Durante a década de 1980, o Brasil passou por um período importante de transição política e social, marcado pela redemocratização e pela construção do Sistema Único de Saúde (SUS). No epicentro dessas transformações, Ana Maria Azevedo Figueiredo de Souza, médica sanitarista e uma das principais figuras do movimento pela saúde pública em São Paulo, desempenhou um papel fundamental. Em entrevista conduzida por Nelson Ibañez para o projeto “História e Saúde: Instituições, Ideias e Atores”, Ana compartilha suas experiências e desafios na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo durante a gestão Franco Montoro e além.

A conversa mergulha nos bastidores da criação e implementação de políticas públicas que visavam a reestruturação do sistema de saúde em São Paulo, abordando desde as tensões administrativas dentro da Coordenadoria de Saúde da Comunidade (CSC) até a formação dos Escritórios Regionais de Saúde (ERSAs). Ana destaca a importância das políticas federais, como as Ações Integradas de Saúde (AIS), e seu impacto na viabilização do SUS, além de discutir o papel dos gestores regionais na transformação do atendimento à saúde.

Ana Figueiredo relembra ainda momentos importantes, como a greve dos médicos e as pressões políticas que envolveram sua gestão. Ela descreve com franqueza as dificuldades em equilibrar a gestão técnica com as demandas políticas e como isso moldou as decisões que levaram à reformulação da Secretaria de Estado da Saúde. A entrevista é um retrato vivo das complexidades enfrentadas por aqueles que estiveram na linha de frente da saúde pública brasileira, oferecendo perspectivas valiosas sobre a construção de um sistema de saúde mais justo e eficiente.

A entrevista faz parte do esforço contínuo do projeto “História e Saúde: Instituições, Ideias e Atores,” coordenado por Nelson Ibañez e Ana Luiza Viana, que visa documentar e refletir sobre os principais momentos e figuras que contribuíram para o desenvolvimento do sistema de saúde em São Paulo e no Brasil.

Nelson Ibañez: Ana, para começar, poderia fazer um resumo da sua trajetória profissional e abordar o período de redemocratização, que vai de 1982-83 até 1994, incluindo a regulação do SUS, a Constituinte e a oitava conferência?

Ana Figueiredo: Nelson, eu que agradeço. Me sinto honrada por poder contribuir com essa reflexão, e considero essa pesquisa de grande importância. Fico feliz que haja mais estudos e aprofundamentos sobre esse período, que considero de uma riqueza fantástica, especialmente a história paulista que precede a criação formal do SUS. Acredito que, durante a gestão do Franco Montoro, sob a coordenação da Secretaria do João Yunes, trabalhamos para preparar o Estado e as instituições de saúde para ingressar no SUS.

Eu sou médica de formação, fiz minha especialização em infectologia no Hospital Emílio Ribas, onde conheci o José da Silva Guedes, que na época da minha residência era assessor na Secretaria de Estado do governo do Walter Leser. Também conheci o Otávio Azevedo Mercadante, nessa época. No final do meu R2, prestei um concurso e fui aprovada para ser médica consultante no Instituto Pasteur. Quando fui contratada, já com a residência completa, tive várias interações com a secretaria, devido a uma polêmica.

Havia apenas uma vaga para médico e todos os infectologistas das residências, do Servidor, do HC, do Emílio Ribas, prestaram o concurso, pois era uma vaga muito disputada. Eu e o Chico Lacaz, que era meu colega de residência, empatamos com a mesma nota, mas a contratação do Chico foi publicada, e eu fui questionar por que ele foi contratado e eu não. Foi então que o Mercadante me recebeu, após o Guedes, que eu já conhecia, marcar uma audiência. O Mercadante me mostrou o estatuto do servidor, que indicava o gênero como um dos critérios de desempate.

Então, a secretaria alocou uma segunda vaga, e eu fui contratada como médica do Pasteur. Porém, alguns meses depois, fui afastada para fazer o curso de saúde pública, e sou da quinta turma do curso curto dos médicos sanitaristas.

Em que ano foi isso?

