e devo dizer, até surpreendente. O ministro da Saúde da época estava disposto a adotar a separação entre assistência e saúde pública, algo que para mim fazia todo o sentido. Mas veio o ‘porém’— ficamos com uma organização focada principalmente em assistência reabilitadora para casos neuropsíquicos e físicos. Era como se o sistema não pudesse simplesmente se desprender totalmente de um modelo assistencialista.

E essa foi a época do PIASS — Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento — focado nos estados do Nordeste. Olhando para trás, entendo que foi uma iniciativa primária e mal executada, mas naquele momento, era o que se podia fazer. Toda a estrutura era basicamente assistencial, e a ideia era fornecer aos estados os recursos necessários para manter um médico de clínica geral, visitadores e alguns auxiliares de enfermagem. E o dinheiro vinha do orçamento da Previdência, justamente porque o programa era fundamentalmente assistencial.

A Fundação SESP teve um papel importante em desenhar esse programa, mas preferiu não se envolver diretamente na execução. Era uma época em que os governos estaduais tinham um papel mais ativo, recebendo e administrando os recursos. E era um programa construído em conjunto com o Ministério da Previdência, com o governo do estado no comando, decidindo como os recursos seriam alocados e utilizados.

Hoje, quando vejo iniciativas como a chegada dos médicos cubanos, entendo que o cenário mudou, mas ainda enfrentamos desafios similares. São profissionais que frequentemente trabalham sozinhos, lidando com a realidade do que é possível fazer em termos de saúde pública no país.

A verdade é que essas experiências moldam a nossa compreensão de como a saúde pública deveria funcionar e quais são as verdadeiras barreiras para o progresso. Mesmo quando as ações não são perfeitas, elas nos dão um terreno sólido para avançar, aprender e, espero, fazer melhor da próxima vez.

Nelson Ibañez – PIASS (Programa de Saúde e Saneamento)

JCS: A gente sabia que tinha que separar a assistência da saúde pública. Era mais do que uma intuição, era uma certeza baseada em dados, experiências e até mesmo um pouco de sabedoria que a gente tinha adquirido por trabalhar nesse campo. A separação se torna crucial para que as estratégias de prevenção e cuidado possam ser eficazes de forma independente, cada uma com suas próprias metas e recursos.

Aí temos a Fundação SESP. Eles eram cautelosos, né? Não queriam entrar de primeira, tinham medo de que as coisas dessem errado, que o dinheiro não viesse, que o projeto fracassasse. Mas depois, eles quiseram participar, mas com as próprias condições. Quando fui conversar com o ministro sobre isso, tive que concordar com muitos dos pontos deles. A Fundação SESP tinha um know-how valioso, então nós achávamos que poderíamos aprender algo com eles também. Era uma questão de encontrar um meio-termo que fizesse sentido para ambos os lados.

Quanto à formação do médico, esse ponto foi interessante, e um tanto contundente, vou te falar. Fui questionado sobre onde me formei, como se isso fosse determinar a qualidade do meu pensamento ou experiência. Mas o ponto importante aqui é que a formação médica deveria incorporar um espírito crítico, uma mente questionadora. Médicos não devem ficar isolados, presos em suas próprias dúvidas; eles precisam de colegas para consultas, para discussões, para crescer profissionalmente. Isso também foi um momento de reflexão para mim.

Agora, no caso das grandes endemias como a esquistossomose, a gente trouxe novas abordagens, entende? Tivemos até orientação internacional para isso. E os resultados foram fantásticos! A gente saiu de uma estratégia ineficaz de controle de caramujos para um tratamento em massa que realmente fez a diferença. A grande questão é a continuidade. Porque se você para o ciclo da doença se reinicia, né?

Foi um período riquíssimo de aprendizado e de ação, sem dúvida. Mas o mais frustrante nessa jornada toda é que a continuidade não é garantida. Uma coisa é você implementar algo que funciona; outra coisa é fazer com que continue funcionando. E infelizmente, esse é um dos maiores desafios na saúde pública: a continuidade e a sustentabilidade das intervenções bem-sucedidas. Então, é isso, essa foi a minha experiência e essas são as reflexões que eu tiro dela.

Acho que conseguimos avançar em muitas frentes, mas ainda há muito a ser feito, especialmente se quisermos que essas mudanças sejam duradouras e verdadeiramente transformadoras.

Abordei inicialmente os desafios da esquistossomose, e percebi que tratar indivíduos isoladamente não iria resolver o problema em escala comunitária. Fizemos então um tratamento em massa, medindo seus efeitos, e encontramos uma queda significativa nas taxas de infecção.

Essa abordagem coletiva, que vai além do tratamento individual, nos levou a repensar outras doenças também. Quando a epidemia de meningite se alastrou, utilizamos uma estratégia similar, baseada nas recomendações de um especialista francês. Ele nos convenceu que a vacinação em massa rápida poderia atingir não só a imunidade individual, mas também ter um efeito coletivo no ambiente. E aí, em apenas dez dias, a epidemia em São Paulo foi contida.

