Nesta entrevista conduzida pelo pesquisador Nelson Ibañez no Museu Emílio Ribas, temos o prazer de apresentar uma conversa detalhada com Eduardo Jorge, uma figura central na história da saúde pública no Brasil. Eduardo tem uma carreira que transita entre a medicina, a política e a reforma sanitária, marcando profundamente o sistema de saúde brasileiro. 

Eduardo começou sua jornada na área de saúde como médico, especializando-se em medicina preventiva, onde sua experiência abrangente em regiões carentes do estado de São Paulo ajudou a moldar seu entendimento sobre as necessidades médicas nas comunidades menos assistidas. Seu envolvimento direto em regiões isoladas como o Vale do Ribeira e Barra do Turvo revela não apenas a realidade das disparidades de saúde, mas também a importância da presença médica onde ela é mais necessária. 

Ao longo de sua carreira, Eduardo também se destacou como legislador e reformador sanitário, participando ativamente da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) durante um período crítico de redemocratização no Brasil. Suas contribuições durante a constituinte de 1988 foram cruciais para a implementação de um sistema de saúde que promove o acesso universal e integral à saúde, ideais que continuam a guiar o SUS até hoje. 

A entrevista aborda não apenas os desafios enfrentados por Eduardo e seus colegas na implementação de reformas de saúde, mas também a resistência e as vitórias que moldaram o sistema de saúde pública do país. Ao refletir sobre a trajetória da saúde pública no Brasil antes e depois da criação do SUS, Eduardo proporciona uma visão abrangente e crítica dos avanços e das persistentes desigualdades no acesso à saúde.

Nelson Ibañez: gostaria que compartilhasse um pouco sobre sua trajetória profissional, como chegou a São Paulo e sua visão desse período? 

Eduardo Jorge: Agradeço a oportunidade, Nelson. Confesso que esta é minha primeira visita ao Museu Emílio Ribas, uma verdadeira joia no Bom Retiro. Surpreende-me que, apesar da minha longa carreira na saúde, só agora conheço este espaço, que, sem dúvida, tem um futuro promissor. 

Quanto à minha trajetória, ela reflete a diversidade do Brasil. Minha herança é um mosaico de culturas: avós da Paraíba, Pernambuco e Bahia, e meus pais eram de Olinda e Salvador, respectivamente. Meu pai, médico formado pela primeira faculdade de medicina do Brasil, situada ao lado do Pelourinho, em Salvador, também serviu como oficial médico do exército. Isso nos fez mudar frequentemente, percorrendo o país de norte a sul. 

Nasci em Salvador por uma coincidência de destinos, mas cresci em Porto Alegre. A ironia do destino não me fez gaúcho, mas sim baiano, algo que valorizo muito. A carreira do meu pai nos levou de volta ao Nordeste, e assim passei uma parte significativa da minha infância e juventude na Paraíba, morando numa praia isolada, distante da capital. Essa experiência moldou meu amor pela natureza e meu interesse inicial pela biologia e pela vida animal, embora, influenciado por meu pai, tenha escolhido a medicina. 

Finalmente, minha educação me levou ao Rio de Janeiro, onde estudei em regime de internato e me tornei um ávido torcedor do Botafogo durante os anos dourados do clube. Esses anos no Rio foram formativos, tanto acadêmica quanto pessoalmente, antes de eu voltar ao Nordeste para continuar minha jornada. 

Onde você cursou medicina? 

Ingressei na faculdade de medicina na Bahia aos 17 anos, em 1968, um ano marcado pela efervescência da revolta estudantil global e no Brasil, onde os estudantes desempenharam um papel central no combate à ditadura. Esse mesmo ano marcou meu ingresso no PCBR, um desdobramento do PCB, que naquela época estava fragmentado devido a intensas críticas internas. O PCBR atraía figuras proeminentes do Comitê Central do PCB, incluindo Mário Alves e Jacob Gorender, e representava um grupo de pensamento avançado dentro do movimento comunista. Esse ambiente de fervor político e social inevitavelmente influenciou minha formação e direcionou minha carreira para a medicina social. 