Ana Figueiredo: Em 1978. Era a quinta turma do curso. Quando olho para trás, acho que aquele curso de saúde pública, o chamado curso curto específico para médicos, merece uma pesquisa mais formal e acadêmica sobre seus conteúdos curriculares. O currículo não formal, o chamado currículo oculto, era o grande diferencial. Era um período de formação política, onde se compreendiam as tensões…

Só por curiosidade, Ana, quem foram seus colegas nesse curso? Você mencionou que o curso teve um movimento mais político, e parece que o conteúdo formal não ficou tão marcado para você, mas sim a forma de participação. Quem você conheceu lá?

Ana Figueiredo: Lembro de algumas pessoas. Havia uma menina, Cristina Vilanova, que infelizmente já faleceu, e que se tornou uma grande amiga. Ela, depois, foi trabalhar no Vale do Ribeira. Tinha também uma médica chamada Léo, uma militante muito aguerrida, que vinha do grupo de medicina de Ribeirão Preto e era muito próxima do Sergio Arouca. Ela foi casada com um jornalista que tinha uma história de vida fora do Brasil, inclusive como preso político, e que estudou na Alemanha Oriental. Outra pessoa que estava no curso era a Ana Costa, que hoje é presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).

Havia também um rapaz chamado Edison Tuyoshi, que depois trabalhou na secretaria. Era um grupo de pessoas que vinham de várias partes do Brasil: Rio de Janeiro, Nordeste, Minas Gerais. Tinha um moço de Minas Gerais, Luiz Eugênio Godinho, irmão de Paulo Godinho, deputado federal pelo PT e autor da lei da saúde mental que promoveu a desinstitucionalização dos manicômios. Era um grupo muito diversificado e com forte tradição política.

Só para situar uma geração…

Ana Figueiredo: Ana Costa, por exemplo, vinha de Brasília. Tinha um percentual grande de pessoas que vinham do movimento estudantil médico, que na época não era tão importante. Eu, por outro lado, vinha do movimento de residência médica no Estado de São Paulo. Fui da Associação dos Médicos Residentes do Estado de São Paulo (AMERESP), e essa foi minha introdução ao campo da saúde pública.

Não tive uma atuação significativa durante a escola médica. Estudei no interior de São Paulo. Minha militância mais forte foi na residência médica em São Paulo. Fui da segunda diretoria da AMERESP. A primeira diretoria foi liderada por Dalmo, de Sorocaba, que era casado com a Lídia. Eu, Toninho Pena, que até hoje é professor de cirurgia na Santa Casa, e Paulo Elias, que era meu colega de turma, compúnhamos a segunda diretoria, embora Paulo Elias não tenha feito saúde pública naquele tempo.

Então, você fez faculdade na Universidad Autónoma de Baja California (UABC)?

Ana Figueiredo: Não! Fiz faculdade em Mogi das Cruzes. Paulo Elias era meu colega de turma, e uma das grandes influências que tivemos no campo da saúde pública foi o Kurt Kloetzel. Depois do curso de saúde pública, fiz concurso e entrei na carreira de médico-sanitarista. Pertenci a uma geração que já escolhia onde trabalhar no Estado de São Paulo, mobilizada pelos grupamentos políticos.

Nos finais dos anos 70, os médicos sanitaristas eram direcionados para determinadas regiões. Em 1979, fui para o Vale do Paraíba, não só por ser minha região de origem, mas também pela afinidade com o grupo político que estava lá, liderado pelo Arnaldo Ferreira, conhecido como Arnaldo Crioulo. Fui para lá com o Guilherme e o Keiji. Escolhi o Centro de Saúde de Pindamonhangaba, enquanto eles ficaram em Tremembé e São José. Além disso, nós três nos tornamos professores do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Taubaté, que naquela época ainda não fazia parte da universidade. Essa ida para o Vale do Paraíba foi viabilizada pelo Guedes, já chefe da Preventiva da Santa Casa, que foi acionado para estruturar o Departamento de Medicina Social de Taubaté.

Você foi indicada então pelo Guedes, o Keiji, e o Guilherme… Isso?