A mesma lógica foi posteriormente adotada para outras doenças, como a AIDS e a varíola. No fundo, sempre mantive a crença de que a saúde pública deve ser tratada coletivamente. A individualização do tratamento, que é mais cara e consome mais recursos, muitas vezes acaba ofuscando as necessidades da saúde pública em uma escala mais ampla.

Essa experiência acabou por influenciar outros programas e políticas de saúde no Brasil, incluindo a nossa bem-sucedida campanha contra a AIDS. Ficou claro que medidas preventivas e terapêuticas podem e devem andar de mãos dadas. No entanto, um desafio que permanece é equilibrar o financiamento entre a assistência médica individualizada e as necessidades mais amplas da saúde pública. Isso é algo que ainda precisamos resolver.

Portanto, minha jornada tem sido uma de aprendizado contínuo, adaptação e aplicação de abordagens inovadoras para problemas de saúde pública complexos. E ainda tem muito a ser feito.

Nelson Ibañez – Só mais uma coisa, que você participou, mas só para dar uma pincelada, você tá falando, é a lei do Sistema Nacional de Saúde de 75, que foi redefinição de papeis, mas você já tinha colocado. O presidente quer pra cá previdência… pra cá, e isso consolida… na tua opinião, essa lei ela ajuda a avançar no sentido de, ajudou a avançar no sentido do processo posterior?

JCS: O período em questão foi marcante para a saúde pública no Brasil, resgatando a confiança de muitos, incluindo a minha, de que melhorias no sistema eram possíveis. O momento foi particularmente significativo por coincidir com a redemocratização do país. Embora houvesse avanços, também enfrentamos desafios como a inadequada alocação de recursos na previdência social e uma série de privatizações que, para mim, foram excessivas.

Influências políticas, exemplificadas pelo Programa de Atendimento à Saúde (PAS) em São Paulo, demonstraram o poder da política na melhoria da atenção básica em saúde. Por outro lado, a gestão de pessoal emergiu como um problema crítico, afetando a qualidade do serviço de saúde. Experiências como a da SUCAN, especializada em vacinação em massa, mostraram o que pode ser alcançado com dedicação e treinamento adequado dos profissionais.

Quanto à minha jornada pessoal, encontrei desafios e aprendizados significativos. Trabalhei em diversas capacidades administrativas e vi líderes bem-intencionados desistirem devido à complexidade da política e da administração da saúde. A realidade do sistema é impactada não apenas por decisões políticas e administrativas, mas também por fatores sociais e econômicos, incluindo a escassez de recursos e a crescente demanda impulsionada pelas mudanças constitucionais e pela redemocratização.

Além dos desafios de financiamento e gestão, o sistema enfrenta a percepção de ineficiência e desvio de recursos, exacerbados pela pobreza e falta de recursos. A luta por financiamento é constante e torna-se ainda mais complicada à medida que a medicina se torna mais cara e a demanda aumenta, impulsionada pelo reconhecimento da saúde como um direito constitucional.

No final, a experiência foi um período de aprendizado profundo. Tornou-se claro que a melhoria do sistema de saúde pública do Brasil é uma questão complexa que vai além da administração e requer uma compreensão holística dos diversos fatores sociais, econômicos e históricos que o influenciam. É uma realidade complexa que nenhum ministro ou administrador pode resolver sozinho, mas o período me ensinou que melhorias significativas são possíveis com a gestão e o investimento adequados.

Josiane Oliveira – Precisa do orçamento.

JCS: Precisa de orçamento! A lembrança dessas conversas sobre o financiamento da saúde no Brasil me vem à mente com um misto de frustração e esclarecimento. Sim, orçamento é o coração de qualquer sistema público, especialmente de saúde. Mas deixem-me contar, a verba não é um fim em si mesma; ela é um meio. Um meio para providenciar atendimento médico digno, educação e prevenção, pesquisa e, acima de tudo, a dignidade humana.

É verdade, minha luta por mais financiamento da saúde pública se deparou com o ceticismo dos poderes Executivo e Legislativo. Mas não era apenas uma questão de solicitar mais dinheiro; era uma questão de realocar recursos de maneira mais eficaz e eficiente. A intenção era retomar o CPMF exclusivamente para a saúde, uma ideia que, é claro, encontrou resistência. Os políticos geralmente têm medo de novos impostos ou contribuições porque isso pode ser impopular. Eles sempre dizem, “de onde vamos tirar mais dinheiro?”. Mas eu insisti, “Não estou pedindo para você tirar de algum lugar, estou pedindo novo dinheiro, porque o problema é novo, a demanda é nova”.

E este ponto é crucial. A Constituição de 1988 mudou o jogo ao tornar a saúde um direito de todos e um dever do Estado. Não foi uma decisão tomada de ânimo leve; foi o resultado de uma assembleia constituinte. Um marco legal e social que apontou a direção para onde deveríamos ir como nação. Se o Estado tem a obrigação constitucional de garantir a saúde como um direito, então tem também a obrigação de fornecer os meios para tornar isso uma realidade. E esses meios requerem financiamento. Não apenas dinheiro, mas dinheiro direcionado com inteligência, transparência e eficácia.

