Em um país onde as discussões sobre a saúde pública estão constantemente no epicentro dos debates nacionais, poucos têm a profundidade de experiência e conhecimento que José da Silva Guedes oferece. Com uma trajetória acadêmica e profissional, ele é uma figura central para entender os desafios e oportunidades que permeiam o cenário da saúde no Brasil e todo o seu processor de construção.

Formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), com um doutorado em Saúde Pública também pela USP, Dr. Guedes acumula uma série de títulos e posições que o colocam em um patamar diferenciado de especialistas. Ele serviu como Secretário Municipal de Saúde de São Paulo entre 1983 e 1985, foi Assessor Técnico da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo de 1979 a 1983 e também atuou como Secretário de Estado da Saúde de São Paulo de 1995 a 2002. Além disso, em 1992, teve uma passagem como presidente do Instituto Nacional da Previdência Social. Sua carreira também inclui consultoria para a Organização Pan-Americana de Saúde na área de Epidemiologia.

Em uma entrevista exclusiva, conduzida pelos pesquisadores Nelson Ibañez e Josiane Roza de Oliveira, em 18 de outubro de 2015, no Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, Dr. Guedes se dispõe a desbravar os intricados caminhos que levaram à estruturação e à atual configuração do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. A conversa vai além e adentra temas emergentes, como o papel e os desafios das Organizações Sociais de Saúde (OSs), as complexidades da gestão de saúde em tempos de crise financeira e as disputas políticas e ideológicas que moldam o cenário da saúde pública no país.

O resultado deste diálogo é uma fonte de informação e análise indispensável para acadêmicos, profissionais da saúde, gestores públicos e todos aqueles que se interessam pelo futuro do sistema de saúde no Brasil. Com perspectivas que equilibram o rigor técnico e a sensibilidade social, esta entrevista é não apenas um documento histórico valioso, mas também uma oportunidade de aprender com alguém que tem sido tanto testemunha quanto protagonista das transformações na saúde pública brasileira.

Nelson Ibañez – Guedes, você pode começar falando um pouco da sua trajetória até chegar na medicina, até chegar na saúde pública, como foi esse período da sua vida?

José da Silva Guedes: Minha trajetória na saúde pública tem sido enriquecedora e começa em circunstâncias bastante únicas. Fui parte de um grupo seleto de profissionais — médicos e sanitaristas — que teve a oportunidade de viver e moldar um período transformador na saúde pública do Brasil. Trabalhamos na instauração do Sistema Único de Saúde (SUS) na nova Constituição Brasileira, um marco na reforma sanitária do país.

Minha origem humilde em uma família pobre do bairro do Belém, nascido em 1936, e a convivência com comunidades rurais, graças à pequena fazenda de café do meu avô, forneceram o pano de fundo e a motivação para minha escolha profissional. Assim, quando entrei na faculdade de medicina, já tinha uma inclinação pouco comum para a época: eu queria ser sanitarista.

Ao longo do curso, descobri afinidades com professores das áreas de microbiologia e parasitologia. Foi no quinto ano da faculdade que reencontrei minha verdadeira vocação através do estudo da medicina preventiva, uma área ainda sem muito prestígio na academia naquele tempo. Então, havia dois professores para ensinar medicina preventiva para os quintanistas: o Donald Wilson, que era o clínico do HC, e o Geraldo Bourroul, que era um clínico e sanitarista, médico da Santa Casa de São Paulo. Esses professores foram cruciais nessa fase.

Nelson Ibañez – Que ano foi sua formatura em medicina?

JSG: Formei-me em 1961 e, no ano seguinte, tornei-me a auxiliar de ensino em medicina preventiva. Em 1963, comecei meu curso de saúde pública, e foi nesse mesmo ano que ocorreu outro ponto de inflexão na minha carreira. Fui convidado para integrar o corpo docente de três novas escolas médicas em São Paulo: a Unicamp em Campinas, a Unesp em Botucatu, e a Santa Casa em São Paulo. Este último convite veio do próprio professor Bourroul.

Nelson Ibañez – E você aceitou…

JSG: Na Santa Casa, junto com uma geração de profissionais jovens e ambiciosos, tivemos a chance de inovar. Nosso espírito era de fazer algo melhor do que já existia, e isso foi intensificado pelo ambiente da época, que era muito mais rigoroso em relação à abertura de novas escolas de medicina.

Essa fase de minha vida estabeleceu um padrão para a reforma na educação médica que se alinhava com mudanças internacionais, sobretudo nos Estados Unidos. Diferentemente da formação mais especializada, nossa abordagem era mais integral, focada na prevenção e no cuidado com a população como um todo.

Nelson Ibañez – Como foi essa experiência com a formação médica nesse período?

JSG: Então, no contexto da formação médica e da saúde pública no Brasil, meu envolvimento começou nos anos 60, durante um período político muito conturbado, marcado pelo golpe militar de 1964. Naquele tempo, eu tinha uma visão bem clara: a formação médica precisava ser mais do que apenas a transmissão de conhecimento técnico. Precisava ser também uma formação humanista, voltada para a prevenção e o cuidado integral da saúde.

Foi nesse ambiente que conheci Emílio Athié, cirurgião da Santa Casa, e o professor de Farmacologia de Ribeirão Preto, que era membro do Conselho Superior de Ensino do Brasil. Eles compartilhavam a mesma visão: criar uma instituição de ensino moderna, estruturada em departamentos, e não em cadeiras, como era o modelo vigente na USP. O apoio do MEC (Ministério da Educação) foi fundamental para tornar essa visão uma realidade.

Nelson Ibañez – E o primeiro Centro de Saúde Escola da Barra Funda por que foi pensado nesse novo modelo?

JSG: Sim, na Santa Casa resolvemos que seria diferente, resolvemos criar um centro de saúde escola, porque além da ideia da prevenção etc., a gente gostaria que os alunos se acostumassem com uma ideia de saúde pública, que implicava em ter uma área de população vinculada ao departamento, o departamento seria responsável pelo cuidado integral da saúde.

