REFERENCIAL TEÓRICO METODOLÓGICO
Uma observação sobre o desafio da história contemporânea é colocada por Hobsbawn já na primeira linha do prefácio sobre o “breve século XX”, é que “ninguém pode escrever sobre seu próprio tempo de vida como pode (e deve) fazer em relação a uma época conhecida apenas de fora” (Hobsbawm, 2007). Essa questão é especialmente cara não só ao grupo de pesquisa, coetâneo de várias passagens, mas à própria literatura específica de interesse histórico, também escrita por coetâneos. Especialmente sabendo-se da influência na formação de muitos daqueles que se interessaram pela política nos anos 70, quando “as ciências sociais foram invadidas por uma tendência filosofante que recuperou o pior do ‘ensaísmo’ – sua falta de rigor, sua arbitrariedade formal e pouco ou nenhuma preocupação com a investigação empírica […]” (Brandão, 2007).
Ciente da responsabilidade que essas premissas impõem, é momento de definir sob qual perspectiva a história da Secretaria de Saúde de São Paulo deve ser recuperada e contada, isto é, a seleção do método e seu referencial de análise – esses referenciais metodológicos refletem o ponto de vista sobre o qual o objeto de investigação é enquadrado socialmente (Burke, 1992; Novais e Silva, 2011).
A questão, no entanto, não é tão simples, pois o tema traz várias considerações à escolha metodológica. Poder-se-ia definir a princípio a perspectiva “institucional”, inerente à própria natureza de “Secretaria de Estado” do objeto. Contudo, a saúde pública, seu pano de fundo, envolve dois outros domínios obrigatórios: a ciência (saúde), a política (pública).
Esses três domínios devem ser considerados complementares para sua compreensão histórica. Mas ainda não é suficiente. Resta decidir qual o enfoque da história: os fatos, atitudes e mentalidades do momento; ou a fronteira do pensamento, ideias e conceitos que a atravessaram? Planos que opõem métodos e estratégias de pesquisa. Aparentemente o primeiro, pois não se pode negar que a Secretaria do Estado da Saúde (SES-SP) é um objeto concreto de ações concretas. Contudo, essas ações são definidas nos planos ideológico, científico e social, o que também situa o enfoque de ideias no plano principal. Por fim, uma instituição política não existe como objeto isolado e apenas faz sentido contextualizada em seu contexto epocal. Logo, rapidamente fica visível que um único referencial metodológico é suficiente para esclarecer a complexidade do objeto o que implica em considerar essa história como estudo de caso de múltiplas abordagens.
A perspectiva institucional é mandatória. O referencial do institucionalismo histórico se coloca em evidência sobre o forte componente da atuação do estado e fragilidade das mobilizações sociais na saúde pública brasileira (Fonseca, 2007; Lima, 2007). Não seria possível a compreensão do campo da saúde brasileira sem observar a intermediação das instituições no direcionamento político (Machado e Lima, 2015).
A história das ideias, mais especificamente do discurso, é uma ótica especialmente importante para história política. Essa perspectiva considera que manifestações sociais e institucionais concretas são precedidas de ideias, matrizes discursivas e conceitos na intencionalidade política.
A história dos conceitos pode ser considerada um ramo específico desse olhar. Do lado dos fatos, a história contemporânea é em boa medida dependente da imprensa e seus periódicos, cuja revisão é compulsória. Objetos reativamente recentes, como a SES-SP, podem contar ainda com o benefício da recuperação do testemunho oral. Por fim, dois conceitos acessórios auxiliam na compreensão das influências, escolhas e rupturas observadas: a leitura das comunidades epistêmicas e a questão geracional. A seguir será especificada cada dessas opções metodológicas e suas possibilidades de contribuição para a pesquisa.
3.1. Institucionalismo histórico
O referencial teórico para o estudo em questão tem seu principal apoio na corrente institucionalista da Ciência Política. Apesar de composta por, pelo menos, três vertentes (institucionalismo histórico, sociológico e da escolha racional), sua postulação nuclear comum parte de duas constatações: a primeira de que as normas e os procedimentos operacionais das instituições influem no resultado positivo, uma vez que estruturam comportamento político e moldam a identidade, o poder e a estratégia dos atores em selecionar preferências e a segunda de que as instituições moldam a política e são moldadas pela história, podendo os indivíduos escolher suas instituições, mas não o fazendo em circunstâncias que eles mesmo criaram.
Dito de outro modo, as instituições são importantes preditivos das decisões coletivas. Para os adeptos desta visão teórica pautada no institucionalismo histórico, a forma de organização do Estado, o desenho institucional, a trajetória da política, o contexto e as ideias são aspectos institucionais fundamentais para compreensão do comportamento dos atores (Hall e Taylor, 1996; Immergut, 2006; Justice e Miller, 2007).
