Em entrevista para o projeto Trajetória da Saúde em São Paulo: Instituições, Ideias e Atores, Gilberto Natalini compartilha sua longa caminhada na saúde pública e na política, marcada pela militância desde os anos de estudante até a atuação na institucionalização do SUS. Ele relembra momentos fundamentais de resistência durante a ditadura militar, o trabalho voluntário nas periferias de São Paulo e a articulação junto aos movimentos sociais na luta por saúde pública para todos. 

Natalini destaca sua participação ativa nas discussões e na implementação do SUS, ressaltando o papel da articulação com lideranças municipais e estaduais. Sua atuação no Conselho Municipal de Saúde (Cosems) e no Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems) foi essencial para impulsionar a municipalização e consolidar o sistema. A entrevista concedida ao coordenador do projeto, Nelson Ibañez, também aborda como ele ajudou a viabilizar a adesão de São Paulo ao SUS, colaborando com vereadores de diferentes espectros políticos, mesmo em posição de oposição ao governo de Marta Suplicy (2001 a 2004). 

A conversa ainda traz uma análise crítica do impacto das Organizações de Saúde (OS) na gestão pública e dos desafios enfrentados pelo SUS nos últimos anos, como o enfraquecimento das estruturas institucionais e a falta de controle rigoroso de recursos. Natalini reflete sobre a necessidade de superar a polarização política e reafirma a importância de uma gestão responsável para garantir o funcionamento do sistema. Em um momento de mudanças e incertezas, ele enfatiza que o legado do SUS precisa ser preservado por meio de colaboração e compromisso contínuos com a saúde pública. 

Nelson Ibañez: Para começar, gostaria que você contasse um pouco sobre sua trajetória, tanto pessoal quanto profissional, destacando sua inserção na área da saúde. 

Gilberto Natalini: Agradeço e parabenizo a dedicação de vocês em organizar a história do Sistema Único de Saúde (SUS) e da saúde pública, junto à luta do povo brasileiro por uma atenção à saúde digna e justa. Vou procurar ser breve, porque minha história é longa e tem muita coisa que aconteceu ao longo do caminho.   

Nasci no Rio de Janeiro e, em 1969, vim para São Paulo para prestar vestibular e estudar medicina – um sonho de vida. Desde criança, já tinha essa vontade. Meus avós moravam em São Paulo, então eu tinha parentes por aqui, mas meus pais ficaram em Campos dos Goytacazes, no interior do Rio, onde moravam na Usina São José. Peguei um ônibus da Itapemirim e cheguei a São Paulo apenas com uma maletinha na mão. Me inscrevi no cursinho, estudei intensamente por um ano, fiz o terceiro colegial aqui e passei no vestibular, o famoso  Centro de Seleção de Candidatos às Escolas Médicas (CESCEM), para entrar na Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp). 

Minha militância política começou ainda em 1964, no Rio de Janeiro, em meio ao início da ditadura militar, quando eu era estudante secundarista. Mas foi na Escola Paulista que realmente nos organizamos. Formamos um pequeno grupo de oposição ao regime militar. Não éramos muitos – dos 120 alunos da minha turma, talvez 20 participassem desse grupo. A repressão era intensa e a maioria dos alunos vinha de uma classe média mais alta, que em geral apoiava o governo. 

Mesmo assim, levantamos nossas bandeiras. Em 1970, começamos a defender o ensino gratuito e público, além de um sistema de saúde que também fosse público. A primeira vez que levantei essa discussão sobre saúde na Escola Paulista foi em uma assembleia de alunos, durante uma crise no Hospital São Paulo. As crises, como você sabe, Nelson, são recorrentes. Naquele momento, propus que a federalização do Hospital São Paulo seria a única solução possível para resolver ou ao menos reduzir os problemas. 

Claro, isso causou controvérsia. A federalização significava uma intervenção governamental, e houve resistência, mas muitos sabiam que eu tinha razão. Por conta dessa fala, acabei sendo perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Passei uma semana correndo deles pelo campus da Escola Paulista, porque o Serviço Nacional de Informações (SNI) tinha uma sala ao lado da diretoria da escola.  

Nelson: E como essa luta se materializou na prática, especialmente após sua formatura? Qual foi o impacto direto dessa experiência na sua trajetória profissional? 