Nelson Ibañez – Nesse período você atuou também na SES de São Paulo …

JSG: A chegada de Walter Leser como secretário de Saúde de São Paulo em 1967 trouxe um novo fôlego para a saúde pública. Leser era uma pessoa profundamente comprometida com a ideia de uma carreira de médicos sanitaristas, algo inovador para a época. Sua gestão resultou em reformas significativas, mas enfrentou um problema crítico: a falta de médicos especializados em saúde pública. A faculdade de saúde pública formava apenas 30 médicos sanitaristas por ano, e desses, apenas uma fração eram brasileiros.

Foi uma época de experimentações e de busca de novos caminhos. Em 1970, com a saída do governo Abreu Sodré, houve novamente uma mudança no cenário político. Mario Machado de Lemos assumiu a secretaria e tinha a perspectiva de ser Ministro da Saúde. Mas as mudanças no governo federal trouxeram mais uma vez Leser de volta em 1975, durante o governo Geisel.

Nelson Ibañez – Neste momento quais experiências marcaram sua trajetória?

JSG: Nesse cenário, minha própria trajetória foi marcada por uma série de experiências ricas em instituições como a Faculdade de Saúde Pública da USP e a Escola Paulista de Medicina. Participei de encontros internacionais, como o de Viña del Mar, que reuniu importantes nomes da medicina preventiva na América Latina. Esses foram anos de intenso aprendizado e de envolvimento direto nas transformações da saúde pública e da educação médica no Brasil.

Certamente, 1974 e os anos circundantes foram momentos de transformação palpável no campo da medicina e da saúde pública no Brasil. A chegada de uma nova administração federal e as mudanças no Ministério da Saúde indicavam que havia espaço para iniciativas mais progressistas.

Nelson Ibañez – Com foi a volta do Leser para o comando da SES SP?

JSG: Walter Leser, ao reassumir a Secretaria de Saúde de São Paulo, conseguiu dar vazão ao seu projeto de carreira para médicos sanitaristas que ele havia idealizado nos anos anteriores. A parceria com a Faculdade de Saúde Pública e o Ministério da Saúde para criar cursos curtos de saúde pública foi crucial nesse processo. Os cursos, mais condensados, permitiram uma formação mais ágil de profissionais que poderiam preencher as lacunas no sistema de saúde pública.

Esse momento coincidiu com uma mudança mais ampla na formação médica em todo o Brasil. Desde a Conferência de Viña del Mar em 1963, houve um movimento crescente para criar departamentos de medicina preventiva e ofertas de residência nesta área. A rede de profissionais interessados em medicina preventiva e saúde pública estava crescendo exponencialmente.

Nelson Ibañez – Qual o papel das residências de medicina preventiva?

JSG: As residências em medicina preventiva desempenharam um papel crucial como incubadoras desses novos profissionais. O novo modelo de “curso curto”, portanto, encontrou um público ávido e preparado. As estrelas alinharam-se: os médicos produzidos pelas residências agora tinham uma carreira na saúde pública à qual poderiam aspirar, graças ao novo esquema que Leser conseguiu implementar.

Nelson Ibañez – Na sua visão esse foi um fato relevante para a mudança?

JSG: Esta combinação de fatores fez mais do que apenas preencher vagas em hospitais e clínicas; ela mudou o perfil da medicina preventiva e da saúde pública no Brasil. O que pode parecer cansativo ou complicado para contar foi, na verdade, uma revolução silenciosa, mas significativa no campo da saúde pública.

O convênio entre instituições educacionais e o governo para treinamento em saúde pública não era apenas uma solução logística, mas sim um compromisso ideológico com um modelo de saúde mais preventivo e menos reativo. A carreira de sanitarista, nesse sentido, não era apenas um posto de trabalho, mas uma vocação.

De fato, aqueles foram anos brilhantes. Vimos a convergência de forças diversas: mudanças políticas, avanços no pensamento médico e acadêmico, e transformações sociais que fizeram com que as peças do quebra-cabeça finalmente se encaixassem.

Em retrospecto, podemos ver como as políticas e estratégias implementadas durante aqueles anos foram fundamentais para o que se seguiu nas décadas seguintes. O legado desse período é profundo e ainda se faz sentir em diversos aspectos da saúde pública e da formação médica no Brasil. Mesmo com todas as oscilações políticas e desafios enfrentados, esse período lançou as bases para um modelo de saúde mais inclusivo e preventivo no país.

Nelson Ibañez – Qual foi a sua participação no governo Leser na primeira gestão, como é que você se inseriu no governo da gestão do Leser?

JSG: Minha inserção na primeira gestão do Walter Leser na Secretaria de Saúde de São Paulo foi uma experiência de aprendizado incomparável. Quando Leser assumiu o cargo, ficou claro que ele não queria apenas preencher as cadeiras com rostos familiares; ele estava em busca de um novo vigor, um novo tipo de energia que poderia ajudar a materializar suas visões progressistas para o sistema de saúde pública. E isso é onde eu e outros como o Mercadante e Seixas entramos em cena.

Leser estava montando um gabinete de direção e precisava de profissionais que compartilhassem sua visão. E ele não queria apenas administradores; ele queria pessoas que entendessem a ciência da saúde pública, a sociologia que impulsiona as decisões em saúde, e a importância da prevenção sobre o tratamento paliativo.

Quando fui convidado para fazer parte da equipe, percebi que não seria apenas um funcionário; eu seria um parceiro estratégico, um membro de um “think tank” de especialistas dedicados a moldar e implementar uma nova forma de fazer as coisas. A convivência com Leser era intensa e gratificante. Ele nos deu o tipo de acesso e influência que raramente se vê em ambientes governamentais. Nós não estávamos apenas cumprindo ordens; estávamos ajudando a formular políticas, analisando dados, projetando programas e, essencialmente, redefinindo o que a saúde pública deveria significar no Estado de São Paulo.