Ana Figueiredo: O Guilherme fez o curso longo, não o curso curto, e entrou na carreira de médico-sanitarista um ano depois. Quando fomos para o Vale do Paraíba, eu e o Keiji já éramos professores e atuávamos como médicos-sanitaristas. Eu em Pindamonhangaba e ele em Tremembé. O Keiji tinha a tarefa de organizar o Centro de Saúde de Tremembé como um centro de saúde-escola, aproveitando sua experiência anterior na Barra Funda e em Cotia. O Guilherme chegou depois, ajudou o Keiji e depois assumiu o Centro de Saúde de São José dos Campos.

Entre 1979 e 1982, estávamos envolvidos nas discussões sobre renovação médica, na formação do CEBES e na retomada da Associação Paulista de Saúde Pública. Atividades como essas nos tornaram profissionais, ativistas e militantes da saúde pública em São Paulo. Em 1982, quando Franco Montoro venceu a eleição, casei-me com o Guilherme, que foi mais atuante nesse período de organização da equipe do novo governo, enquanto eu estava de licença-gestante.

Com a posse do Montoro em março de 1983, o Guilherme foi indicado para ser superintendente da Superintendência de Controle de Endemias (SUCEN), devido à sua experiência na criação da Regional da SUCEN no Vale do Paraíba, entre 1980 e 1981. Nossa atuação no Vale foi intensa e a escolha do Guilherme foi natural, considerando a urgência de enfrentar a prevalência alarmante de esquistossomose na região, ligada à construção da segunda pista da rodovia Presidente Dutra.

Em 1983, fui para São Paulo para assumir a diretoria do Instituto Pasteur, mas, ao chegar lá, o cenário na Secretaria de Saúde estava se moldando. O Yunes precisava definir quem seria o coordenador da CSC, uma posição complicada com 90 mil trabalhadores e mais de mil centros de saúde sob sua gestão. Alexandre Vranjac aceitou a posição, com a condição de ter três assessores: Cássio de Moraes, Keiji e alguém do interior, que acabou sendo eu. Sob protesto, deixei o Pasteur e aceitei ser assessora do Vranjac na CSC, entendendo que essa decisão era crucial para a estruturação da secretaria naquele momento.

Como foi a sua chegada na CSC? Como foi a dinâmica de trabalho nesse primeiro ano da gestão? Quais eram os focos principais e como você estava nesse contexto?

Ana Figueiredo: Para entender esse período, é essencial lembrar do contexto político e como foram formados os dirigentes do primeiro, segundo e até terceiro escalão da Secretaria de Estado. Quando o Yunes deu posse ao Vranjac como coordenador da CSC, ele também deu posse, no mesmo dia, a 12 diretores regionais de saúde. A CSC era a única coordenadoria que tinha uma estrutura regional, e esses 12 diretores eram todos médicos-sanitaristas, com perfis de militância na saúde pública e, em muitos casos, vínculos com atividades acadêmicas.

Esses diretores eram figuras-chave na estrutura de saúde pública do estado, muitos já atuando como sanitaristas e professores em universidades. Por exemplo, o diretor de Ribeirão Preto era um professor da Medicina Preventiva, e o diretor de Sorocaba também tinha uma forte atuação acadêmica e na saúde pública. Outros nomes importantes incluíam Cecília Della Torre, que foi para o Vale do Ribeira; Luiz Cecílio, que foi para Campinas; Lia Giraldo, que foi para Santos; e o diretor de Sorocaba, que montou um grupo importante com Dalmo, entre outros. Esses perfis mostram como a gestão foi marcada por uma combinação de experiência técnica e militância na área da saúde pública.

Era o Juan, de Ribeirão?

Ana Figueiredo: Não, não era o Juan; era um rapaz de barba. Tem uma fotografia na sala do Gonçalo, na Faculdade de Saúde Pública, em que estão todos os diretores, e a gente vai lembrando quem eram os 12.

Eu vou procurar essa fotografia.