Natalini: Era uma coisa terrível. Desde aquela época até hoje, tenho lutado por um sistema público de saúde que atenda a população com dignidade e valorize também os profissionais de saúde. Conquistamos muitas coisas, mas a luta começou cedo. 

Durante meu tempo na Escola Paulista de Medicina, onde me formei em 1975, fui preso em 1972 e levado ao DOI-CODI, onde sofri tortura nas mãos do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Lá conheci um operário chamado João Chile, da oposição metalúrgica, que vivia no Cangaíba. Na cela, ele nos provocou, dizendo que, após nos formarmos, acabaríamos tratando apenas de ricos e esqueceríamos nossos ideais de estudantes, como muitos fazem. 

Decidi provar que ele estava errado. Escondi o endereço dele na barra da calça e, até me formar, juntei um grupo de colegas para transformar nossa formação em ação concreta. Em janeiro de 1976, logo após a formatura, fui com mais 12 pessoas ao endereço do João Chile. Batemos à porta e eu disse: “A burguesia chegou. Cadê o povo para ser atendido?”. João quase desmaiou de surpresa, mas celebrou conosco. Levamos algumas tubaínas e frangos assados, e depois ele nos apresentou aos padres da igreja local, que tinha um ambulatório fechado por falta de médicos. 

Começamos a atender ali todos os sábados, e esse ambulatório funciona até hoje, após 48 anos, com o apoio de voluntários e da comunidade. Nosso objetivo sempre foi usar o atendimento e as necessidades individuais para mobilizar a população a melhorar a saúde coletiva do bairro e da região. 

Com o apoio de Dom Angélico Sândalo Bernardino, bispo da região na época e hoje bispo emérito, fortalecemos esse projeto. Criamos grupos de acompanhamento para grávidas, crianças, idosos, diabéticos e hipertensos – uma iniciativa que já antecipava o tipo de assistência comunitária integrada que viria a ser uma marca do SUS.  

Nelson: Além do atendimento médico voluntário, como essas experiências no Cangaíba se expandiram para outros aspectos da vida comunitária? De que forma a luta pela saúde se conectou com outras demandas sociais da região? 

Natalini: Em 1976, começamos a ampliar nossas atividades para além do ambulatório, levando educação sanitária diretamente às comunidades, favelas e bairros da Zona Leste de São Paulo, que era uma região muito diferente do que é hoje – mais pobre e com menos atenção à saúde. Nosso trabalho se estendeu a grandes assembleias e mobilizações, o que ajudou a impulsionar a construção de infraestrutura pública de saúde. 

Estivemos na linha de frente na conquista de aproximadamente 23 unidades básicas de saúde para a Zona Leste. Em 1979, organizamos uma assembleia importante com a presença de Adib Jatene, que na época era secretário de saúde do Estado sob o governo Maluf. Ele chegou sozinho, dirigindo seu próprio carro, o que nos impressionou. Naquela reunião, apresentamos uma pauta de 25 unidades básicas para a região. Jatene prometeu fazer o possível para atender aos pedidos e, de fato, diversas unidades daquela lista foram concretizadas, como as de Engenheiro Goulart e Cangaíba. 

Mas nossa luta não parou aí. Ela rapidamente se expandiu para outras necessidades fundamentais, como esgoto, água encanada e infraestrutura urbana. No Jardim Romano, onde hoje ocorrem enchentes, não havia água encanada. E lembro de uma grande assembleia no Parque Savoy City, em Itaquera, com cerca de 5 mil pessoas, onde pressionamos a Sabesp, até que finalmente levaram água para o bairro. 

A luta pela saúde nos mostrou que ela não se resume a consultas e medicamentos, mas abarca todas as condições de vida. Saúde é infraestrutura, é meio ambiente, é qualidade de vida. Foi essa realidade que nos fez compreender a profundidade do conceito de saúde em todas as suas dimensões. 

Nelson: Como o envolvimento de outros profissionais e lideranças na Zona Leste, como Eduardo Jorge e Carlos Neder, influenciou e ampliou o alcance das mobilizações pela saúde? De que maneira essa articulação contribuiu para a construção de um novo modelo de saúde? 