Nossa equipe era uma integração interessante. Tínhamos pessoas de diversas instituições, como a Santa Casa e a USP, e também de Ribeirão. Durante esse período, eu estava atuando tanto na Santa Casa quanto na USP, o que me dava uma perspectiva multifacetada. O fato de que alguns de nós vinham de fundos acadêmicos enquanto outros traziam experiência prática criava uma espécie de simbiose criativa. Cada um de nós tinha algo único para trazer para a mesa, e Leser soube como harmonizar essas contribuições em uma visão coerente.

Nelson Ibañez – Essa união institucional foi importante, então?

Nós éramos o que você poderia chamar de um time de apoio ao Leser, mas sinto que éramos mais do que isso. Éramos colaboradores, pensadores e executores. E acredito que essa combinação de talentos e perspectivas foi um dos motivos pelos quais muitas das iniciativas de Leser não apenas saíram do papel, mas também tiveram um impacto duradouro.

Naquela época, nós estávamos todos imbuídos de um sentido de propósito, cientes de que estávamos participando de algo maior do que nós mesmos. E eu acho que esse é o legado que Leser deixou: a ideia de que a saúde pública não é apenas uma instituição, mas um movimento, um esforço coletivo para criar uma sociedade mais saudável e justa. Foi um privilégio ser parte disso.

Josiane Oliveira – Você trabalhava numa área específica nessa rede de apoio?

JSG: Foi um período de ouro. Um momento em que eu sentia que estava no lugar certo, na hora certa, fazendo o que deveria ser feito. Minha trajetória estava intimamente ligada à transição da medicina brasileira para um enfoque mais preventivo, algo que eu achava tremendamente estimulante e necessário.

Na Santa Casa, estávamos com Ayrosa Galvão e Bernardo Bedrikow, criando um departamento que não apenas ensinaria os princípios básicos da medicina, mas também introduziria nossos alunos aos conceitos de saúde pública, epidemiologia e prevenção. Este foi um grande avanço na época, considerando que a maioria dos currículos médicos estava quase inteiramente focada no tratamento de doenças, em vez de sua prevenção.

Minha própria carga de trabalho era uma miscelânea fascinante que capturava esse espírito de mudança. Eu estava ensinando epidemiologia, estatística e ciências sociais aplicadas à medicina, além de trabalhar em medicina do trabalho. E isso não era tudo. Também estava atuando como médico no Hospital Emilio Ribas, um dos principais centros para doenças infecciosas no país.

 Nelson Ibañez – Você então tinha uma atuação também na área clínica…

JSG: O que tornava tudo isso tão extraordinário era o contexto em que estávamos operando. No Emilio Ribas, enfrentávamos uma enxurrada de casos de doenças infecciosas, incluindo varíola. Só um dos pavilhões tinha cerca de 100 pacientes internados com essa doença. Naquela época, o Brasil ainda estava lutando para aumentar suas taxas de vacinação e combater doenças que eram evitáveis.

Ser capaz de transitar entre esses dois mundos – o da educação médica voltada para a prevenção e o tratamento direto de doenças infecciosas – era emocionante. Sentia como se estivesse no epicentro de uma grande transformação, como se estivesse tanto no problema quanto na solução.

Nelson Ibañez – Esse foi um momento mágico…

JSG: Para um jovem profissional que tinha acabado de se formar em 1961, essa amplitude de responsabilidades e oportunidades foi, para dizer o mínimo, elétrica. Eu estava fazendo tudo o que amava, e tudo isso parecia ter um propósito e um impacto real. Acredito que esse equilíbrio entre ensino e prática clínica me deu uma visão abrangente da medicina e da saúde pública que muitos dos meus colegas não tinham. Isso me ajudou a abordar a saúde não apenas como uma série de problemas clínicos a serem resolvidos, mas como um ecossistema complexo onde prevenção, educação e tratamento se entrelaçam.

E quando você acha que o trabalho que está fazendo não é apenas gratificante, mas também significativo e vital para a melhoria da saúde pública, isso não é apenas uma carreira. É uma vocação. E eu não poderia ter pedido um começo melhor.

Nelson Ibañez: Dado que você mencionou a presença de 100 pacientes com varíola no pavilhão do Hospital Emilio Ribas e que você foi uma figura instrumental na erradicação da varíola no estado, poderia nos contar mais sobre sua experiência e o processo de combate a essa doença em São Paulo?

JSG: O período que você descreve foi, sem dúvida, uma época tumultuada, mas também transformadora para a saúde pública no Brasil, especialmente no estado de São Paulo. O contexto em que o Leser assumiu a Secretaria de Saúde marcou um ponto de inflexão na forma como lidávamos com questões de saúde pública e epidemiologia. Seu papel no Emilio Ribas e na Santa Casa foi um exemplo perfeito do tipo de polivalência e dinamismo necessários para enfrentar desafios tão complexos quanto a varíola e a difteria, doenças que, como você mencionou, tinham impactos sociais e médicos imensos.

A sinergia entre as diferentes entidades e setores da saúde pública foi crucial. Sua menção sobre o treinamento de equipes para entender não apenas como administrar a vacina, mas também como armazená-la e como mobilizar a comunidade para a vacinação, reflete uma abordagem sistêmica para erradicar a doença. Esse é um ponto crítico que muitas vezes é negligenciado nas discussões sobre campanhas de vacinação: não é apenas sobre ter a vacina, é sobre ter um sistema eficaz para distribuí-la e administrá-la de forma adequada.