Ana Figueiredo: Nessa foto, na frente, há várias pessoas da assessoria do Yunes, incluindo alguém do planejamento, que veio da OPAS. Essa foto é muito simbólica, não só pelo valor histórico, mas também pelo empoderamento político da época. Quando o Yunes deu posse ao Vranjac e aos 12 diretores regionais, ele os chamou de subsecretários, um título que não era apenas formal, mas que refletia a importância política desses diretores, todos vinculados à CSC.

Essa dinâmica organizacional foi marcada por uma gestão colegiada radical, uma das mais intensas que vivi nos meus 40 anos de saúde pública. Todas as decisões eram resolvidas em colegiados de gestão. Havia um colegiado do primeiro escalão, do qual eu participava como assistente do Vranjac. Na CSC, as reuniões com os 12 subsecretários aconteciam mensalmente, sempre com o Vranjac, não com o Yunes. Essas reuniões eram cruciais para discutir as diretrizes da secretaria, principalmente porque a CSC geria cerca de 70% do orçamento da secretaria.

A CSC tinha um peso administrativo gigantesco, com cerca de 90 mil trabalhadores, e era responsável pela compra de grandes volumes de insumos, como 900 toneladas de leite em pó mensalmente, além de viaturas e equipamentos para mais de mil unidades de saúde. Nosso cotidiano era muito intenso. Fomos ampliando a equipe de assessores, como a Caritas e a Eliana Dourado, e estruturamos uma área de planejamento que coordenava programas como Saúde Materno-Infantil, com nomes como Carlos Rivoredo, Ricardo Oliva e Álvaro Escrivão, que começou a trabalhar nos sistemas de informação. O Vranjac, com sua forte aptidão para as questões de saúde pública, focou na organização da vigilância e controle de epidemias.

Eu também me envolvi na gestão orçamentária e fui buscar formação em gestão de processos administrativos na Fundação do Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP), onde conheci muitos profissionais importantes. Uma das minhas professoras na FUNDAP, por exemplo, foi alguém que mais tarde se tornou ministra da Educação. A FUNDAP era um centro de excelência, com um quadro técnico muito qualificado, incluindo pessoas com experiência na organização da área de planejamento do governo.

Ana, preciso te interromper um momento. Você mencionou dois processos. Um é o colegiado radical, a gestão colegiada radical. Qual é o segundo?

Ana Figueiredo: O segundo é a dinâmica que foi instituída na CSC para formalizar convênios com os municípios.

Ou seja, o início da municipalização?

Ana Figueiredo: Então, criamos um projeto inspirado na experiência do Vale do Ribeira. A Cecília Della Torre era diretora regional em Registro, e ela tinha trabalhado como médica no Vale desde a residência, que fez na Medicina Preventiva na USP. No R2, ela ficava direto lá, porque o Vale era um local de extensão do curso de medicina para residentes e internos. Ela desenvolveu uma forte vinculação com o projeto de agentes comunitários de saúde, que começou no Vale do Ribeira, especialmente nas escolas rurais, onde líderes comunitários começaram a emergir.

Quando a Cecília se tornou diretora regional, trouxe essa experiência da educação para a saúde, ajudando a desenvolver um importante projeto chamado “Municípios Carentes”. O Montoro se comprometeu com o Yunes a garantir que, em quatro anos de governo, nenhum município de São Paulo ficaria sem um médico. Na época, o estado tinha cerca de 480 municípios, e muitos deles possuíam unidades de saúde, mas não tinham médicos.

O projeto, viabilizado pela Secretaria, permitiu que médicos fossem enviados para esses municípios, com salários complementados pelo município e moradia fornecida pelo prefeito. Embora esse não fosse o desenho final da Estratégia de Saúde da Família, se aproximava muito disso. Esse projeto também começou a incluir a possibilidade de agentes comunitários de saúde atuarem junto aos médicos.

Isso deu aos diretores regionais, agora chamados de subsecretários, um papel político ainda mais importante, pois eles precisavam viabilizar conversas com prefeitos, formalizar documentações e contratos. Essa nova função aumentou sua relevância política e conhecimento regional, criando uma tensão maior na relação entre a CSC e o gabinete da secretaria.