Natalini: Descobrimos que, sem um meio ambiente saudável, não há saúde para as pessoas. Foi com essa compreensão mais ampla que expandimos nossa atuação. Entre 1978 e 1979, Dom Angélico descobriu que tínhamos ligações com o Partido Comunista do Brasil (PCB) e que nosso trabalho no Cangaíba estava conectado com outras iniciativas na Zona Leste. 

Enquanto nosso grupo atendia de forma voluntária, o Eduardo Jorge e a Yamma Duarte, vindos do grupo de sanitaristas liderado por Walter Leser, se instalaram em São Mateus e Itaquera. Eles atuavam em unidades públicas, mas também realizavam reuniões e mobilizações com a população. Com o tempo, conseguimos levar figuras como Carlos Neder e Roberto Gouveia para trabalhar em Artur Alvim e Vila Nhocuné, fortalecendo o movimento em toda a Zona Leste. 

Juntamos forças com o José Augusto da Silva Ramos, que mais tarde seria prefeito de Diadema, e com outros aliados para discutir com a comunidade a construção de um novo modelo de saúde. Realizamos encontros teóricos importantes, como um na Câmara Municipal, que reuniu mais de 5 mil pessoas, provavelmente em 1978 ou 1979. 

Esses encontros foram essenciais para amadurecer as discussões sobre o que viria a ser o SUS. O modelo de saúde pública que defendíamos não nasceu apenas em gabinetes ou universidades, mas foi construído junto ao povo, em debates que envolviam diretamente a população e suas necessidades. 

Nelson: Esse Encontro Popular de Saúde, realizado na Câmara Municipal, tem registros que possam ser consultados? E como vocês lidaram com a necessidade de se reorganizar após o posicionamento do Dom Angélico sobre o vínculo com a Pastoral da Saúde? 

Natalini: Sim, está tudo registrado. Chama-se Encontro Popular de Saúde, e foi por volta de 1978. Não lembro a data exata, porque faz muito tempo, mas temos documentação completa. No livro que enviei para você, há algumas referências, e vou reunir todo o material digital que tenho: mídias, folhetos e exemplares dos boletins de saúde que produzíamos na época. Além disso, fizemos dois filmes com o Renato Tapajós, que também são parte importante desse acervo. 

Quando Dom Angélico percebeu que nosso grupo tinha vínculos com o Partido Comunista, ele nos chamou para uma conversa. Fui com o Júlio César Pereira, que era uma figura bem conhecida, mas que já faleceu. Também estavam envolvidos o Walter Feldman, o Jamil Murad, e outros médicos do Cangaíba. 

O bispo foi direto: explicou que, apesar de reconhecermos a importância do amor ao povo e da luta por felicidade, nossa visão materialista entrava em choque com a espiritualidade cristã da Pastoral. Assim, ele nos pediu para não falar mais em nome da Pastoral da Saúde. No entanto, ele foi claro que não precisávamos sair da igreja; poderíamos continuar utilizando o espaço e realizando nosso trabalho. Mas sugeriu que criássemos uma associação mais alinhada com nossas convicções. 

Foi aí que fundamos a Associação Popular de Saúde, que está ativa até hoje. O presidente atual é o Dr. Henrique Sebastião Francê, que você provavelmente conhece. Essa reorganização nos permitiu manter nossa atuação comunitária, mas com uma identidade própria, mais coerente com nossos princípios e formas de agir. 

Nelson: Como foi a expansão do Trabalho Popular de Saúde da Zona Leste e qual o papel da Associação Popular de Saúde nesse processo de mobilização e luta social? 

Natalini: O Trabalho Popular de Saúde começou com a Associação Popular de Saúde, da qual fui o primeiro presidente. Depois vieram Nacime Salomão Mansur, que hoje é superintendente do Hospital São Paulo, e o doutor France, que atualmente preside a associação. Ao longo dos anos, nos envolvemos profundamente na política, na luta contra a ditadura, apoiamos greves dos operários no ABC paulista e participamos de movimentos pela anistia e pelos direitos dos presos políticos. Nosso objetivo sempre foi conectar saúde com cidadania e democracia, usando a mobilização popular para melhorar as condições de vida nas periferias. 

