Quando: 21 de agosto de 2024
Local da Entrevista: Ambiente virtual
Em uma entrevista exclusiva, a professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), Amélia Cohn, uma das fundadoras da Sociologia e das Ciências Sociais na área da saúde, compartilha suas experiências e reflexões sobre a trajetória da saúde pública no Brasil. A conversa, conduzida pelo pesquisador Nelson Ibañez, mergulha em temas como a formação do Sistema Único de Saúde (SUS), os desafios da redemocratização e os dilemas atuais da saúde coletiva no país.
Amélia Cohn, que ingressou no Departamento de Medicina Preventiva da USP em 1971, relembra os primeiros passos de sua carreira, marcada por uma postura crítica e independente em um ambiente acadêmico e político muitas vezes polarizado. Ela destaca a importância da autonomia intelectual e da reflexão crítica na construção do campo da saúde coletiva, além de abordar os desafios enfrentados durante a implementação do SUS e as pressões políticas que moldaram o movimento sanitário brasileiro.
A entrevista também traz à tona questões urgentes sobre o futuro da saúde pública no Brasil. Amélia aponta para a necessidade de renovação dos quadros e das ideias no campo da saúde coletiva, alertando para o risco de um conservadorismo crescente e uma excessiva ênfase na eficiência em detrimento de uma visão mais propositiva e democrática.
Para quem se interessa pela história da saúde pública no Brasil, pela luta pela consolidação do SUS e pelos desafios atuais enfrentados pelo sistema, esta entrevista é uma leitura essencial. Amélia Cohn oferece uma perspectiva única, baseada em décadas de experiência e reflexão, que nos convida a pensar criticamente sobre o passado, o presente e o futuro da saúde no país.

Nelson: Amélia, você é uma das fundadoras da Sociologia e das Ciências Sociais na área da saúde. Gostaria que você falasse um pouco sobre sua trajetória e como chegou a essa área. Por que escolheu a saúde? E como foi sua participação no Departamento de Medicina Preventiva da USP?
Amélia: Nelson, minha trajetória na saúde começou quase por acaso, mas foi marcada por desafios e escolhas que refletem o contexto da época. Em 1971, eu estava terminando meu mestrado sobre a Sudene e o desenvolvimento regional, orientada pelo Luiz Pereira, que substituiu Florestan Fernandes após sua aposentadoria compulsória. Com a repressão da ditadura, as vagas na sociologia foram bloqueadas, e o Luiz me sugeriu uma oportunidade no Departamento de Medicina Preventiva da USP. Ele disse: “Amélia, não posso garantir um contrato aqui, mas a Faculdade de Medicina precisa de um sociólogo. Você topa?” Aceitei porque sempre gostei de desafios, mas confesso que não imaginava o que viria.
Naquele tempo, a saúde coletiva era um campo incipiente. A maioria dos profissionais vinha de áreas como pedagogia ou medicina, não das Ciências Sociais. Quando cheguei à Preventiva, o curso experimental de medicina estava sendo criado para formar médicos mais conectados com a realidade brasileira. Era uma proposta revolucionária, mas enfrentamos resistência até dentro da própria USP. Muitos viam o curso como “segunda opção” para alunos menos capazes, mas a verdade é que atraía jovens idealistas, muitos dos quais se tornaram sanitaristas em regiões carentes, como o ABC Paulista e Sorocaba.
Nelson: E como era o ambiente político dentro do departamento naquela época?
Amélia: Havia uma tensão constante. A maioria dos colegas era ligada ao Partidão (PCB), e eu, casada com um weberiano, era vista com desconfiança. Certa vez, um professor me chamou de “perigosa” por não seguir a linha marxista. Mas eu aprendi com Florestan Fernandes e Luiz Pereira que a independência intelectual é sagrada. Isso me levou a criticar certos dogmas da saúde coletiva. Por exemplo, em 1989, publiquei um artigo questionando o “saber militante” que dominava o campo — uma visão que via qualquer crítica às políticas da reforma sanitária como traição. Isso não era bem-vindo, mas eu sempre defendi que a reflexão crítica é essencial para avançar.
Nelson: Você mencionou seu doutorado sobre a Previdência Social entre 1930 e 1964. Por que escolheu esse tema?
Amélia Cohn: Porque havia uma lacuna. Todos estudavam a Previdência pós-1964, mas ninguém olhava para o período anterior, que foi fundamental para entender as desigualdades que o SUS herdou. Minha pesquisa mostrou como a Previdência excluía trabalhadores rurais e informais, criando um sistema fragmentado. O Guilherme Rodrigues da Silva, então chefe do departamento, apoiou a ideia, mas alguns colegas acharam que eu deveria focar em temas mais “urgentes”. Hoje, vejo que esse trabalho ajudou a entender as raízes do SUS.