E o que é mais impressionante é que, além do seu papel como sanitarista, você manteve um papel clínico significativo. Isso permitiu que você estivesse simultaneamente no “chão de fábrica”, tratando pacientes em um ambiente hospitalar, e também no “quadro estratégico”, pensando em como políticas e campanhas de saúde pública poderiam ser mais eficazes. Este é um testemunho raro de um médico que consegue abranger tanto os detalhes quanto o quadro mais amplo.

Sua experiência em lidar com mil casos de difteria em um ano sozinho reflete o quão grave era a situação da saúde pública na época. E ainda assim, por meio do treinamento e do engajamento com outras equipes e comunidades médicas, como aquelas de Porto Alegre e do Rio de Janeiro, houve uma mobilização significativa para transformar o cenário da saúde pública.

É fascinante ouvir como as pessoas treinadas em Porto Alegre não apenas contribuíram para a erradicação da varíola no Brasil, mas também desempenharam papéis fundamentais em nível global através da Organização Mundial da Saúde. O trabalho em erradicar a varíola na África é um feito notável e um verdadeiro testemunho da qualidade e da dedicação dos profissionais de saúde formados e mobilizados durante essa era.

Josiane Oliveira – E essa experiência de intercâmbio, inter-relação entre outros estados, outros países, como é que ela se dá? Ela tinha um órgão que organizava?

JSG: A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Panamericana da Saúde parecem ter sido entidades chaves na coordenação dessas atividades. Isso é notável, especialmente quando se leva em conta o contexto da saúde pública na América Latina na época.

O Chile, por exemplo, parecia estar à frente em termos de estrutura de saúde pública e planejamento, servindo como um destino para brasileiros que buscavam aprimorar seus conhecimentos. Isso sugere uma troca muito produtiva de expertise e recursos humanos.

Josiane Oliveira: Você poderia nos dar uma visão detalhada sobre o desenvolvimento do programa de vacinação em São Paulo? Estou particularmente interessado em entender o processo de treinamento de pessoal, a infraestrutura necessária que foi estabelecida, e como se deu a formação dos profissionais envolvidos.

JSG: Eu me lembro bem de como as coisas eram quando começamos com o programa de vacinação em São Paulo. Estávamos operando a partir desta mesma casa onde estamos agora, sob a direção de um anestesista. As vacinas eram mantidas aqui, produzidas pelo Instituto Butantan. Os postos de saúde eram pequenos e enfrentavam vários desafios operacionais. Na época, a vacinação acontecia na entrada da Santa Casa, sob o sol, sem grandes protocolos.

Veja, a gente trabalhou muito mal com vacinação até 1967. Com a entrada do Leser e o apoio para a área da saúde pública, você passa a ter o trabalho intenso no sentido de garantir vacina para todo mundo; começar a pensar em campanhas e tal. Varíola era um problema mundial, o ministério tinha uma programação de erradicação da varíola. Então, a gente tentava trabalhar nisso. O que fazer, como trabalhar para você tentar erradicar a varíola; é preciso vacinar as pessoas, é preciso criar uma estrutura de gente que saiba conservar a vacina, aplicar a vacina e gente que esteja atraindo população para ser vacinada. Esse é o grande segredo.

Então nossa jornada mudou quando Leser assumiu como secretário de saúde e mais tarde, em 1978, foi sucedido por Adib Jatene, um renomado cirurgião. Adib chegou com uma visão diferente, uma energia que reacendeu nosso entusiasmo. Ele queria planejamento, queria orçamento e tinha a ambição de fazer algo grande para a saúde pública.

Nelson Ibañez – Como foi a inserção do cirurgião Jatene na SES?

JSG: O momento decisivo veio quando Adib aceitou um convite para uma reunião comunitária em São Mateus, na zona leste. Contra os conselhos de muitos, ele foi e enfrentou uma plateia crítica. Não assinou os documentos que lhe foram apresentados, mas propôs um diálogo. Ele convidou as pessoas para seu gabinete, e assim, nasceu o Programa Metropolitano de Saúde, iniciado por São Mateus.

Fomos desafiados pelo público a cumprir prazos rigorosos para a construção dos centros de saúde. Para superar as expectativas, Adib sugeriu um modelo provisório, em que os moradores identificariam casas que poderiam ser usadas como centros de saúde temporários enquanto as instalações permanentes eram construídas.

A questão não era apenas sobre a construção de infraestruturas físicas; era também sobre construir uma relação de confiança e respeito mútuo entre o governo e a população. E eu acho que conseguimos isso. A frase que ficou foi: “Quando o povo empurra, a secretaria anda; quando o povo para a secretaria para”.

Nelson Ibañez – Vocês permaneceram na gestão Jatene?

JSG: Nós tínhamos uma equipe jovem, um secretário que não era um sanitarista, mas que estava disposto a levar adiante o trabalho que havia sido iniciado por Leser. De fato, foi uma época de inovação e parceria entre o governo e o povo. Tínhamos um clima de participação da população e respeito do governo. E isso, acredito eu, foi a verdadeira vitória de nosso programa de saúde em São Paulo.

Josiane Oliveira: Você poderia falar sobre a evolução na inclusão dos movimentos populares?

JSG: Foi uma época de grandes transformações e ativismo, especialmente na região de São Paulo e suas adjacências. É fascinante como a geografia e as vias de transporte, ou a falta delas, também desempenharam um papel significativo nas dinâmicas sociais e políticas do período. Nesse contexto, Itaquera e São Mateus eram mais acessíveis via ABCD do que do centro da cidade, o que deve ter tido um impacto considerável na forma como os movimentos populares e operários se desenvolveram e interagiram.

A presença de um movimento operário forte, acompanhado por grupos religiosos, criou um ambiente singular para a mobilização coletiva. Essa mistura de influências sindicais, religiosas e populares na Zona Leste parece ter criado uma ecologia social rica, onde diferentes grupos poderiam se unir em torno de causas comuns. Isso é particularmente interessante porque sugere que a luta por direitos e representação não estava limitada a uma única esfera; era multifacetada e apoiada por diversas instituições e comunidades.