Registrávamos cada reunião e atividade que fazíamos. Eram muitos cadernos com datas, locais e temas discutidos em favelas e bairros da Zona Leste. Dividimos a região entre diferentes líderes para atuar em São Miguel, Arthur Alvim, Cangaíba, entre outros. Esse movimento funcionava como um partido político sem partido, guiado pela construção da saúde pública. 

Nelson: Como essa mobilização em São Paulo se conectou com a luta nacional e a formação do SUS durante a Constituinte de 1988? 

Natalini: Participamos ativamente da Assembleia Nacional Constituinte, levando demandas populares ao debate nacional. Apesar de divergências partidárias – com alguns de nós no MDB e outros no PT – havia uma unidade em torno da saúde pública. Junto com uma ampla rede de profissionais, sindicalistas e lideranças, conseguimos inscrever o SUS na Constituição de 1988. O trabalho iniciado em São Paulo se espalhou pelo país, com convites para apresentar nossas experiências no Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais, entre outros estados. Foi um processo coletivo incrível, e aquela mobilização, que começou no fundo de uma igreja no Cangaíba, acabou contribuindo para a construção de um sistema de saúde nacional. 

Nelson: Após a Constituição de 1988, a luta se voltou para a implementação prática do SUS. Quais foram os principais desafios enfrentados nessa fase inicial, especialmente em relação ao financiamento e à adesão dos municípios à gestão plena do sistema? 

Natalini: A implementação do SUS foi um desafio imenso. A Constituição nos deu uma base legal sólida, mas não previu fontes claras de financiamento para sustentar o sistema. Isso criou um problema grave, porque o SUS assumiu uma quantidade enorme de responsabilidades, mas o dinheiro para financiar todas essas obrigações não estava garantido. Tivemos períodos muito complicados. No governo Collor, por exemplo, o SUS quase entrou em colapso por falta de recursos. Com Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso houve alguma melhora, mas ainda era insuficiente. 

Na prática, fui chamado para atuar na gestão pública e em 1997 assumi como secretário de Saúde de Diadema, convidado pelo Gilson Menezes. Nesse momento, o SUS estava se consolidando com a implementação das Normas Operacionais Básicas (NOBs). Fui também eleito presidente do COSEMS-SP, o conselho dos secretários municipais de saúde de São Paulo, e, nessa função, estabelecemos uma parceria forte com o doutor José da Silva Guedes, secretário estadual de Saúde, e Paulo Monteclaro César, da Federação das Santas Casas. 

Montamos uma articulação poderosa para garantir a adesão dos municípios à gestão plena do SUS. O envolvimento dos municípios era essencial para que a municipalização da saúde acontecesse de fato. A participação no COSEMS era muito ativa, reunindo facilmente representantes de mais de 100 cidades em nossas assembleias. Essa união foi fundamental para que a municipalização avançasse de forma expressiva. 

No meu segundo mandato como presidente do COSEMS-SP, fui eleito presidente do CONASEMS, o conselho nacional dos secretários municipais de saúde. Foi um período que considero a “época de ouro do SUS”, porque conseguimos na prática efetivar a municipalização. Parecíamos vendedores ambulantes, viajando pelo Brasil e por São Paulo, convencendo prefeitos e secretários a aderirem à gestão plena do SUS. A maioria dos municípios paulistas aderiu, com exceção de apenas três, que optaram por não assinar o acordo. Não vou citar quais foram, mas todos os outros 642 se integraram ao sistema. 

Esse movimento culminou na aprovação da Emenda Constitucional 29, em outubro de 2000. Essa emenda foi um marco, pois vinculou recursos para a saúde, garantindo um financiamento mais estável para o SUS. Foi um momento decisivo para a sustentabilidade do sistema e para consolidar a municipalização como política pública. 

Nelson: Como você avalia o impacto político e estratégico da aprovação da Emenda 29 e a atuação do Ministério da Saúde durante a gestão do José Serra? Como foi essa articulação com figuras-chave como João Yunes, Renilson Rehem e outros? E quais foram os principais desafios que vocês enfrentaram para garantir o financiamento necessário para o SUS? 