Esse contexto influenciou sua inclinação para a medicina social? 

Sim, definitivamente. Desde cedo, minha trajetória esteve ligada à interseção entre medicina e questões sociais. Após concluir o curso de medicina, especializei-me em Medicina Preventiva na USP, sob a orientação de Guilherme Rodrigues da Silva, um baiano notável tanto por sua competência técnica quanto por sua humanidade. Essa fase foi decisiva em minha carreira. 

Inicialmente, tive interesse em psiquiatria, estimulado pelo movimento da antipsiquiatria e pelos trabalhos revolucionários de Franco Basaglia. No entanto, durante um estágio obrigatório em psiquiatria na USP, confrontei-me com práticas que considerava reacionárias, especialmente a prescrição frequente de eletrochoque. Diante de um dilema ético sobre administrar eletrochoque a uma jovem paciente coreana, que erroneamente consideravam esquizofrênica, decidi abandonar a psiquiatria. Meu desacordo com essas práticas me levou de volta à clínica médica e, posteriormente, reafirmei meu compromisso com a medicina preventiva, uma área que, para mim, oferecia a possibilidade de integrar cuidados de saúde com um impacto social mais amplo. 

Como foi sua experiência durante a residência em Medicina Preventiva? 

A residência em Medicina Preventiva foi uma etapa fundamental da minha formação. Tive a honra de trabalhar com Guilherme Rodrigues da Silva, uma personalidade extraordinária que liderava um dos programas mais renomados da época. Essa área, que também era conhecida como Saúde Pública ou Medicina Comunitária, estava em expansão em várias instituições, como a Santa Casa e a Escola Paulista, e até em Campinas.  

A Medicina Preventiva em São Paulo era um campo fascinante. Era dominada por um grupo excelente de professores e tinha uma estrutura que praticamente encaminhava quem entrava para uma carreira acadêmica. A residência era muito bem estruturada. Passávamos um tempo no Vale do Ribeira, especificamente em Pariquera Sul, que é uma cidade maravilhosa com um hospital regional. 

Eu explorei bastante a região, até cheguei a Barra do Turvo, na fronteira com o Paraná. Fui o primeiro médico a ficar lá por um mês, em 1975. Era um lugar tão isolado que para chegar lá, tive que ir até Apiaí e de lá pegar uma ambulância porque a estrada do Paraná era intransitável.  

Que experiência … 

Sim, e em Barra do Turvo, a situação era muito precária. Não havia luz elétrica regular; apenas um gerador que funcionava das seis às oito da noite. O centro de saúde era apenas uma pequena casa de madeira. Era eu, uma atendente, e o motorista da ambulância. Essas experiências de campo foram incríveis e fundamentais para a minha formação. 

Em 1974 e 1975, enquanto ainda estávamos na residência, fomos abordados por um mensageiro do secretário de saúde, Walter Leser. Este mensageiro, Pedro Dimitroff, tinha sido enviado para recrutar jovens médicos para se tornarem sanitaristas. Isso causou um grande escândalo entre nossos professores. Eles achavam que seríamos abduzidos pela máquina do estado burguês, que estávamos perdendo nossa carreira acadêmica para nos tornarmos parte do sistema. 

E como vocês reagiram a isso? 

Bem, os residentes mais jovens, incluindo eu, vimos isso como uma oportunidade de realmente fazer a diferença no sistema público de saúde, que estava começando a se abrir para nós. Walter Lezer nos ofereceu uma proposta completa: criar uma carreira com progressão, acesso a concurso, e até uma bolsa para um curso intensivo de seis meses em saúde pública. Era uma chance de impactar diretamente na saúde pública de forma significativa. 

Acabamos aceitando e essa decisão nos levou a trabalhar em áreas muito desafiadoras, como Itaquera, São Mateus e Guaianazes, que eram as regiões mais pobres de São Paulo naquela época. A maior parte de nós que entrou nesse programa acabou por liderar uma grande transformação na saúde pública do estado. 