Nelson Ibañez – Esse período que pode ser caracterizado como de abertura democrática de 1978 a início de 80 marcou uma transição importante para a saúde em São Paulo?

JSG: O período que você descreve, de 1978 até os primeiros anos da década de 1980, foi uma época crucial para a saúde pública e a política em São Paulo e, mais amplamente, no Brasil. Isso foi particularmente evidente na transição entre diferentes administrações e nos diferentes focos ideológicos e metodológicos que elas trouxeram para a saúde pública.

Sob a gestão de Jatene como secretário de saúde, podemos supor que houve um certo nível de estabilização ou consolidação no sistema de saúde, talvez estabelecendo as bases para o que viria a seguir. No entanto, a verdadeira metamorfose parece ter ocorrido quando as novas administrações começaram a incorporar mais pessoas, especialmente jovens, como você menciona na era de Leser.

Este é um aspecto vital: a renovação e expansão da equipe com indivíduos que trazem novas ideias e energias. Este influxo de pessoas mais jovens, incluindo sanitaristas e residentes de saúde pública, não apenas revitalizou o sistema, mas também começou a formar uma massa crítica de especialistas e ativistas comprometidos com a reforma da saúde pública.

Nelson Ibañez – E a eleição do Montoro, primeira direta para o governo do Estado?

JSG: Avançamos então para o ano de 1982, um ano simbólico que marcou a volta das eleições para governador, destacando a diminuição gradual da influência militar que o Brasil tinha sofrido desde o golpe de 1964. Este ano simbolizou não apenas a “abertura” política, mas também uma forma de “descongelamento” social após quase duas décadas de repressão. A geração que cresceu sob este regime estava agora emergindo como uma força significativa, influenciada por várias ideologias e partidos, como o PC, PCdoB e PT. O interessante aqui é a interação sinérgica entre os movimentos políticos e os profissionais de saúde, ambos emergentes e ambos buscando reformas significativas.

 A campanha de Montoro para governador então se torna um marco, uma vez que representa a incorporação dessas diferentes correntes em um projeto político mais amplo. O fato de que a equipe de saúde já existente estava ativamente envolvida em sua campanha sugere uma maturação dessa “equipe” ao longo do tempo, bem como uma convergência de objetivos entre profissionais da saúde e políticos progressistas.

Em 1982 é um ano crucial que marca um aumento significativo na participação política de profissionais da área da saúde no Brasil. Nesse mesmo ano, com a eleição de Montoro como governador, Yunes assume o cargo de secretário de saúde. Este momento é emblemático, pois ilustra como a interface entre saúde e política começou a ser mais estreitamente entrelaçada durante esse período.

O ciclo eleitoral de 1982 desencadeou uma série de mudanças no setor da saúde no Brasil. Embora as eleições tenham ocorrido em outubro de 1982, o mandato efetivo só começou em 1983. Nesse contexto, uma equipe multidisciplinar se formou em torno do governo Montoro, incluindo figuras como Nelson Ibañez, que havia feito residência na Santa Casa, e Yunes e Seixas, que eram meus alunos na Faculdade de Medicina da USP.

Nelson Ibañez – Você nesse período assume a Secretaria Municipal de saúde?

JSG: Também é notável que, embora as eleições para prefeito ainda não fossem uma realidade, a eleição do governador serviu como uma espécie de barômetro para a democratização emergente e as mudanças sociais. A saúde pública, neste cenário, não era apenas um setor isolado, mas parte integrante de um movimento muito mais amplo para a reforma social e política.

A transição para 1983 foi um momento que representou uma inflexão no cenário político da saúde pública. Nesse ano, Mário Covas foi nomeado prefeito de São Paulo por Montoro e recebeu aprovação da Assembleia Legislativa. Isso significou que, pela primeira vez, tínhamos governos com inclinações populares e preocupações com o bem-estar público tanto no estado quanto na prefeitura.

Além disso, muitos membros dessa equipe já haviam trabalhado no governo Adib, particularmente no Projeto São Mateus. Este projeto posteriormente evoluiu para se tornar o Programa Metropolitano de Saúde, expandindo seu escopo para abranger toda a área metropolitana de São Paulo. Portanto, a experiência e a expertise adquiridas ao longo desses anos foram canalizadas para fortalecer as políticas de saúde pública, refletindo uma sinergia entre as esferas de governo.

Nelson Ibañez – Faz parte do nosso acervo um documento que é assinado por você, pelo Jatene, pelo Edson Kenji e o Roberto Barradas o diagnóstico da proposta para a região metropolitana. Tem um documento que propunha a construção de 400 e tantas UBS… 44 hospitais na região metropolitana.

 JSG: Um dos marcos desse período foi o projeto que Nelson dirigiu, um programa originado no nível estadual que posteriormente expandiu sua abrangência para a área metropolitana de São Paulo.

A singularidade deste programa estava em seu financiamento colaborativo, com um secretário estadual coordenando recursos junto a um secretário municipal para sua execução. Esta colaboração não foi um evento isolado; em vez disso, ela pavimentou o caminho para futuras expansões. Quando Nelson permaneceu como secretário por mais dois anos, o programa foi além de São Mateus para cobrir toda a região metropolitana, transformando-se em um plano ambicioso que incluía a criação de cerca de 400 centros de saúde e mais de 40 hospitais.

Esta evolução coincide com uma fase de articulação com o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). Até então, o foco tinha sido majoritariamente em saúde pública e centros de saúde locais. Contudo, com a integração das esferas municipais e estaduais, uma visão mais holística e escalável da saúde pública começou a tomar forma.

