Quando: 21 de março de 2025
Local da Entrevista: Ambiente virtual
Em entrevista para o projeto Trajetória da Saúde em São Paulo: Instituições, Ideias e Atores, Lia Giraldo Augusto revisitou a experiência de ter dirigido a Regional de Saúde de Santos no período do governo Franco Montoro, entre 1983 e 1987, quando a redemocratização do país abria espaço para inovações políticas e institucionais na saúde pública. A conversa, conduzida pelo pesquisador Nelson Ibañez em 21 de março de 2025, em ambiente virtual, resgata uma trajetória marcada por militância, enfrentamentos políticos e experiências pioneiras que ajudaram a consolidar bases do Sistema Único de Saúde.
Lia começou sua carreira como sanitarista na década de 1970, ainda em São Sebastião e Guarujá, onde articulou ações de vigilância em diálogo com comunidades locais. No Guarujá, por exemplo, atuou para garantir alvarás sanitários que permitiram a permanência de uma tradicional colônia de pescadores ameaçada por interesses imobiliários. Pouco depois, assumiu a chefia do Centro de Saúde de Cubatão, município que então carregava o estigma de “Vale da Morte” pela gravidade da poluição industrial. Nesse território, viveu uma experiência intensa de vigilância epidemiológica e ambiental, enfrentando casos de anencefalia e doenças respiratórias em larga escala, e estabelecendo parcerias com cientistas, sindicatos e movimentos sociais.
A atuação em Cubatão abriu caminho para sua eleição, pelos próprios servidores, à diretoria da Regional de Saúde de Santos, num momento em que a Secretaria Estadual da Saúde apostava em descentralização, integralidade e participação. Sem vínculos partidários, mas sustentada pelo apoio de sindicatos, movimentos sociais e da imprensa, Lia tomou posse apesar da resistência de setores políticos locais. Sua gestão se caracterizou por forte inserção territorial, articulação com outras secretarias e uso constante da mídia como aliada para dar visibilidade aos problemas sanitários.
Entre as experiências relatadas na entrevista estão a criação, em 1983, do primeiro Centro de Saúde do Trabalhador do país; a instituição de notificações compulsórias para agravos relacionados às condições de trabalho em Cubatão, duas décadas antes de essa prática se difundir nacionalmente; e a inovação de implantar, pela primeira vez em hospital geral, uma unidade psiquiátrica de curta duração, inspirada nas ideias da reforma psiquiátrica. Lia também esteve à frente do chamado “dossiê Rhodia”, que reuniu denúncias de contaminação ambiental e contribuiu para a responsabilização judicial da empresa.
A entrevista relembra ainda a transição do modelo dos departamentos para os ERSAs, os escritórios regionais de saúde, e a intensa participação dos diretores regionais na formulação de políticas. Lia enfatiza o espírito de colegialidade e a autonomia técnica que marcaram aquele período, quando São Paulo foi palco de experiências pioneiras em vigilância sanitária, saúde ambiental e saúde do trabalhador, muitas das quais repercutiram em âmbito nacional.

Nelson Ibañez: Essa entrevista é baseada na sua experiência, na sua vivência nesse período e na importância disso. Fale um pouco da sua trajetória profissional nesse período.
Lia Giraldo: Perfeito. Então, Nelson, primeiro agradecer. Foi um feliz encontro no último Congresso da Abrasco em que você me falou dessa proposta, porque eu comentei com você lá naquela porta da entrada do Congresso.
Olha, a gente tem que escrever a história paulista das contribuições tão vanguardistas que a gente teve na época e como elas foram tão importantes para o processo de construção do SUS. E aí você falou que estava já juntando essas entrevistas, tinha um blog, etc. Realmente, fico feliz com essa iniciativa e tenho muito prazer em contribuir com ela.
Bom, como você sabe, eu fui diretora da Regional de Saúde de Santos em todo o governo Montoro, período completo e até um pouquinho, uns meses a mais na mudança de governo. Tem uns antecedentes do porquê que eu fui ser Diretora Regional de Saúde que são importantes. Eu, desde 1978, quer dizer, eu já estava na regional desde 1976, quando assumi o Distrito Sanitário de São Sebastião.