Esse foi um período de grande aprendizado e de imersão profunda nas necessidades reais da população, uma experiência que transformou completamente minha visão e abordagem em saúde pública. A gestão de Walter Leser foi crucial nesse processo, ele realmente foi um visionário na saúde pública de São Paulo. E essa época preparou o terreno para muitas das reformas que viriam a seguir, incluindo a criação do SUS. 

E como foi seu encontro com os movimentos populares da época? 

O envolvimento com os movimentos populares foi uma consequência natural do meu trabalho em Medicina Preventiva. Participei ativamente na criação do primeiro Conselho de Saúde no Jardim Nordeste. A ideia era estreitar os laços entre os profissionais da saúde e a comunidade, uma prática ainda incipiente naqueles anos. Como residentes, tínhamos um contato direto com os estudantes de várias áreas da saúde da USP, que se juntaram a nós como voluntários. Um desses estudantes, Roberto Gouveia, que mais tarde se tornou deputado estadual e federal, foi crucial na organização e na condução do primeiro conselho de saúde, que foi estabelecido em um centro de saúde onde ele colaborava. 

A receptividade foi tão positiva que levou a uma segunda eleição em 1981, que formalizou os conselhos. Entre 1977 e 1978, começamos a expandir os centros de saúde, inicialmente alugando casas enquanto os permanentes não eram construídos. Essa expansão foi significativa, especialmente na Zona Leste, onde o único Centro de Saúde de Itaquera evoluiu para seis, sete, oito centros em bairros como Guaianazes, São Mateus e Sapopemba. 

O crescimento culminou na segunda eleição para os conselhos, que então já contavam com 15 ou 16 formações diferentes. As eleições eram feitas com fotos dos candidatos e quase 80 mil pessoas participaram da votação, uma façanha notável, considerando que ainda estávamos sob regime ditatorial e sem eleições diretas para prefeitos das capitais. Esse processo não apenas mostrou o poder da participação comunitária, mas também solidificou a estrutura e a institucionalização desses conselhos dentro da gestão da saúde pública. Isso tudo aconteceu durante uma época de mudanças significativas, incluindo a troca de secretários de saúde tanto no âmbito municipal quanto estadual, refletindo um período de intensa transformação e engajamento cívico. 

A entrada de Maluf marcou uma nova fase na saúde pública? 

Com a saída do Dr. Walter Leser e a chegada do Dr. Adib Jatene durante o governo de Paulo Maluf, houve uma significativa mudança na gestão da saúde pública. Dr. Jatene, reconhecido por seu prestígio na medicina, assumiu em um momento em que o movimento popular já estava bem estabelecido e começando a ganhar força para convocar assembleias com a presença de representantes da secretaria. 

A primeira grande assembleia ocorreu em São Mateus, diante da igreja principal da região, um local simbólico para o movimento. Dr. Jatene, acompanhado do Dr. Nelson Proença, foi recebido em um palanque preparado pela comunidade. O evento foi marcado por debates intensos e trocas de ideias, onde a comunidade local se mostrou extremamente engajada e informada. 

A participação do Dr. Jatene foi decisiva. Ele, que era considerado um dos maiores cardiologistas do Brasil, mostrou uma abertura e um respeito pelas demandas populares que surpreenderam a todos. Sua habilidade de dialogar e considerar as perspectivas dos presentes foi um ponto de virada. Ele prometeu não apenas continuar o diálogo, mas expandi-lo, levando a criações de planos mais abrangentes de saúde que envolviam toda a região metropolitana. 

Essa foi uma época de muita interação entre as autoridades de saúde e a população, uma relação que permitiu um avanço considerável nas políticas de saúde pública. A abordagem de Dr. Jatene, marcada por uma combinação de rigor técnico e sensibilidade social, abriu novos caminhos para o entendimento e implementação de políticas de saúde que realmente atendiam às necessidades da população, consolidando um modelo de gestão participativa que era tanto aguerrido quanto ancorado na realidade das necessidades comunitárias. 

Houve uma virada na Secretaria Estadual de Saúde com a entrada de novas lideranças? 