Natalini: A aprovação da Emenda 29 foi um marco fundamental. Ela já era uma proposta antiga, idealizada pelo Eduardo Jorge e outros deputados, mas estava engavetada havia anos. Quando o Serra assumiu o Ministério da Saúde, ele percebeu a importância da emenda e resolveu apoiá-la, mesmo sem ser médico. O diferencial do Serra foi ter montado uma equipe extremamente competente, com nomes como João Yunes, Renilson Rehem, Cláudio Duarte e Heloísa Machado de Souza, entre outros. Eles formaram uma base sólida no Ministério que se alinhava perfeitamente com a nossa luta nos municípios e estados. 

Nós, no COSEMS e no Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS), fizemos uma pressão enorme no Congresso para garantir a aprovação da emenda. Levamos quase 400 secretários municipais de saúde para Brasília, onde ficamos por uma semana pressionando os parlamentares. Foi uma batalha intensa. Em um dos momentos mais tensos, acabei até me envolvendo em um empurra-empurra com Antônio Carlos Magalhães, que era contrário à proposta. A votação foi apertada, mas conseguimos aprovar a emenda com pouquíssimos votos contrários, tanto na Câmara quanto no Senado. 

A Emenda 29 estabeleceu mínimos constitucionais de 15% para os municípios e 12% para os estados. Tentamos garantir 10% para a União, mas o Pedro Malan, então ministro da Fazenda, se opôs fortemente. Isso gerou um conflito interno entre o Serra e o Malan, uma verdadeira guerra política dentro do governo Fernando Henrique. No final, conseguimos uma alternativa: vincular 5% da variação do PIB nominal, o que consideramos uma gambiarra, mas que ainda assim trouxe um volume significativo de recursos novos para o SUS. Esse dinheiro foi essencial para fortalecer o sistema e garantir a sustentabilidade da municipalização. 

Nelson: Como foi o impacto da Emenda 29 sobre os estados e municípios? E de que maneira o governo federal reagiu ao longo dos anos em relação ao financiamento do SUS? Além disso, como você vê a pressão crescente sobre os orçamentos estaduais e municipais diante da retirada gradual de recursos federais? 

Natalini: O impacto da Emenda 29 foi importante porque ela obrigou estados e municípios a vincularem uma parcela fixa de seus orçamentos à saúde, o que gerou uma resistência inicial, especialmente por parte dos governadores e secretários de fazenda. Em São Paulo, por exemplo, antes da Emenda, o estado alocava apenas 4% do orçamento na saúde. Com a nova regra, a obrigação subiu para 12%, o que deixou muitos governadores em pânico sobre como fechar as contas. Outros estados, que aportavam apenas 2% ou 3%, também se viram pressionados pela nova legislação. Alguns, como o Rio Grande do Sul, já se aproximavam dos 8%, mas esses eram exceções. 

Embora os governadores tenham resistido no início, conseguimos isolar essa resistência, politicamente. O Ministério da Saúde teve um papel fundamental nesse processo e com o apoio dos senadores, deputados e secretários municipais, conseguimos aprovar a Emenda e garantir a vinculação. No entanto, o governo federal, que financiava mais de 60% do SUS e chegou a arcar com até 70% do orçamento em certas épocas, começou a reduzir sua participação ao longo do tempo. Hoje, a parcela federal representa pouco mais de 40% do total investido em saúde, o que tem deixado os estados e municípios com uma carga muito maior. 

Há municípios que hoje destinam 35% de seus orçamentos ao SUS, simplesmente porque não podem deixar de cumprir suas obrigações. Se o governador não aplicar os 12% previstos, abre brecha para o Ministério Público intervir. No entanto, enquanto estados e municípios são obrigados a cumprir suas vinculações, o governo federal tem se esquivado, congelando ou contingenciando recursos. Um exemplo claro é o congelamento de cerca de R$ 240 bilhões entre 2004 e 2014, o equivalente a um orçamento anual do SUS. 

A falta de recursos federais tem pressionado enormemente o sistema, especialmente na média e alta complexidade, onde os custos são altos e crescem rapidamente. A tecnologia médica avança e o preço dos equipamentos sobe em dólar, dobrando de um ano para o outro. Isso gera uma pressão insustentável sobre os orçamentos locais. E agora, com rumores de um novo corte de R$ 4,5 bilhões no orçamento da saúde, o risco de colapso aumenta. Sem novos aportes, o SUS pode enfrentar uma crise ainda mais profunda. 