Nelson Ibañez – Esse projeto é financiado pelo Banco Mundial …

JSG: O mais notável sobre este período é a entrada de um novo ator no cenário: o Banco Mundial. Esta instituição financeira internacional decidiu, pela primeira vez, investir exclusivamente em um programa de saúde. Tradicionalmente, o Banco Mundial só investia em saúde quando ela estava vinculada a projetos de desenvolvimento mais amplos, que poderiam incluir elementos como infraestrutura ou meio ambiente. A decisão de financiar este projeto marcou, portanto, uma mudança significativa em sua política, e serviu como um endosso internacional da importância e viabilidade do programa de saúde que estava sendo desenvolvido.

Este conjunto de circunstâncias e atores ilustra como a saúde pública no Brasil, e mais especificamente em São Paulo, estava em um estado de transição e crescimento. Era uma era de inovação, de derrubar barreiras tradicionais e de explorar novas formas de financiamento e governança. E, ao centro de tudo, estava uma equipe dedicada e visionária que entendia que o sucesso em saúde pública exigia uma abordagem integrada e colaborativa.

Nelson Ibañez – Guedes, fala um pouco da sua atuação como secretário municipal de saúde, a relação com o Covas. Como é que você foi convidado, Guedes, para ser secretário municipal de saúde?

JSG: Minha jornada até a secretaria municipal de saúde não foi uma trajetória linear, mas uma série de eventos interligados e experiências acumuladas que me levaram a esse ponto. O momento foi particularmente auspicioso: Covas havia assumido a prefeitura em maio, após ser indicado pelo governador Montoro e aprovado pela assembleia legislativa. Eu já tinha um histórico de trabalho na área de saúde, tendo atuado com Leser e Adib em projetos focados nas periferias. Além disso, mantinha um relacionamento próximo com a equipe de saúde que estava no poder estadual.

 Naquele período, com a indicação de Covas, uma disputa interna emergiu pelo cargo de secretário municipal de saúde. Cinco candidatos, inicialmente, estavam no páreo, o que atraiu a atenção da imprensa e gerou certo grau de controvérsia. Decidi então conversar com Yunes, o secretário de Montoro, manifestando meu desejo e argumentando minhas qualificações para ocupar o cargo. Foi Arnaldo Madeira, então vereador, quem realmente impulsionou minha candidatura perante Covas.

 Era um momento estratégico, pois já tínhamos um projeto aprovado pelo Banco Mundial e recursos estavam a caminho. O desafio principal era planejar e otimizar a “máquina” administrativa da saúde, preparando-a para receber esses recursos e ampliar os serviços.

O meu relacionamento com Covas foi, sem dúvida, um dos aspectos mais gratificantes da experiência. Apesar de nunca ter sido seu eleitor — até porque suas candidaturas anteriores foram concentradas em Santos — nós compartilhávamos uma profunda consideração e respeito pela população. Covas tinha uma habilidade excepcional de conectar-se com as pessoas, algo que me identificava muito com ele.

Além disso, naquele período havia um esforço significativo para integrar o INAMPS com a área da saúde pública municipal. Antes disso, a coordenação do INAMPS — um órgão federal — ditava as regras em São Paulo, gerenciando hospitais e ambulatórios, enquanto a secretaria municipal tinha apenas um número limitado de centros de saúde e não estava diretamente vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS), que ainda não existia como conhecemos hoje.

Josiane Oliveira – Havia um centro de saúde administrado pelo município e um centro de saúde administrado pelo estado, era isso? Tinham funções diferentes?

JSG: Nos anos que antecederam a minha gestão como secretário de saúde, os centros de saúde municipais eram, frequentemente, monovalentes. Ou seja, cada unidade era especializada em uma única área, como ginecologia e obstetrícia ou pediatria, o que impedia uma atuação mais holística. Além disso, o modelo de atendimento variava consideravelmente, com um mesmo centro atendendo a diferentes necessidades em turnos distintos, como vacinação à tarde e doenças infantis pela manhã.

Em meio a esse cenário, uma das nossas maiores conquistas foi a proposta para a área metropolitana, posteriormente dirigida pelo Nelson (Ibañez), que visava uniformizar a estrutura e os serviços oferecidos pelos centros de saúde. A ideia era criar um modelo mais integrado e eficiente, o que de certa forma estava em linha com discussões mais amplas que ocorriam no país.

Nelson Ibañez – Qual a importância nas mudanças da esfera federal?

JSG: Falar sobre essas questões nos leva também à esfera nacional e à importância das Conferências Nacionais de Saúde. O Ministério da Saúde, criado em 1953, tinha previstas essas conferências como um mecanismo de atualização e debate. No entanto, esses encontros eram poucos e insuficientes. Até 1975, apenas quatro conferências haviam sido realizadas, em sua maioria de caráter altamente administrativo e burocrático.

A 6ª Conferência Nacional de Saúde, coordenada por João Yunes em 1975, foi um marco porque começou a abrir espaço para um debate mais inclusivo e estratégico, introduzindo a discussão sobre um programa integrado de saúde. No entanto, as tensões institucionais e burocráticas ainda eram um obstáculo. Por exemplo, o Ministério da Saúde e Assistência Social tinha mais poder financeiro e político do que o próprio Ministério da Saúde. A proposta de criar uma rede de saúde unificada foi diluída, e cada ministério ficou “preferentemente” encarregado de uma área específica.

Já na 7ª Conferência Nacional de Saúde em 1977, as discussões avançaram, mas ainda não o suficiente para estabelecer uma única rede de saúde. Duas redes distintas foram mantidas: uma médico-sanitária e outra médico-assistencial, cada uma com seu próprio conjunto de responsabilidades e enfoques. Além disso, essa conferência marcou uma mudança significativa na composição dos participantes, incluindo escolas de medicina e acadêmicos, o que enriqueceu as discussões.

Portanto, minha gestão no município de São Paulo foi moldada e influenciada por um ambiente mais amplo de mudanças, debates e tensões tanto no âmbito local quanto nacional.

Josiane Oliveira– O grupo de São Paulo estava apoiando alguma proposta específica?