Sim, definitivamente houve uma virada significativa. Com a saída do Dr. Walter Leser e a entrada do Dr. Adib Jatene durante o governo de Paulo Maluf, a dinâmica na secretaria mudou radicalmente. Dr. Adib era um empreendedor nato, com uma visão ampla e uma capacidade de diálogo notável. Ele transformou a secretaria em uma verdadeira rede de planejamento de saúde, não se limitando aos centros de saúde, mas expandindo para incluir uma rede hospitalar robusta. Isso representou uma mudança de paradigma, da organização à execução. 

E o cenário federal? Houve mudanças semelhantes? 

No âmbito federal, também observamos movimentos de reforma e abertura, mesmo sob o governo autoritário. Era claro que o modelo vigente não era sustentável, com dois terços da população sem qualquer garantia de assistência à saúde, exceto para aqueles economicamente privilegiados ou com empregos formalizados. A discussão sobre a necessidade de uma reforma sanitária estava em andamento, não apenas em São Paulo, mas em todo o Brasil, com iniciativas em diversos estados e até discussões no INAMPS e nos ministérios da Saúde e da Previdência. Essas discussões foram fundamentais para preparar o terreno para as mudanças que viriam com a Constituinte e a criação do SUS. 

A experiência em São Paulo, liderada por pessoas como o Dr. Adib Jatene, Nelson Proença e outros, demonstrou que já existia um movimento real e efetivo para uma reforma sanitária. Essas experiências práticas, que também aconteceram em outras partes do país, mostraram que a mudança não era apenas teórica, mas um processo em andamento que tinha resultados concretos e positivos. Isso nos deu uma base sólida para chegar à Constituinte não só com ideias, mas com experiências comprovadas de que essas reformas eram possíveis e benéficas. Estávamos falando de realidades brasileiras, como Itaquera e São Mateus, e não apenas de modelos estrangeiros. Essas experiências concretas pré-SUS foram cruciais para moldar o que viria a ser o sistema de saúde brasileiro. 

Quando você entrou na política legislativa? 

Fui eleito deputado estadual em 1982, na primeira leva do PT, sob a gestão do governador Franco Montoro, com o secretário Yunes, um democrata cristão de renome, tecnicamente competente e de uma bondade exemplar. Lembro-me de uma assembleia lotada, com cerca de 3 mil pessoas na Avenida Dr. Arnaldo, onde o Yunes, apesar de sua competência, parecia menos à vontade no confronto direto, diferentemente de seus predecessores. Foi uma continuação virtuosa das gestões de Leser e Adib, com uma visão clara de expandir tanto a rede de centros de saúde quanto a hospitalar. 

E sobre o cenário mais amplo, como foi a transição para a Constituinte? 

A transformação na Secretaria de Saúde de São Paulo foi um reflexo do que ocorria em nível federal. A 8ª Conferência Nacional de Saúde foi um marco, delineando o futuro da saúde pública no Brasil. Importante ressaltar que o setor privado se absteve de participar, sentindo-se menos prestigiado. O debate central foi sobre a estatização do sistema de saúde, uma discussão intensa entre estatização imediata ou progressiva. Representei o PT, junto com Paulo Elias, destacando a experiência da secretaria e a perspectiva acadêmica. A proposta de estatização progressiva, considerada mais palatável, acabou prevalecendo. 

Esta conferência, focada exclusivamente no público, catalisou a formação de uma comissão no Congresso Nacional para refinar as propostas e estabelecer um caminho prático para a reforma sanitária. As experiências acumuladas em São Paulo foram essenciais, demonstrando a viabilidade de um sistema de saúde público e universal. A transição para a Constituinte e a subsequente criação do SUS foram embasadas nestas discussões e na realidade concreta das necessidades da população, mostrando que o direito universal à saúde não era uma utopia, mas uma possibilidade real e alcançável. 

Aí houve uma certa institucionalização do processo para a constituinte… 

Com a transição para a Constituinte, o processo ganhou uma natureza mais institucional, especialmente na Comissão de Saúde da Câmara, que contava com a presença de deputados de diversas orientações políticas. Isso trouxe uma moderação ao relatório da Comissão de Reforma Sanitária, com uma participação mais ampla, inclusive da área privada. Comparado a outras áreas de política pública, a saúde entrou na Constituinte com uma proposta bem estruturada, detalhada e fundamentada, incluindo referências internacionais e experiências concretas, como as de São Paulo. 