No caso de sistemas federativos, como o brasileiro a existência de três níveis de governo (união, estados e municípios) e a prevalência de profundas disparidades regionais como principais características (Arretche, 2015). Neste sentido federalismo disposto pela Constituição de 1988 previu a cooperação intergovernamental como dinâmica a ser perseguida na elaboração e implementação das políticas sociais. Este novo formato organizacional fora concebido ao mesmo tempo em que políticas como educação, saúde, e assistência social ganharam contornos de universalidade e de obrigatoriedade de garantia estatal. Angariaram, portanto, o status de direto social. Desde então, estas políticas experimentaram diferentes trajetórias de desenvolvimento institucional, cuja marca comum foi o uso de instrumentos de coordenação federativa por parte do governo federal (Abrucio, 2005). Na política de saúde, o formato de organização sistêmica foi estipulado pelo texto constitucional e regulamentado em 1990 pela Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/1990).
No desenho institucional do Sistema Único de Saúde (SUS), o governo federal assumiu responsabilidades de normatizador nacional e os governos subnacionais ficaram com a função de execução dos serviços. O ordenamento constitucional previa ainda a participação social nas deliberações, princípio que foi materializado pela criação do Conselho Nacional de Saúde e de seus similares nos estados e municípios.
O ideal de descentralização, no entanto, apenas começou a se efetivar com a instituição de Normas Operacionais Básicas (NOBs) por parte do Ministério da Saúde. Estes normativos conformaram a estrutura operacional da política nacional de saúde, criando estruturas decisórias intergovernamentais (Comissão Inter gestores Tripartite e Bipartite) e detalhando a organização dos serviços a partir de níveis de atenção (básica, média e alta complexidade). Apesar disso, a descentralização apenas foi efetiva quando o governo federal induziu os governos subnacionais a aderirem ao SUS por meio da vinculação de repasses de recursos à oferta de serviços à sua população (Arretche, 1999).
Partindo da premissa de que a cooperação estado-local provém de decisões estaduais, entender a conformação do processo decisório governamental se mostrou essencial. Haveria, portanto, “policy communities” subnacionais com potencial de influenciar as decisões estatais em questões que envolvem desde a ascensão da ideia colaborativa à agenda governamental até a forma como esta solução será implementada.
Os estudos que se debruçam sobre a atuação dos estados na promoção de políticas sociais, como já colocamos, demonstram uma considerável heterogeneidade. A diversidade interestadual tanto na implementação quanto nos resultados das políticas públicas é resultado da natureza das responsabilidades que lhes foram atribuídas no âmbito do desenho institucional das políticas nacionais, estando afeito ao ideal de autonomia federativa (Silva, 2015).
Uma das propostas para os estudos de caso apresentadas por Silva (2020) aborda estudos a partir de três eixos: 1) situação de sobreposição e interdependência da política no estado; 2) resgate da trajetória histórica da política no estado; 3) Condições e barreiras à colaboração estado-local. Eles permitem testar duas hipóteses rivais: 1) a existência/atuação de “policy communities” estaduais é fator determinante para o nível de institucionalização da cooperação estado-local; e 2) o nível de cooperação estado-local, na verdade, deriva de decisões políticas estaduais, portanto independe da atuação das “policy communities” da saúde. (Silva, 2020)
Neste sentido, a hipótese central do projeto pode ser enunciada é de que os condicionantes normativos nacionais e as ações coordenativas do governo federal no caso do estudo em questão(AIS, SUDS e SUS) não são suficientes para definir a ação das esferas subnacionais , mas são os fatores do contexto histórico e político dos estados os determinantes para a institucionalização da cooperação estado-local, notadamente a concepção dos atores que orbitam a política específica em relação a ideia colaborativa associada a aspectos do perfil da liderança política estadual.
Em suma, o argumento central aqui desenvolvido é que o desenho institucional da política é um importante preditivo da cooperação vertical no contexto subnacional, porém ele não é suficiente para provocar a adoção de padrões mínimos nacionais no comportamento colaborativo dos governos estaduais.
3.2. História da ideia/discurso
A história das ideias é definida mais precisamente como como história do discurso no campo político, pois se define sobre enunciados que conformam tempos políticos e campos ideológicos determinados. Essa abordagem é defendida como a mais apropriada para a compreensão dos fundamentos e intencionalidades implicadas nas origens políticas (Brandão, 2007; Pocock, 2003; Skinner, 1969). Entre seus princípios fundamentais, o ‘contextualismo histórico’ determina que o discurso só pode ser interpretado no contexto da época de sua enunciação, prevenido que se estabeleça “diálogos impossíveis” (Jasmin, 2005). Em função da própria concretude e base social da formação em saúde coletiva, é comum que pesquisadores iniciantes se sintam desconfortáveis em manter-se exclusivamente atado ao plano intelectual discursivo. Mais ainda mais diante da importância apenas secundária da pessoa comum no ideário político, cuja centralidade concentrase no discurso de vanguarda, eminentemente ligado às elites sociais (a situação se inverte quando no enfoque das práticas, mentalidades e atitudes, quando o discurso de fronteira pouco representa). Essa leitura deve ser cuidadosa para que não reste a impressão de que a história se esgota nesses planos (Brandão, 2007); que os discursos “vencedores” omitem os mecanismos que permitiram a legitimação da fala (Bourdieu, 2008); deixam pouco manifesto o componente popular na cultura estabelecida (Ginzburg, 2002); e facilitam a leitura acrítica do culto aos heróis.