Eu era a única sanitarista lá e fiquei por lá por quase dois anos e aí me chamaram para Santos para eu colaborar com a direção de planejamento e depois epidemiologia, mas eu tinha muita vontade de trabalhar na rede mesmo, não ainda no nível central. Eu estava buscando me inserir de maneira mais no território, eu queria frentes de trabalho mais exigentes do ponto de vista da minha possibilidade de contribuir como sanitarista na integralidade do que a gente já discutia naquela época, que era a saúde como resultante de muitos processos socioambientais e eu estava nessa linha.
Nelson: Você mencionou sua entrada na carreira como médica-sanitarista. Como funcionava essa ascensão e de que maneira isso influenciou suas escolhas profissionais?
Lia: Você se lembra que nós tínhamos a carreira do médico-sanitarista e que nós tínhamos quatro níveis de ascensão e a gente ascendia a carreira por uma prova seletiva, que tinha uma pontuação, e aí você poderia escolher a unidade que desejasse trabalhar a partir desse processo seletivo. Isso foi uma inovação administrativa bastante interessante que fez com que a gente pudesse circular na rede e não ficar, vamos assim dizer, fixo num determinado lugar e aí com dificuldades de… E tinha também uma questão de avaliação mesmo, quer dizer que você ganhava pontos pela sua atuação, não acadêmica, mas de serviço.
E aí eu queria muito, até porque eu tinha uma militância na época bastante aguerrida na temática de saúde do trabalhador, nós estávamos construindo o DIESAT, o Departamento Intersindical de Saúde do Trabalhador, que é uma espécie de um espelho do DIEESE, mas voltado para o tema da saúde do trabalhador. Então eu tinha uma militância muito forte com o movimento sindical e queria muito contribuir nesse campo. E aí veio a oportunidade de fazer um acesso na carreira e eu escolhi Cubatão.
Cubatão, em 1978, nós estávamos em pleno processo de trazer a temática. A gente veio, inclusive, do movimento de renovação médica, que houve um engajamento muito forte dos médicos, principalmente em São Paulo, dos médicos que tinham uma crítica à forma como a categoria médica estava muito alinhada à ideologia da ditadura e que seria, obviamente, um empecilho para a construção do Sistema Único de Saúde ou pela reforma sanitária. Eu vinha também dessa militância, da luta por democratizar a categoria médica. Então, juntando as coisas, Cubatão parecia um espaço muito importante para eu fazer coisas que já tinha na cabeça por conta da militância junto ao movimento sindical.
Nelson: Antes de assumir Cubatão, você passou rapidamente pelo Guarujá. O que aconteceu ali e que lições essa experiência trouxe?
Lia: Eu cheguei em Cubatão em 1978, mas antes eu tive uma passagem muito curta pelo Guarujá. Por um mês eu fiquei lá.
E foi muito interessante que nesse um mês nós conseguimos fixar a colônia de pescadores dando alvará de funcionamento para os pequenos restaurantes, desde que eles fizessem algumas reformas pequenas para ter condições de higiene, porque eles estavam sofrendo uma ação de expulsão naquela região a favor de grileiros para que aquilo fosse loteado e virasse um grande resort. E a nossa ação sanitária ali permitiu que naquela colônia, em um mês, nós conseguimos condições para deixar os pescadores estáveis, que eram poceiros de muitos anos, de mais de 200 anos naquela região.
Também me animou bastante esse trabalho de ação sanitária junto aos territórios. Eu lembro bem que o secretário havia pedido que nós, como vigilância sanitária, tirássemos a atividade comercial dos pescadores ali. E eu argumentei junto ao secretário que não, que eu ia conversar com os pescadores, ia entender aquele território, entender o processo deles, o que estava atrás, etc., e que eu os ajudaria a obter as condições para o alvará.
Foi uma experiência bastante interessante de diálogo com a secretaria, e o secretário compreendeu na época muito bem a posição, mas foi duro porque a prefeitura, obviamente, queria muito se livrar daquela atividade comercial, o que dava sustentação para os pescadores.
Nelson: E chegando em Cubatão, que era conhecida como “Vale da Morte”, como foi o impacto inicial e a forma de atuação diante daquele cenário de poluição e adoecimento?
Lia: O apelido de Cubatão era o Vale da Morte. A dois metros de distância, você já não enxergava, por exemplo, um móvel dentro da unidade de saúde. Eu tinha uma noção da gravidade, mas, na condição de chefe do Centro de Saúde, comecei a olhar para o território e para aquela poluição.