Diferentemente, áreas como educação e Previdência careciam de propostas bem definidas. A Previdência, por exemplo, foi abordada de forma mais superficial, focando principalmente na inclusão dos trabalhadores rurais ao lado dos urbanos, uma mudança significativa que repercutiu especialmente no Nordeste e corrigiu defasagens na aposentadoria. 

Na Constituinte, como representante federal eleito pelo PT, e com minha experiência prévia na Secretaria de Saúde e ligação com movimentos populares, assumi uma posição central. Fui indicado para atuar na subcomissão de saúde e Previdência da Comissão Social. Diferentemente da corrente sindical médica do PT, que tinha um viés mais corporativo, minha abordagem era mais abrangente e focada na saúde pública e no bem-estar social. 

Quando as comissões foram distribuídas, Lula, que era o líder da bancada do PT com 16 deputados, designou-me para cuidar não apenas da saúde, mas também da Previdência e assistência social. Embora eu expressasse inicialmente que não tinha expertise em Previdência, a resposta foi pragmática: ninguém tinha, então eu deveria “me virar”. Esse desafio ressaltou a natureza daquela época revolucionária, onde o aprendizado e a ação eram simultâneos e todos contribuíam para moldar o futuro político e social do Brasil, culminando no que viria a ser o SUS. 

Então você ficou com a Seguridade Social? 

Exatamente. Inicialmente, eu nem compreendia totalmente o que isso envolvia. Mas os médicos são acostumados a aprender rapidamente. Logo me familiarizei com as nuances da Seguridade Social. Durante as audiências na Comissão da Saúde, ouvimos centenas de pessoas, incluindo representantes do setor privado e acadêmicos. Apresentei a proposta do PT, que defendia uma estatização imediata do sistema de saúde, inspirada no modelo soviético, mas apenas eu e Abigail Feitosa, que era do MDB da Bahia e tinha ligações com Prestes, votamos a favor. Foi uma discussão riquíssima, porque tinha representantes da área privada. Aliás, um representante bastante histriônico e estridente, que liderava a área privada. 

Você está falando de algum oponente específico nesses debates? 

Sim, Roberto Jefferson foi um adversário notável. Ele tinha uma base forte nos grandes hospitais do Rio de Janeiro, que eram verdadeiras fortalezas de clientelismo e corrupção. Jefferson era conhecido por sua postura agressiva, contrastando com outros, como o Inocêncio, que era mais moderado. 

Apesar dos desafios, nossa maioria na Comissão de Seguridade Social era sólida, em parte graças ao apoio do MDB e assessores influentes como Eleutério Rodrigues, um técnico do INAMPS e principal assessor de Ulisses Guimarães. Entre os membros da comissão, tínhamos médicos altamente qualificados de diversas partes do Brasil, como Carlos Bosconi, Almir Gabriel, Abigail Feitosa, e Raimundo Bezerra, que traziam uma rica experiência tanto local quanto internacional. 

A Comissão de Seguridade Social avançou em uma proposta que emergiu das ideias da 8ª Conferência Nacional de Saúde e das experiências das comissões de trabalho, enfatizando a importância do diálogo com outras correntes políticas. Embora a Assembleia Constituinte fosse predominantemente de centro, a pressão popular e o contexto de transição democrática impulsionaram uma dinâmica que tendia para o centro-esquerda. Isso refletia a efervescência da época: estávamos emergindo de uma ditadura para um período de intensa mobilização e liberdade, o que moldou significativamente as deliberações e os resultados da Constituinte. 

Como foi então o relatório aprovado na comissão de saúde? 