Nelson: E como foi sua experiência com os alunos e colegas na Preventiva?
Amélia: Foi uma experiência rica, mas também desafiadora. Eu dava aulas para o curso experimental de medicina, que era uma proposta inovadora, mas enfrentava resistência dentro da própria faculdade. Muitos alunos que passaram por lá se tornaram grandes sanitaristas, como o Gastão Wagner, que foi meu orientando. Ele vinha do movimento médico e tinha dificuldade em separar a linguagem militante da acadêmica. Eu sempre dizia a ele: “Gastão, você não está num palanque, está numa academia.” E ele acabou se tornando uma referência na área.
Outro nome importante foi o Paulo Elias, que fez mestrado e doutorado comigo. Ele era um ativista brilhante, mas precisava de ajuda para estruturar suas ideias academicamente. Eu sempre fui muito empírica, então insistia que ele precisava conectar a teoria com a realidade. Ele acabou se tornando um grande professor e clínico, mas era difícil fazê-lo sentar para escrever a tese.
Nelson: E como você vê a trajetória da saúde pública em São Paulo?
Amélia: São Paulo sempre foi um laboratório para as políticas de saúde no Brasil. Aqui, tivemos experiências pioneiras, como os ERSA (Escritórios Regionais de Saúde), que reorganizaram a rede estadual nos anos 1980. Mas também vimos o surgimento das OS (Organizações Sociais), que trouxeram a lógica privada para dentro do setor público. O Santa Marcelina, por exemplo, foi uma das primeiras OS em São Paulo. Era uma instituição com forte influência religiosa, mas também com um compromisso social importante.
Outra figura marcante foi o Adib Jatene, que foi secretário de Saúde e depois ministro. Ele era um conservador moderno, mas tinha uma visão pragmática. Certa vez, ele me disse: “Eu boto meus comunistas debaixo da asa, e com eles ninguém mexe.” Ele protegia os sanitaristas, mesmo sendo de um governo conservador. Isso permitiu que muitas políticas avançassem, mesmo em um contexto difícil.
Nelson: E como você avalia a relação entre o movimento sanitário e o Estado durante a redemocratização?
Amélia: Havia uma ambiguidade. Por um lado, o movimento pressionava por mudanças; por outro, parte dele se tornou dependente do Estado. Na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), por exemplo, a Abrasco chegou com um documento fechado, sem espaço para debate. Eu e a Regina protestamos: “Isso não é democracia!” Mas a hegemonia do PCdoB e do PT na época impunha uma linha única. O ápice foi quando o Eleutério Rodrigues, presidente da Abrasco, escreveu o discurso do Sarney para a conferência. Isso simbolizava a proximidade perigosa entre movimento e poder.
Nelson: E como isso influenciou a implementação do SUS?
Amélia: O SUS nasceu com contradições. A descentralização, por exemplo, foi essencial, mas também abriu espaço para a privatização disfarçada. Em São Paulo, os ERSA reorganizaram a rede, mas priorizaram a eficiência técnica em detrimento da participação popular. Além disso, as OS, criadas nos anos 1990, trouxeram a lógica privada para dentro do público. Uma vez, fui ao Incor e vi um paciente com plano de saúde ser atendido antes de uma idosa pobre. Denunciei, mas me disseram: “É assim que funciona.” Isso é a essência do problema: o SUS precisa ser público não só no nome, mas na prática.
Nelson: E hoje, quais são os maiores desafios?
Amélia: Primeiro, a falta de renovação. O movimento sanitário virou uma “bolha” de mesmos atores circulando entre Estado, universidades e ONGs. Segundo, o conservadorismo acadêmico: muitos jovens teóricos falam de Foucault, mas não entendem a Revolução Industrial. Terceiro, a mercantilização. Durante a pandemia, vimos UBSs terceirizadas onde funcionários nem sabiam o que era SUS. Precisamos resgatar a saúde como direito, não como commodity.
Nelson: Qual sua mensagem para as novas gerações?
Amélia: Que resgatem a ousadia dos anos 1980. O SUS está sob ataque, mas também é uma das maiores conquistas democráticas do Brasil. Precisamos de militância crítica, não de repetição de slogans. E, acima de tudo, lembrar que saúde não se faz só com hospitais, mas com justiça social.