Nelson: Diante desse panorama, como você avalia o impacto das divisões ideológicas e partidárias na continuidade da luta em defesa do SUS? E quais são os desafios atuais para melhorar tanto o financiamento quanto a gestão do sistema? 

Natalini: Se essa fragmentação continuar, vamos entrar em uma ladeira abaixo gravíssima. O movimento social, que em certo momento teve um papel essencial para impulsionar o SUS, perdeu força ao longo dos anos. A organização que nos permitiu levantar a bandeira do SUS e avançar se diluiu, em parte, por causa das divisões partidárias dentro dos movimentos sociais e sindicais, enfraquecendo a luta pela saúde pública. 

Antes, tínhamos uma frente que chamávamos de Partido Sanitário Brasileiro. Você lembra, Nelson? Participamos disso juntos. Era um movimento muito plural, onde cabia desde pessoas da extrema-esquerda até figuras como o padre José Linhares, do PP, ligado ao Paulo Maluf, mas comprometido com o SUS. Ele defendia o sistema, independente de ideologia. 

A aprovação da Emenda 29 foi um dos maiores momentos de unidade política que já testemunhei. Todos os partidos e o Congresso estavam alinhados para garantir o financiamento da saúde. No entanto, após essa conquista, cada grupo começou a seguir seu próprio caminho e o sistema ficou um pouco à deriva. Apesar disso, acredito que o povo brasileiro reconhece a importância do SUS. Há uma consciência coletiva de que, se com o SUS ainda há dificuldades, sem ele seria muito pior — seria uma carnificina. 

Precisamos, no entanto, melhorar não só o financiamento, mas também a gestão e o controle dos gastos. Há uma frouxidão na administração e na fiscalização dos recursos. Muitas vezes, vemos desvios, seja por incompetência ou por corrupção. O Ministério da Saúde precisa assumir uma postura draconiana no controle desses recursos. 

Ainda assim, posso afirmar que o SUS é o maior e mais generoso sistema de saúde do mundo. É gratificante pensar que começamos essa luta décadas atrás, lá nas periferias, levando a discussão da saúde pública para o povo e pressionando o setor político. Essa generosidade do SUS é algo que nos orgulha profundamente. 

Nelson: Durante essa trajetória, você transitou por diversos cargos e viveu momentos importantes na saúde e na política. Como foi lidar com as mudanças e transições nos governos municipais, como na época em que São Paulo ainda operava o Plano de Assistência à Saúde (PAS), e qual foi o impacto disso na implementação do SUS na cidade? 

Natalini: Cansei de pedir votos, por isso decidi não continuar na vida parlamentar. Mas não deixei a política. Durante meus cinco mandatos como vereador – três pelo PSDB e dois pelo PV – apresentei 419 projetos de lei e consegui aprovar 147 deles. Entre essas leis estão iniciativas como a lei de atenção a doenças raras, Alzheimer e psoríase, além da lei dos ônibus elétricos, que criei junto com outro vereador. Também fui responsável por uma lei que permite a descida fora do ponto entre 22h e 5h para garantir segurança, principalmente para mulheres e idosos na periferia. 

Eu participei de 97% das sessões da Câmara e só faltei em 3%, geralmente quando estava representando a Casa em eventos externos. Fiz mais de 2 mil discursos na tribuna, a ponto dos colegas brincarem que não aguentavam mais me ouvir. Organizei mais de 3 mil eventos, incluindo a Conferência Municipal de Produção Mais Limpa e Mudanças Climáticas, em 2006, onde fui pioneiro ao introduzir esse tema na Câmara. Trouxe nomes importantes como o Carlos Lobi para palestrar e lideramos uma comissão de estudos sobre mudanças climáticas. 

No executivo, fui secretário de Participação e Parceria de 2005 a 2006, secretário do Verde e Meio Ambiente em 2017, e mais recentemente estive por cinco meses na Secretaria de Mudanças Climáticas da cidade de São Paulo. É uma trajetória institucional intensa e diversificada. 

Agora, algo importante para esta entrevista: quando a Marta Suplicy venceu a eleição, eu estava na oposição ao governo dela, enquanto o Eduardo Jorge começou como secretário dela. São Paulo ainda operava o PAS nessa época.  