Então, sim, me disseram que eu nunca conseguiria. Mas a questão não era essa. A questão era que se não lutássemos por esse “novo dinheiro”, estaríamos falhando em nossa responsabilidade constitucional e moral. E mais importante, estaríamos falhando com os milhões de brasileiros que dependem do sistema de saúde público.

Alguém tinha que tomar essa briga. Alguém tinha que dizer, “o dinheiro é importante e eu vou lutar por ele porque é a única forma de viabilizar um sistema de saúde digno para todos”. E mesmo com todas as adversidades, mesmo com ministros dizendo que era impossível, essa era uma batalha que precisava ser travada. Isso foi, e ainda é, a questão central em qualquer discussão sobre a saúde pública no Brasil. E é uma discussão que, estou certo, ainda tem um longo caminho a percorrer.

Josiane Oliveira – Como é que foi essa negociação?

JCS: Naquele momento crítico, Doutor Adib, Doutor Guedes e eu estávamos perfeitamente cientes de que a questão do financiamento para o sistema de saúde público do Brasil era vital. Doutor Adib, com sua vasta experiência e conhecimento, era nossa escolha óbvia para liderar a luta por mais recursos. Quando o questionamos se ele estaria disposto a assumir essa enorme responsabilidade, eu deixei claro que a batalha por financiamento não era uma questão trivial; era a chave para transformar a saúde pública em um direito acessível a todos os brasileiros.

Essas negociações foram mais do que meras conversas administrativas; eram sobre o futuro da saúde pública no Brasil. Ter alguém como Doutor Adib à frente desse esforço poderia colocar o país no caminho certo para garantir o acesso à saúde como um direito humano fundamental. Ele havia sido nosso mentor e entendia que a luta por financiamento era o primeiro e crucial passo para atingir esse objetivo.

Josiane Oliveira – Mas a ideia da CPMF, ela surgiu…

JCS: O ministro Adib tinha um conhecimento abrangente que nos fazia sentir quase invejosos. Ele era versado em tópicos que iam da agricultura à arte. Um dia, ele me puxou para o lado e disse: “Vou falar com o Malan para conseguir mais dinheiro para o Ministério da Saúde.”

Chegando lá, o Malan fez a mesma pergunta: “O que o senhor deseja?” Adib respondeu: “Mais dinheiro para o Ministério da Saúde.” Malan abriu o orçamento da República e começou a discutir as verbas. Adib interveio com detalhes tão minuciosos que Malan disse: “Você conhece o orçamento melhor do que eu.”

No entanto, Adib tinha outra fonte de recursos em mente. Queria retomar a CPMF, um tributo que já tinha existido no governo anterior. Ele disse que só faria o pedido se tivesse certeza de duas coisas: que não causaria inflação e que não seria regressivo, ou seja, prejudicial para as pessoas com menos dinheiro.

Para obter essas respostas, Adib recorreu também ao ministro Serra. A conversa foi similar, mas com menos burocracia. Serra prometeu estudar as questões. Adib aguardou, mas não obteve resposta de nenhum dos dois ministros.

Insatisfeito, ele então procurou a deputada federal e economista Conceição Tavares. Ela esclareceu as dúvidas e afirmou que a CPMF não seria nem inflacionária nem regressiva. Porém, revelou que votaria contra a medida no Congresso devido a diretrizes partidárias.

Fiquei surpreso com a postura do partido, mas isso também é democracia. O processo político nem sempre segue o que consideramos lógico ou justo, e foi uma lição valiosa para mim. Depois, houve uma série de manobras políticas que complicaram ainda mais a situação. Quando o tributo finalmente parecia estar a ponto de ser aprovado no Senado, uma manobra nos pegou de surpresa e mostrou que ainda tínhamos muito a aprender sobre o jogo político.

Nelson Ibañez: você teve ainda uma participação na gestão Sarney?

JCS: Ainda no final do governo Sarney, o ministro Seigo Tsuzuki e eu discutimos a necessidade de duas ações fundamentais para melhorar o Sistema Único de Saúde (SUS). Primeiro, a criação de uma lei orgânica para tornar a Constituição mais operacional no âmbito da saúde. Segundo a fusão da assistência da previdência social com o Ministério da Saúde, algo que eu ajudaria a realizar.

Contrariando o senso comum, eu ressaltei que a Constituição não declara que os serviços de saúde devem ser gratuitos. Argumentei que o dinheiro pode servir como um elemento regulador do consumo de serviços de saúde para evitar desperdícios. Isso foi evidenciado pelo caso do Dante Pazzanese, um hospital que parou de cobrar por seus serviços e viu o consumo dobrar, indicando que quando as pessoas não têm um incentivo financeiro, elas tendem a usar mais recursos do que realmente precisam.

Enfatizei que a falta de uma base financeira sólida torna o SUS vulnerável a riscos como corrupção e desperdício. Falei da minha experiência pessoal em cirurgias onde materiais como gazes eram desperdiçados. Adicionalmente, discuti a tendência perigosa de alocar recursos de forma inadequada se deixada nas mãos de políticos e do público sem orientação adequada, pois a saúde é uma questão emocionalmente carregada. É fundamental ter padrões e controles rigorosos para que o sistema funcione eficazmente.

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