A poluição nascia no processo produtivo dentro das unidades fabris. Então, passei a atuar na questão do lixo industrial, na qualidade da água, na poluição atmosférica, no processo de desertificação das serras do mar. Com isso, fui adquirindo conhecimentos que não tínhamos na formação em Saúde Pública. Nem saúde e ambiente, nem saúde do trabalhador eram conteúdos existentes na época.
Cubatão se tornou um grande laboratório de aprendizado. Logo começaram a surgir os casos de malformações congênitas, especialmente anencefalia. Raramente passava uma semana sem que eu fosse chamada a uma maternidade para constatar o óbito. Pedi que os hospitais nos chamassem, como autoridade sanitária, sempre que houvesse esse tipo de ocorrência, e isso se transformou em uma grande denúncia.
Houve então um movimento popular que criou uma comissão de pessoas vítimas da poluição, que recebeu nosso apoio. Pesquisadores também vieram para estudar as malformações. Além disso, identificamos que a principal causa de internação eram as doenças respiratórias, inclusive com óbitos frequentes. Esses dados epidemiológicos direcionavam a atuação da unidade, sempre conectada às questões ambientais.
Nelson: Nesse processo, você também se aproximou ainda mais do movimento sindical. Como essa relação influenciou sua prática em Cubatão?
Lia: Eu já estava vinculada ao movimento sindical, e o Sindicato dos Metalúrgicos sugeriu que eu fizesse um curso de Medicina do Trabalho para dar mais respaldo técnico às nossas ações. Fiz esse curso em 1980, oferecido pela FUNDACENTRO e financiado pelo sindicato. Isso me deu mais qualificação e ampliou minhas possibilidades de atuação.
Com esse acúmulo, em 1982, após a eleição de Montoro e a indicação de João Yunes para a Secretaria de Saúde, houve um processo inusitado: os funcionários realizaram uma eleição interna para indicar o diretor da Regional de Saúde. Eu não tinha proximidade política, não era ligada a partidos, mas fui escolhida. Recebi o apoio de sindicatos, movimentos sociais e alguns parlamentares.
Paralelamente, havia um grupo político — prefeitos e deputados da base governista — que buscava controlar as nomeações, e eles se opuseram fortemente ao meu nome. Eu já carregava um histórico de embates em Cubatão, e a imprensa dava grande visibilidade às nossas ações, o que aumentava a resistência. Ao mesmo tempo, essa presença constante na mídia me ajudou, pois eu explicava os problemas ambientais e conquistava espaço público.
No dia da nomeação, essa comissão tentou impedir minha posse. Mas fui entrevistada pelo secretário-executivo do governo, e saí empossada. Assim me tornei Diretora Regional de Saúde, contrariando os interesses da base política regional.
Nelson: Como foi, então, a experiência de assumir a direção regional em um contexto tão conflituoso e ao mesmo tempo inovador?
Lia: O governo Montoro tinha como tripé integralidade, participação e descentralização. Isso se refletiu na criação dos escritórios regionais de administração e planejamento, que estimulavam articulação entre setores. Eu buscava sempre essa integração: transporte, saneamento, educação, nutrição, habitação, porque entendíamos a saúde como resultado de todos esses processos.
Mesmo com pressões políticas intensas — deputados e vereadores pedindo minha saída —, recebi respaldo da secretaria. Nem o secretário nem o governador jamais me censuraram ou ameaçaram de exoneração, apesar das críticas públicas que eu fazia. Esse apoio foi decisivo para que eu pudesse criar, junto com a equipe, experiências inéditas na saúde pública.
Era uma geração de jovens sanitaristas com muita disposição. E a sustentação institucional que tivemos nos permitiu inovar em diversas frentes no território sob nossa responsabilidade. Foi, sem dúvida, o período mais feliz da minha vida profissional.
Nelson: Você mencionou que assumir a regional foi um momento feliz da sua trajetória. Gostaria que você descrevesse o ambiente de trabalho e como os diretores regionais atuavam dentro da estratégia da secretaria. Afinal, o diretor regional funcionava quase como um secretário de Estado em sua região. Como você viveu isso nos quatro anos em que esteve no cargo?