Nelson: O município de São Paulo demorou para aderir ao SUS e isso foi uma questão complicada na época, especialmente durante as gestões do Paulo Maluf e do Celso Pitta. Como você participou desse processo de mudança, mesmo sendo oposição ao governo da Marta, e qual foi o impacto dessa adesão tardia no cenário da saúde pública municipal? 

Natalini: Não deixou entrar, foi o município que foi uma vergonha nacional, São Paulo. Inclusive uma frustração para mim, que era de São Paulo, presidente do COSEMS e CONASEMS. São Paulo não se habilitou no SUS, porque o Maluf, depois o Pita, impediram. Então, a Marta mandou para a Câmara, por meio do Eduardo Jorge, um projeto de lei para São Paulo aderir ao SUS e entrar na municipalização. 

Mesmo sendo oposição forte ao governo da Marta, eu me somei com o Carlos Neder, saudoso amigo e vereador conosco. Pegamos o projeto de lei do Executivo e fizemos ele tramitar rapidamente dentro da Câmara. Aprovamos e São Paulo finalmente aderiu ao SUS, em 2001. 

A iniciativa foi do governo municipal e o Eduardo Jorge, como secretário, idealizou e liderou tudo. No entanto, nós contribuímos para agilizar o processo na Câmara, independente das diferenças políticas. O Neder era da base da Marta, e eu, da oposição. Isso é o que sempre digo: na saúde, temos que somar esforços, deixar as divergências de lado para que as coisas avancem. É essa união que falta hoje em dia para fazer o sistema funcionar plenamente. 

Nelson: Como você enxerga, hoje, a implementação das Organizações Sociais (OS) na gestão da saúde pública, considerando que, na época, havia bastante desconfiança de que seria uma forma de privatização do SUS? E quais são, na sua visão, os principais desafios para garantir que essas entidades realmente sigam as políticas públicas e não desviem da missão de prestar um serviço de qualidade? 

Natalini: Na época, a gente tinha muita desconfiança com as OS, porque se falava muito que seria a privatização do SUS. Mas, com o tempo e acompanhando de perto, percebi que as OS trouxeram uma flexibilidade importante na gestão do SUS. O ponto central é que, se o gestor – seja municipal, estadual ou federal – tiver firmeza, política clara, controle e cobrança, as OS fazem exatamente o que é determinado. 

Um exemplo é o Hospital Santa Marcelina, que coordena centenas de unidades básicas de saúde (UBS). Eles seguem à risca a gestão pública e, muitas vezes, mostram-se mais comprometidos que hospitais públicos. A verdade é que a participação popular e o controle financeiro são essenciais, seja em unidades próprias ou geridas por OS. As OS também são obrigadas a integrar os conselhos populares e prestar contas à sociedade. 

O problema que vemos hoje é que muitas OS foram criadas por indicação política ou partidária e algumas são verdadeiras arapucas. Isso prejudicou a imagem e a eficiência do modelo. No entanto, não dá para negar o papel positivo de OS com tradição na saúde, como as Marcelinas e a Santa Casa de São Paulo, que têm uma história enorme na saúde pública. 

A chave está no controle. Se o gestor público relaxa, as OS podem fazer o que querem, e o sistema se perde. Mas isso também acontece em hospitais públicos, como vemos nas crises dos hospitais federais do Rio de Janeiro, onde máfias, milícias e crime organizado indicam diretores. O problema, então, não é o modelo em si, mas a frouxidão no controle, que deve ser firme tanto nas OS quanto nas unidades públicas para garantir que a saúde funcione como deve. 

Nelson: Como você avalia o enfraquecimento das relações institucionais entre os entes federativos e o impacto disso na gestão do SUS? E como vê o papel do estado e dos municípios na regionalização e na descentralização, considerando as limitações municipais e a necessidade de fortalecimento da gestão estadual? 

Natalini: Olha, houve um enfraquecimento geral na gestão do SUS ao longo dos anos. A legislação e a própria experiência do SUS preveem todas essas questões que você colocou: temos a comissão tripartite, as bipartites e as bipartites regionais, onde os entes federativos discutem as grandes políticas e cada um cumpre seu papel. Mas o que aconteceu foi um relaxamento nas relações institucionais entre esses entes. 