O relatório aprovado na Comissão de Saúde foi fundamentalmente revolucionário. Ele propunha a instituição do direito universal à assistência à saúde, um conceito já bem estabelecido em países como Espanha, Inglaterra, Canadá e Alemanha, mas inovador para o contexto brasileiro, dado nosso tamanho continental e diversidade. A chave da proposta era garantir que os dois terços da população brasileira que não possuíam cobertura de saúde legalmente estabelecida passassem a ter direitos equivalentes ao terço mais privilegiado, historicamente coberto pelo INAMPS ou por recursos econômicos próprios. Isso transformaria radicalmente a saúde pública, promovendo uma integração entre os governos federal, estadual e municipal, que antes não existia em nenhuma política pública brasileira. 

Este relatório também enfatizava a municipalização como vetor crucial, por ser o nível de governo mais próximo da população, além de incluir a integralidade da assistência e a participação popular no acompanhamento das políticas públicas, com financiamento público definido. Um ponto crucial discutido foi o modelo de execução, que não seria totalmente estatizado imediatamente, mas permitiria uma participação mista, envolvendo setores público, filantrópico e privado. Essa abordagem moderada visava uma estatização progressiva, sem excluir completamente os outros setores. 

E como essas ideias foram recebidas no plenário da Constituinte? 

No plenário, enfrentamos um cenário bem mais complexo. A proposta da Comissão de Saúde tinha grande aceitação, mas precisávamos de um consenso mais amplo para passar. O debate esquentou quando tentamos reformas mais profundas, incluindo uma tentativa malsucedida de estabelecer um sistema parlamentarista que encurtaria o mandato do então presidente Sarney. Esse movimento inadvertidamente catalisou a formação de um bloco conservador forte, o Centrão, que inicialmente resistiu às nossas propostas. 

Para superar isso, lideranças da Comissão de Saúde, incluindo eu, Carlos Mosconi e Raimundo Bezerra, negociamos diretamente com Carlos Santana, líder do Centrão, que era pediatra e casado com uma sanitarista conhecida. Através dessas conversas, conseguimos esclarecer pontos mal-entendidos e melhorar a redação de partes do texto, especialmente aquelas que tratavam da execução dos serviços de saúde. Com essas adaptações, e o inesperado apoio de figuras influentes, como o próprio Santana, alcançamos uma vitória quase unânime na votação do SUS na Constituinte, com exceção de um único voto contra de Luiz Eduardo Magalhães, que via o sistema como excessivamente estatista. 

Qual o impacto dessas experiências para você pessoalmente? 

Ideologicamente, foi uma reviravolta para mim. As experiências em São Mateus e a eficácia do diálogo e do compromisso no parlamento mostraram que era possível fazer política de uma forma construtiva e inclusiva. Apesar das críticas de figuras como Lenin sobre o parlamentarismo, minha vivência confirmou que o parlamento pode ser um lugar de transformações significativas. Essa jornada pela criação do SUS foi, talvez, a reforma mais ambiciosa e bem-sucedida da Constituição de 1988, evidenciando o poder de um sistema legislativo que realmente funciona e se adapta às necessidades da população. A criação do Sistema Único de Saúde é, sem dúvida, um dos maiores legados daquele período transformador. 

Eduardo, estamos concluindo nossa conversa. Gostaria de deixá-lo expor alguma ideia que queira complementar. 

Eu gostaria de falar sobre uma experiência com Luiz Eduardo Magalhães. Ele estava explorando o liberalismo naquela época, o que era uma novidade para ele, considerando o background de seu pai, que definitivamente não era liberal. 

Sim, seu pai era mais um tipo autoritário. 

Exato. “A Bahia sou eu”, ele costumava dizer. Tive uma discussão bastante curiosa com Luiz Eduardo por causa de uma emenda constitucional que propus, relacionada à vinculação dos recursos para a saúde. Infelizmente, perdemos essa batalha na Constituinte, muito por causa dos economistas, incluindo José Serra, que era uma espécie de czar da economia na época. Nada passava sem a aprovação dele. 

Além disso, César Maia, que na época estava com Brizola, também influenciou essa derrota. Como resultado, a questão do financiamento da saúde ficou sem definição clara—era para ser um financiamento compartilhado, mas não se especificava a fonte dos recursos. 