JSG: A transição de um modelo fragmentado e especializado para uma abordagem mais integrada e holística não foi uma tarefa simples. Como você mencionou, a ideia de uma única rede de saúde, defendida pelo grupo de São Paulo em 1977, encontrou resistência significativa em níveis mais altos do governo.

A 7ª Conferência Nacional de Saúde em 1977 foi um marco. Ela expôs as contradições inerentes aos modelos existentes e também revelou as tensões políticas e burocráticas por trás dos debates sobre reformas no sistema de saúde. Interessante notar que o conceito de dupla rede, que separava as funções médico-sanitárias das médico-hospitalares, foi uma proposta do próprio Ministério da Saúde. E ainda mais surpreendente é o fato de que a conferência acabou por rejeitar essa proposta, optando por uma única rede de saúde.

O policiamento e a censura na conferência que você mencionou são demonstrativos de quão sensível e politizado este assunto havia se tornado. Os debates sobre a estrutura ideal do sistema de saúde tocavam não apenas em questões técnicas, mas também em ideologias e visões de mundo que estavam em jogo naquele período da história brasileira.

A decisão subsequente de levar o debate para os estados foi uma manobra tática que, no caso de São Paulo, foi assumida de forma séria por Leser, então secretário estadual. A criação de uma comissão com diversas partes interessadas reflete o entendimento de que a reforma do sistema de saúde deveria ser um esforço coletivo. É digno de nota que a proposta resultante de São Paulo abordava não apenas a estrutura da rede de saúde, mas também os mecanismos de financiamento e governança, incluindo a criação de um fundo estadual de saúde.

O encontro com o então dirigente nacional do INAMPS, que você descreveu, ilustra o tipo de resistência e ceticismo que muitas vezes acompanham tentativas de reforma em larga escala. A preocupação com o orçamento e a capacidade administrativa reflete uma visão mais conservadora, que vê riscos substanciais em mudanças significativas.

A experiência que você compartilhou sugere que a luta por um sistema de saúde mais integrado e eficaz foi uma batalha árdua e longa. Não é surpreendente que o Sistema Único de Saúde (SUS), tal como o conhecemos hoje, tenha levado anos para se materializar e ainda enfrente desafios. Este episódio faz parte de um tapeçar mais amplo de esforços e contratempos na jornada para melhorar o sistema de saúde do Brasil. É uma lembrança de que grandes mudanças sistêmicas são raramente lineares ou fáceis, mas sim o resultado de debates complexos, negociações e até mesmo confrontos que ocorrem em vários níveis da sociedade.

Nelson Ibañez – Bem você pode especificar melhor esse ambiente?

JSG: Em 1982, eu estava imerso nos meandros da política e da administração de saúde no Brasil, um terreno complicado e minado de desafios. Yunes, que tinha iniciado seu governo, e eu, fomos confrontados com uma série de crises no INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). Havia cerca de 12 projetos distintos sendo considerados para reformar o sistema, abordando questões como tabelas hospitalares e irregularidades. Entre essas opções estava a proposta das AIS, ou Ações Integradas de Saúde.

O diretor do INAMPS no Rio de Janeiro naquele momento era Ezio Cordeiro, e as AIS, que ele defendia, pareciam ressoar com a nossa visão de uma única rede de saúde, envolvendo tanto o Estado quanto os municípios. Yunes e eu pegamos um voo para o Rio para discutir exatamente isso com Cordeiro. Conseguimos estabelecer, pela primeira vez, um convênio que envolvia o INAMPS, o estado e a prefeitura. Foi um marco.

A prefeitura de São Paulo se comprometeu a expandir o Programa Integrado de Saúde para toda a sua rede municipal. Fizemos o caso de que o INAMPS também deveria contribuir financeiramente para esta iniciativa. Afinal, era uma questão nacional, e o estado e o município já estavam contribuindo com recursos próprios. Nosso argumento era audacioso: queríamos que o INAMPS também investisse na rede pública, e não apenas nos hospitais privados e clínicas ambulatoriais.

Nos comprometemos a fazer a rede municipal funcionar de maneira mais eficiente em troca desse investimento. As unidades básicas de saúde de São Paulo passariam a funcionar 12 horas por dia, em vez das oito horas usuais. Também nos comprometemos a maximizar as taxas de ocupação dos leitos hospitalares, para demonstrar que estávamos usando os recursos de forma eficaz.

Foi um período de intensa negociação e atividade frenética. Naqueles dias, antes da existência do Sistema Único de Saúde (SUS), estávamos, de certo modo, projetando o que viria a ser o SUS no futuro. Nossa visão para as AIS em São Paulo foi um experimento na colaboração multilateral para a saúde pública, e talvez, um passo crucial no caminho para o sistema mais unificado que hoje conhecemos como SUS. Este episódio foi uma espécie de “pré-sonho” do SUS

Nelson Ibañez: O foco comunitário também foi uma marca do governo Covas, especialmente com as suas iniciativas de mutirão. No entanto, o episódio com Jatene no caminhão capturou muita atenção. Poderia nos detalhar como essa relação com os movimentos populares evoluiu durante seu período como secretário? Quais foram os desafios e oportunidades que você encontrou ao integrar essas iniciativas populares na gestão pública?

JSG: No âmbito estadual, a importância do engajamento popular já estava sendo reconhecida, principalmente através da implementação de conselhos populares de saúde. Essas iniciativas foram pioneiras, mas muitas vezes esbarraram em desafios específicos, como as diferenças socioeconômicas entre as regiões urbanas e rurais. O experimento liderado por Leser em permitir eleições para esses conselhos foi notável e sinalizou uma vontade de tornar a gestão da saúde mais democrática e participativa.