Lia: O coordenador Vranjac tinha uma postura muito aberta, estimulava nossas ideias e apoiava a descentralização. Esse espírito marcava a secretaria como um todo. Era um momento de ânimo, integração e participação. A reforma ampliou muito o número de regionais, o que deu capilaridade à gestão. Criamos as Coordenações Integradas de Saúde (CIS) para articular hospitais e serviços, enfrentando resistências políticas locais, especialmente da Santa Casa de Santos, cujo provedor ainda tinha resquícios autoritários do período da ditadura.
Já o Hospital Guilherme Álvaro, estadual, e o Hospital dos Estivadores, vinculado à base sindical, eram aliados na integração. O enfrentamento com a Santa Casa foi político, apoiado em alianças locais. Organizamos até debates públicos, como o que ocorreu na Câmara Municipal de Santos, que ficou lotada. A estratégia incluía também diálogo intenso com a imprensa: eu dava entrevistas diárias, às 16h, para os dois jornais locais. Isso garantia visibilidade e pressionava por mudanças.
Além disso, mantínhamos proximidade com trabalhadores e profissionais de saúde nos territórios. Organizávamos conversas, eventos, levantávamos dados para pautar a mídia. Com isso, atraíamos simpatia popular e fazíamos das deficiências locais notícia, sem nunca sofrer censura do governo. Pelo contrário, havia incentivo para enfrentar dificuldades, pois o processo de redemocratização demandava abertura e transparência.
Nelson: Você citou algumas inovações. Quais experiências concretas marcaram sua gestão e se tornaram referência?
Lia: Criamos a primeira unidade de psiquiatria dentro de um hospital geral, no Guilherme Álvaro, reformando a antiga casa de Martins Fontes para internações curtas, em sintonia com as ideias da reforma psiquiátrica. Também inauguramos, em 1983, o primeiro Centro de Saúde do Trabalhador do país, com vigilância epidemiológica voltada a agravos relacionados ao trabalho.
Essa experiência levou a uma resolução em 1984, tornando compulsória a notificação desses agravos na região siderúrgica e petroquímica de Cubatão, duas décadas antes de a política nacional adotar medida semelhante. Outras regionais vieram conhecer a experiência, inclusive quando Sérgio Arouca estava à frente da secretaria no Rio de Janeiro.
Atuamos ainda na área ambiental, com apoio do Ministério Público, no chamado dossiê Rhodia, que revelou contaminações graves e resultou no fechamento da empresa. Criamos também iniciativas voltadas à saúde do idoso, em parceria com sindicatos de aposentados e movimentos da terceira idade. E estruturamos um sistema de vigilância das malformações congênitas, em resposta às evidências de anencefalia.
Nelson: Como era a articulação com outras instituições e a expansão dessas práticas para além da Baixada Santista?
Lia: Nossas ações incluíam vistoria de salas de raios-x com apoio da FUNDACENTRO, capacitação de operadores, melhoria da qualidade diagnóstica de silicose e outras doenças. Criamos uma prática de registrar “boletins de ocorrência” sanitários, relatando falhas nos serviços, e promovíamos reuniões para discutir casos concretos e corrigir fluxos.
Muitas iniciativas nasceram informalmente e se consolidaram depois, como o Programa de Saúde do Trabalhador. No início, até fiz um carimbo para me autointitular coordenadora, consolidando um espaço que mais tarde se tornou formal dentro da estrutura do Estado. Essa ousadia inspirou outras regionais a reivindicarem programas semelhantes.
Fomos pioneiros também na conferência estadual de Vigilância Sanitária, que incluiu pela primeira vez saúde do trabalhador e saúde ambiental como eixos de discussão. Dessa experiência nasceu um curso de formação de gestores, posteriormente adotado pelo Ministério da Saúde. Eu mesma percorri diferentes regiões do país levando essa experiência.
As reuniões de diretores regionais eram muito integradas, discutíamos orçamento, trocávamos experiências. A regional de Registro, por exemplo, criou a primeira vigilância para intoxicação por agrotóxicos; em Santo André, surgiram iniciativas sobre mercúrio. E havia forte apoio do Instituto de Saúde, com nomes como Lacaz, Clarice Umbelino e Luiz Galvão, que nos davam respaldo técnico.