Em relação ao objeto dessa pesquisa, a história do discurso permite compreender a distância da origem das ideias em relação aos seus marcos temporais concretos. Por exemplo, a famosa reforma da SES-SP de 1968, conhecida como “Reforma Leser”, encontra raízes discursivas nacionais e internacionais nas quatro décadas anteriores. Por isto, sua compreensão exige revisitar a construção de toda trajetória de seu discurso político-sanitário. Mas também conceitual, como exposto a seguir.
3.3. História dos conceitos
A história dos conceitos compartilha ideais próximos àqueles das ideias, embora esses campos intelectuais tenham sido estabelecidos em paralelo. A ideia central é que o conceito representa o componente mais efetivo da linguagem, construído historicamente em constante tensão entre o linguístico e o extralinguístico. Ao contrário do senso de conceitos como expressões atemporais e transculturais, este só podem ser compreendidos no exato contexto de sua enunciação. O que, em tese, seria um impeditivo para sua historicidade. Entretanto, é possível mapear a trajetória desses momentos e estabelecer uma linha de continuidade histórica, incluindo suas variações semânticas (Koselleck, 1992). Por exemplo, embora o enunciado de ‘serviços básicos’ possa ser encontrado desde a década de 1930, o conceito de ‘atenção básica’ do SUS é claramente baseado na leitura da “Atenção Primária à Saúde” dos anos 1980 que se seguiu à icônica Conferência de Alma-Ata, mas que rejeita politicamente o signo ‘atenção primária’ (Mello, Fontanella e Demarzo, 2009).
Uma questão central para compreender a importância de se olhar para o conceito é que esse é um elemento essencial de qualquer processo produtivo: são as ferramentas intelectuais sem as quais não é possível operar. Sua temporalidade e adequação produtiva pode se situar em quatro possibilidades: realidade e conceitos permanecem estáveis por longo tempo; alteram-se de modo simultâneo; o conceito muda, mas não a realidade; ou, inversamente, a realidade muda e o conceito não (Jasmin, 2005; Koselleck, 1992). Assim, dificuldades para operacionalização de políticas de saúde podem ter componentes diretos da inadequação conceitual, como evidenciado para a ideia de regionalização (Mello, Demarzo e Viana, 2019). Compreender os principais conceitos de cada época da SES-SP significa compreender as próprias escolhas e direcionamentos políticosinstitucionais.
3.4. Comunidades epistêmicas
A ideia de comunidades epistêmicas não é necessariamente um referencial histórico, mas auxilia na compreensão de fatores de influência nas principais definições, escolhas políticas e cultura institucional em dado momento.
O foi inicialmente usado para analisar a participação de cientistas nas políticas nacionais e internacionais sobre assuntos de alta tecnicidade, mas que se expandiu para o conhecimento específico “que se torna relevante para comunidades ou socialmente reconhecido, independentemente de seu caráter científico (Soares e Vitelli, 2016). Funcionam como redes de especialistas que promovem sua influência sobre suas convicções e metas de políticas compartilhadas. Estas comunidades se diferenciariam de organizações de interesse político ou um mero grupo de especialistas pelo conjunto de convicções causais; normativas; pressupostos metodológicos de validade; e propósito políticos relacionado a uma ação (Haas, 1992). O poder de difusão da atuação da comunidade é outra característica importante, pois “permite sustentar o processo que ocorre entre dois atores: a comunidade epistêmica e a classe política que adota a visão impulsionada pela primeira” (Soares e Vitelli, 2016). Apesar de certo rótulo filosófico, essa comunidade é composta por pessoas reais, com interesses concretos. Na saúde pública brasileira, por exemplo, o grupo de ‘sanitaristas’ ligados à reforma do setor saúde que se concretiza no SUS pode ser caracterizado como comunidade epistêmica, muito em função da inserção desse grupo de professores e pesquisadores na estrutura estatal (Costa, 2014). Embora pela SES-SP tenha historicamente transitado acadêmicos como Rodolfo Mascarenhas da Faculdade de Saúde pública da USP, Walter Leser da Escola Paulista de Medicina, e vários docentes da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, ainda está para ser feito o mapeamento de como esse conjunto influenciou as políticas como grupo e suas interrelações.