Ao discorrer sobre a rede estadual, fica evidente o peso do time de Leser na arquitetura da governança em saúde. Foi uma administração tão afinada com as demandas populares que a Secretaria da Saúde, então localizada na Doutor Arnaldo, frequentemente recebia ondas de cidadãos vindos em ônibus da Zona Leste, ansiosos para discutir seus anseios e reivindicações diretamente com Yunes e sua equipe. Foi uma mostra da articulação eficaz entre a população e a administração.

No âmbito legislativo, Leser foi instrumental em criar uma lei em 1967 que estabelecia a formação de conselhos populares de saúde em cada unidade hospitalar. Entretanto, a aplicabilidade dessa lei revelou-se questionável. Seu enfoque parecia inclinar-se para um certo elitismo, facilitando a constituição desses conselhos em cidades menores onde organizações como Lyons e Rotary estavam presentes.

Essa incongruência levou os ativistas de uma região em que Leser começou a trabalhar a pedir uma adaptação da lei. Eles organizaram uma eleição, acomodando mais de duas dezenas de centros de saúde em uma só área, e apresentaram o resultado a Leser. Diante do dilema entre o mandato popular e a letra da lei, Leser optou por honrar a escolha da comunidade. Ele oficializou o conselho eleito através do Diário Oficial, sem que ninguém questionasse a legitimidade desse ato.

Quando me envolvi com a rede municipal em 1983, percebi que essa cultura de participação cidadã não estava tão disseminada. Havia um receio palpável entre os gestores municipais quanto à abertura ao diálogo com a comunidade. Eles temiam para onde essa participação poderia levar a gestão de saúde.

Nelson Ibañez– E em 1991, 1992? Estávamos num momento pós-Constituinte, 91, há um processo de integração do INAMPS com o ministério da saúde, você tá mantido na estrutura do INAMPS …

JSG: Nesse período específico, não houve a desconstituição da estrutura do INAMPS. Na verdade, houve um esforço contínuo para aprimorar e adaptar a direção da instituição. O ponto de inflexão decisivo só veio em 1993, quando Gilson Carvalho conseguiu aprovar uma legislação que efetivamente retirou o INAMPS do cenário, permitindo que nós focássemos em novas dinâmicas institucionais. Até aquele momento, o trabalho foi conduzido mantendo as funções de ambos os órgãos em operação.

Josiane Oliveira – Saindo de lá, você volta para …

JSG: Saindo do INAMPS a gente volta para a Santa Casa. Em 1994, Covas venceu as eleições e sou chamando para a secretaria estadual de saúde num contexto pós-governo Quércia que nos deixou um estado em crise financeira. Ainda na campanha eleitoral de 1994, o governador Covas já havia delineado cinco prioridades na área da saúde, entre elas a implementação do SUS e a conclusão de hospitais inacabados. Ele estava comprometido com o fortalecimento das Santas Casas, que ele via como a verdadeira rede do SUS, e também com a garantia da participação social. Uma de suas palavras de ordem mais marcantes era: “Nenhuma obra será iniciada até que terminemos as que estão paradas”.

Nas reuniões estratégicas iniciais do governo, havia uma tensão palpável. Muitos argumentavam que, dado o aperto financeiro, certas iniciativas eram inviáveis. No entanto, Covas tinha uma visão de estado bem articulada e era firme em sua postura. Ele dizia que, se trabalhássemos de forma séria e focada durante os dois primeiros anos, teríamos flexibilidade para executar mais projetos posteriormente. E a realidade era grave; no primeiro mês de seu governo, não havia fundos suficientes até mesmo para pagar os salários dos funcionários ou para combustível em veículos de segurança pública.

Sob a sua gestão, e seguindo essa abordagem disciplinada, conseguimos concluir 18 hospitais. Covas foi reeleito, e apesar de seu falecimento um ano e pouco antes de concluir o segundo mandato, o período marcou uma nova era em termos de continuidade administrativa. Foi uma experiência singular que nos permitiu focar nas questões mais cruciais da saúde pública, trazendo seriedade e planejamento estratégico para uma área tão vital.

Nelson Ibañez – A implantação da OSS foi na sua gestão?

JSG:  Sim, a implantação das Organizações Sociais de Saúde (OSs) ocorreu durante minha gestão. O contexto era complexo: tínhamos 18 hospitais recém-construídos ou próximos de conclusão e um sério desafio de recursos humanos, agravado pela legislação estadual que limita os gastos com pessoal a 60% do orçamento. Em meio a essa situação, Fernando Henrique Cardoso era o Presidente e Bresser Pereira, o secretário do Planejamento. Eles conseguiram aprovar uma lei federal que pavimentou o caminho para as OSs, um modelo que posteriormente tivemos que adaptar à legislação estadual.

Esse foi um momento de virada. Para uma entidade se qualificar como Organização Social, ela tinha que cumprir uma série de requisitos rigorosos, como ter uma rede de saúde própria e demonstrar idoneidade. O governo, então, tinha o poder de selecionar qual OS assumiria cada unidade de saúde. Na época, esse era um novo conceito e não tínhamos o modelo competitivo de chamamento que vemos hoje. Nosso sucesso inicial pode ter sido facilitado pela escala relativamente menor dos projetos em relação ao tamanho do estado e pela disponibilidade de parceiros qualificados, como Santas Casas e escolas de medicina renomadas.

O cenário evoluiu consideravelmente desde então. Hoje, por exemplo, em São Paulo, 50% dos funcionários da saúde pública são contratados por OSs. Esse modelo tem desafios a serem resolvidos, especialmente em relação à renovação de contratos e à retenção de funcionários. No entanto, o impacto desse sistema foi crucial naquela época, permitindo a operacionalização rápida de hospitais recém-construídos. E vale lembrar que esse todo cenário se desenrolou em um contexto mais amplo, com debates em congressos e conferências nacionais que foram fundamentais para a configuração atual do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa foi uma experiência pioneira, e embora desafiadora, acredito que foi vital para a sustentabilidade e a expansão do sistema de saúde estadual. 

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