Nelson: Você relatou uma série de embates políticos e também desafios sanitários, como a presença de vibrião colérico em Santos. Como foi enfrentar essas situações em meio a interesses econômicos e pressões locais?
Lia: Encontramos vibrião colérico no monitoramento do esgoto de Santos. Isso exigiu vigilância rigorosa: fizemos culturas de todas as diarreias atendidas em hospitais e prontos-socorros, até que o Ministério da Saúde acionou o CDC para investigar. Descobriu-se que era uma cepa rara, sem exotoxina, mas o risco era real.
Houve forte oposição local. O prefeito chegou a tomar banho na saída do canal para dizer que não havia perigo, e a Associação Comercial fazia campanha contra nossas medidas. Ainda assim, mantivemos o trabalho preventivo.
Também criamos o PAC — Plano de Ação Conjunta — com o movimento sindical, para notificação de casos e atividades educativas. Desenvolvemos projetos de saneamento integrado em favelas de Santos e São Vicente, em parceria com a Sabesp. Inovamos na gestão administrativa, racionalizando almoxarifado, cadeia de frios e dados epidemiológicos. Atuávamos tanto em atividades-fim quanto em atividades-meio, sempre com espírito inovador.
Nelson: Você viveu esse momento de criação dos escritórios regionais. Como foi a transição do antigo modelo de departamentos para os ERSAs?
Lia: Fui metade da gestão no sistema de departamentos regionais de saúde e a outra metade já no modelo dos escritórios regionais, dentro da proposta de descentralização. Nós, diretores, participamos ativamente da concepção.
Contamos com apoio da FUNDAP, que organizava encontros constantes entre nós e a equipe de planejamento. Éramos parte pensante dessa reformulação, havia um espírito de participação genuíno. Não se tratava de discurso, mas de prática concreta: tínhamos tarefas de levar as discussões às bases, às unidades de saúde, e de trazer o retorno para a secretaria.
Os ERSAs se articularam também com os escritórios de governo que cada região tinha, responsáveis por dialogar com os prefeitos e resolver conflitos locais. Isso dava governabilidade. Se surgia um problema em algum município, resolvíamos no escritório regional, sem necessidade de escalar até o secretário ou o governador. Era uma lógica de gestão mais próxima, com reuniões entre prefeitos, pactuações e fluxos compartilhados.
Outro ponto importante era que o governador Montoro governava para todos, independentemente da filiação partidária. Atuávamos bem também com prefeituras de oposição, o que ajudava a sustentar a lógica de integralidade e descentralização.
Nelson: E como era lidar com os resquícios de fisiologismo político que ainda estavam presentes nesse período?
Lia: Apesar do espírito democrático, ainda havia práticas fisiológicas. Alguns deputados insistiam em indicar pessoas para cargos de chefia em centros de saúde. Em Santos, por exemplo, a família Justo pressionava constantemente para colocar um médico sem perfil para chefiar o Centro de Saúde de Itanhaém.
Nós enfrentávamos essas demandas diretamente, recebendo os deputados em gabinete e explicando que não aceitaríamos imposições. Esse enfrentamento fazia parte do cotidiano, mas havia respaldo político para sustentá-lo. Essa postura ajudou a consolidar a autonomia técnica das regionais, mesmo em um ambiente ainda marcado por práticas clientelistas.
Nelson: Nós já estamos completando uma hora de gravação. Queria que você fizesse uma síntese: depois de quatro anos e três meses na regional, o que aconteceu? Você acompanhou a continuidade? Permaneceu na região?
Lia: Continuei na região até 1995. Quando entrou o governo Quércia, a carreira de sanitarista praticamente se desfez e a lógica de escolha dos diretores regionais perdeu critério técnico. Passaram a ocupar cargos pessoas sem formação em saúde pública.
Nesse contexto, deixei a regional, mas construí para mim uma função que não existia formalmente: coordenadora de Saúde do Trabalhador. Passei a atuar junto ao movimento sindical para sustentar aquele programa que havíamos criado. Sofri sindicância e processo administrativo por isso, mas segui na militância.
Depois pedi licença da secretaria e prestei concurso para a prefeitura. Entrei no período em que Telma de Souza havia sido eleita prefeita, em 1988, com uma gestão progressista, sobretudo na saúde mental. Contribuí muito nesse campo, primeiro ainda vinculada ao Estado e depois já na prefeitura, na gestão de David Capistrano.