Hoje, vemos gestores que não têm qualquer relação com a história do SUS, em todos os níveis. Nos municípios, muitos secretários de saúde são indicados politicamente, sem experiência na área. Durante meu tempo no CONASEMS, realizamos cursos e congressos para capacitar gestores, mas, atualmente, essa preparação parece ter sido deixada de lado. No passado, havia grandes gestores estaduais e municipais, como Guedes e Cantarino, que sabiam construir políticas. Hoje, muitos gestores sequer entendem o que é o SUS. 

A situação política também prejudicou o SUS. No governo anterior, por exemplo, vimos a saída de Luiz Henrique Mandetta, que, apesar de ter posições conservadoras, sempre foi um aliado do SUS. Depois dele, outro oncologista tentou, mas desistiu rapidamente. Por fim, tivemos um general, que desmontou o Ministério da Saúde, destruindo nossa tradição de vacinação e prejudicando programas essenciais. 

Durante a pandemia, enquanto o governo federal se recusava a comprar vacinas e sabotava a campanha de imunização, quem realmente segurou o SUS foram os estados e os municípios. A resposta dos entes locais foi fundamental para enfrentar a crise, mesmo sem o apoio adequado do governo federal. 

Atualmente, ainda enfrentamos problemas no Ministério da Saúde e nas secretarias estaduais. A politização excessiva e a nomeação de gestores sem preparo afetam a gestão pública, tanto nos estados quanto nos municípios. 

No entanto, o SUS é uma estrutura resiliente. Ele tem tradição, experiência e uma força acumulada que fazem com que continue funcionando, mesmo com todas as dificuldades que enfrenta. O sistema segue caminhando, graças à sua história e às lições de vida que carrega. 

Nelson: Vivemos hoje um contexto de polarização intensa, não apenas no Brasil, mas globalmente, com a ascensão de extremos políticos e a desarticulação de movimentos populares que, no passado, contribuíram para a construção do SUS. Diante desse cenário, como você enxerga a necessidade de superar essa polarização e rearticular forças em prol da saúde pública e da democracia? Quais são os caminhos que podemos seguir para retomar um debate saudável e resgatar o espírito coletivo e democrático? 

Natalini: Essa polarização não é exclusividade do Brasil, é um fenômeno global. Eu vejo isso como uma nova Guerra Fria, mas diferente da primeira, que era entre o bloco socialista e o bloco capitalista. Hoje, estamos numa disputa entre democracias e autocracias. Não importa se são de direita ou de esquerda; temos exemplos de ambos os lados. Viktor Orbán na Hungria é um autocrata de direita, assim como o Daniel Ortega na Nicarágua é um autocrata de esquerda. 

O grande problema é que essas autocracias vão, pouco a pouco, minando as liberdades, seja através de golpes ou de infiltração nas estruturas democráticas. Por outro lado, temos as democracias que defendem a liberdade e o progresso sem a hegemonia de um grupo político. A polarização serve como combustível para essa disputa, e um polo alimenta o outro. 

Eu acredito que entre esses extremos, existe vida inteligente e muitas pessoas não querem participar desse jogo. Recentemente, uma pesquisa publicada na Folha de São Paulo mostrou que quase 60% da população de São Paulo não queria votar em candidatos associados nem ao Lula nem ao Bolsonaro. Isso revela que uma grande parte das pessoas está buscando alternativas fora dessa polarização. 

Essa divisão faz mal à democracia e, sem dúvida, também ao SUS. A toxicidade desse ambiente prejudica a capacidade de construir políticas de saúde eficazes. Precisamos nos livrar disso e encontrar um caminho de bom senso. No entanto, esse caminho ainda não está claro e os líderes de bom senso que poderiam orientar essa jornada já se foram ou se desviaram. 

É essencial manter a serenidade, especialmente para nós, mais velhos, que temos responsabilidade de preservar as coisas positivas que construímos. Não podemos nos deixar levar por esses extremos, seja defendendo um Maduro, que é um autocrata, ou caindo no discurso de figuras radicais que prometem mudanças drásticas sem fundamentação. Precisamos construir um caminho equilibrado e sensato, baseado no que já aprendemos e realizamos ao longo da história.

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