Posteriormente, em 2000, a emenda que propus sobre a vinculação dos recursos estaduais, federais e municipais finalmente foi aprovada. Antes disso, pedi ao Valdir Pires, que era muito respeitado e querido por muitos, exceto por ACM, que o detestava, para assinar a emenda comigo, aproveitando seu prestígio. 

ACM tinha uma aversão profunda por Valdir. Lembro de uma tia minha, fervorosa seguidora do ACM, que criticava Valdir sempre que ele aparecia na TV. Ela o chamava de “Bispo”, sempre desdenhando de suas falas. 

Portanto, quando apresentei essa emenda, fiz questão de que Valdir estivesse junto comigo, sabendo que isso traria mais peso. No entanto, o relator da Comissão de Seguridade e Saúde na época, Cecílio de Queiroz, era praticamente um subordinado do ACM e também médico, o que complicou ainda mais a situação. 

Vamos voltar para sua trajetória. Você foi preso alguma vez neste período? 

Sim, fui preso em 1969. Na época, meu pai era o reitor da universidade Federal da Paraíba, era um homem muito próximo do presidente e minha prisão causou um verdadeiro escândalo na cidade, que tinha apenas 150 mil habitantes. Apesar das circunstâncias difíceis, fui absolvido, mas o reitor acabou tendo que deixar o cargo. 

Você chegou a ser afetado pela Lei nº 477? 

Não diretamente pela Lei 477, mas pela Lei de Segurança Nacional. A situação ficou insustentável para o meu pai então reitor. Jarbas Passarinho, que era muito amigo dele e presidente do Conselho do Retorno do Brasil na época, interveio. Ele não podia deixar o reitor em uma posição tão comprometida, então o levou para o Rio, junto com toda a sua família. Por minha causa, ele acabou sendo enviado para os Estados Unidos, onde ficou como adido na área de saúde na OEA por um tempo. 

Nossa, que situação complicada para ele. 

Sim, realmente foi. Mas meu pai (GuIardo Martins Alves) depois  retornou ao Brasil e foi nomeado presidente da Fiocruz, onde ficou por cerca de cinco ou seis anos. Quem o substituiu depois foi o Arouca. . Meu pai ajudou a revitalizar a Fiocruz, restabelecendo importantes convênios internacionais com a França e o Japão e ampliando as capacidades de laboratório. Ele era um homem muito dedicado e tinha a confiança do presidente Geisel, que foi fundamental para o fortalecimento da Fiocruz durante esse período. 

Eduardo, antes de finalizarmos, gostaria de perguntar se deseja acrescentar algo ou fazer alguma declaração final? 

Gostaria de destacar um ponto importante sobre o século XXI, especialmente após a pandemia. O SUS enfrentou enormes desafios, incluindo um boicote em nível federal, mas se mostrou heroico no combate à pandemia. Isso levou muitas pessoas, particularmente os jovens, a descobrir e valorizar o SUS, a ponto de acreditarem que a assistência à saúde no Brasil começou apenas com sua implementação. 

Contudo, essa visão não reflete a realidade completa. Parece-me que essa percepção é típica de uma era dominada por informações rápidas e superficiais, como tweets que se limitam a 140 caracteres, e uma certa relutância em olhar para o passado e estudá-lo com profundidade. 

Claro, o SUS foi uma reforma social monumental, um dos maiores legados da Constituição que reinstaurou a democracia no Brasil. Mas seria injusto afirmar que não havia uma assistência à saúde competente no Brasil antes do SUS. A história mostra que, apesar das desigualdades e limitações, houve esforços significativos em saúde no Brasil, que não devem ser ignorados. 

Por isso, valorizo muito relembrar e enfatizar a trajetória da saúde em São Paulo, estado que adotei como meu. Embora eu seja botafoguense e meus filhos corintianos, é aqui que viemos a compreender e valorizar figuras como Emílio Ribas, Adolfo Lutz, Vital Brasil, além de líderes como Walter Leser e Adib Jatene, que foram fundamentais antes mesmo da criação do SUS. Esses pioneiros ajudaram a criar uma base sólida que possibilitou as vitórias e avanços que acompanhamos na Constituinte. 

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