No Estado, após a saída da regional, concentrei minha atuação na consolidação da Saúde do Trabalhador. Era uma área nova na saúde pública e tinha articulações nacionais via DIESAT. Descobri a epidemia de benzenismo, o que me levou a diferentes estados. Também continuei envolvida na questão ambiental, especialmente no caso Rhodia, que se arrastou por anos e demandou forte atuação sanitária.
Paralelamente, desenvolvi meu mestrado sobre benzeno, com estudo hematológico realizado no Hemocentro da Unicamp, e o doutorado sobre organoclorados da Rhodia, com estudo citogenético. Ambos tiveram repercussão direta em mudanças normativas no INSS e no Ministério do Trabalho, reconhecendo a gravidade dos efeitos dessas substâncias.
Nelson: E como você avalia a formação dos sanitaristas e a inserção deles nas políticas públicas depois desse período?
Lia: O Estado de São Paulo tinha uma característica marcante: nós, médicos-sanitaristas, éramos muito empoderados. A carreira garantia autonomia e capacidade de inovação.
Quando me mudei para o Nordeste, após defender o doutorado, ingressei na Fiocruz em Recife. Aqui percebi um cenário diferente: muitos sanitaristas formados, mas pouquíssimos médicos optando por essa área. Além disso, noto pouco empoderamento — profissionais amarrados, inseguros, sem liberdade de ação.
Meus ex-alunos no nível local têm medo de agir fora do prescrito. Não há política consistente de desenvolvimento de recursos humanos para sustentar quadros técnicos capazes de conduzir o SUS. Isso compromete a capacidade de inovação.
Na nossa época, havia engajamento, militância, envolvimento com as causas. Essa dimensão política fortalecia a atuação técnica e ajudava a abrir espaços. Esse vínculo entre militância e prática sanitária foi determinante para a consolidação de tantas experiências.
Nelson: Se você tivesse que fechar essa trajetória, qual foi o legado principal da sua experiência no período? O que você ressaltaria para a saúde pública?
Lia: Eu destacaria a Saúde do Trabalhador como uma inovação de grande repercussão nacional. Conseguimos introduzir esse campo na rede pública de saúde e dar visibilidade a agravos que até então eram invisíveis.
Um exemplo foi a questão do benzeno. Obtivemos mudanças nas normas regulamentadoras ao destituir a ideia de limite de tolerância para substâncias cancerígenas. Conseguimos consolidar o conceito de que, para agentes como o benzeno, não há exposição segura.
Outro legado foi a ampliação da agenda ambiental. Até então, restringia-se ao saneamento ou à higiene em alojamentos. Nós a expandimos para riscos químicos, poluição atmosférica, qualidade da água, dermatoses ocupacionais. Essa articulação entre saúde do trabalhador e saúde ambiental se tornou um marco da nossa atuação e permanece até hoje como referência no meu trabalho.
Nelson: Essa incorporação de novas agendas foi decisiva. Hoje vemos como a saúde ambiental, a saúde do trabalhador e as questões climáticas ganham centralidade. Sua experiência foi parte importante desse avanço. Há algo mais que gostaria de acrescentar?
Lia: Sempre digo que não entendo como não conseguimos reproduzir, em outros momentos, a forma de gestão que tivemos naquela época. Com a Constituição de 1988, o SUS se consolidou como uma conquista histórica, mas o Ministério da Saúde centralizou excessivamente as políticas.
A municipalização foi rápida demais e esvaziou o papel do Estado, que perdeu capacidade técnica. Os municípios tiveram de aprender gestão do zero, sem quadros preparados. Houve um ganho de participação local, mas também problemas sérios ao eliminar o nível intermediário.
Outro ponto é a verticalização de programas, determinada muito mais pela lógica do financiamento do que pela execução. Isso limitou a inovação. Nossa geração tinha o pé no território, conhecia os problemas de perto. Hoje, vejo muitos profissionais entrando no nível central sem experiência com o SUS, elaborando normas distantes da realidade local.
Falta uma política consistente de formação e valorização de quadros técnicos que deem sustentação ao sistema. A militância ajudava muito a abrir espaços, e isso foi uma característica da nossa geração. Atuávamos movidos por causas, e isso fazia diferença.