Além disso, esse movimento ampliou a demanda assistencial, provocando debates sobre a programação de saúde, que alguns viam como limitadora da atuação das unidades básicas. Outro fator que ampliou a agenda de atendimento foi um convênio com o Ministério e o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), embora eu não lembre agora o nome específico desse contrato.

Não é o CIAM? Era um convênio que pegava a capacidade ociosa do centro de saúde e contratava médicos para fazer atendimento. Era incorporação da assistência médica…

Ana Figueiredo: Isso mesmo, Nelson. Era o CIAM (Centro de Integração Assistência Médica no Centro de Saúde), o convênio que utilizava a capacidade ociosa dos centros de saúde para contratar médicos e ampliar o atendimento. Era o terceiro turno, geralmente das quatro ou cinco da tarde em diante. Essas unidades básicas começaram a duplicar ou triplicar seu movimento, gerando uma demanda crescente por infraestrutura, especialmente em laboratórios, tanto de saúde pública quanto de clínica.

A CSC não estava preparada para essa ampliação, o que gerava tensões constantes. Os diretores regionais, que eram muito criativos, começaram a encontrar maneiras de contornar essas limitações. Por exemplo, Sônia Terra, diretora do distrito de Osasco, desenvolveu uma solução inovadora para melhorar a infraestrutura física dos centros de saúde. Ela conseguiu passar verbas para as prefeituras realizarem reformas nas unidades, o que incluía não só melhorias funcionais, mas também estéticas, como a introdução de cores e identidades visuais mais agradáveis.

Isso rapidamente se espalhou, com todos os centros de saúde querendo fazer o mesmo. Esse movimento também intensificou o debate sobre a ampliação dos programas de saúde, com alguns diretores defendendo a manutenção dos programas tradicionais, enquanto outros, como Ênio Silveira, de Marília, resistiam às pressões para abandonar esses programas em favor de uma assistência mais abrangente.

Essas discussões refletiam um debate teórico mais amplo, que também ocorria nas academias e era discutido em publicações como a revista do CEBES. Era um momento de intensa reflexão e conflito sobre a direção que a saúde pública deveria tomar, entre a manutenção dos programas estruturados e a incorporação de uma assistência médica mais ampla e integrada.

A CIAM foi a primeira iniciativa, mas depois vieram as AIS. Como você vê essa transição? A AIS trouxe mudanças significativas?

Ana Figueiredo: As AIS vieram um pouco depois. Ainda estamos falando dos anos de 83, 84 e 85. Quando chegamos em 85, o Vranjac foi encarregado de montar o Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE). Isso aconteceu porque a Aids se confirmava como uma epidemia importante, gerando um debate intenso entre os sanitaristas e epidemiologistas sobre a gravidade e o impacto que teria. Vou te contar algo que virou quase uma lenda: a Congregação da Faculdade de Saúde Pública fez uma nota criticando a criação do programa de controle de HIV e Aids, dizendo que isso era uma agitação dos sanitaristas comunistas, uma bobagem que começava a dar voz aos movimentos sociais.

Só para registrar, essa crítica da Congregação da Faculdade de Saúde Pública foi feita em que ano? 82 ou 83?

Ana Figueiredo: Foi por volta desses anos, mas o documento se perdeu. Procuramos muito essa ata, especialmente depois, quando o Yunes se tornou diretor. Infelizmente, nunca conseguimos encontrá-la. Era uma situação muito constrangedora e acabou se perdendo.

Então, nunca encontraram essa ata? Foi quase como uma reunião clandestina da Congregação.  

Ana Figueiredo: Exatamente, nunca encontramos. E é uma pena. Quando o Vranjac foi para o CVS, eu assumi a coordenação no lugar dele, tornando-me a primeira mulher coordenadora da Secretaria do Estado. O Yunes não queria uma mulher no cargo, e eu tinha apenas 32 anos na época. Acho que isso foi um fator importante. Ele queria alguém com mais experiência e, definitivamente, não queria uma mulher no cargo. A pessoa que ele inicialmente indicou foi o Luiz Cecílio. No entanto, o coletivo dos diretores regionais se reuniu e vetou a indicação do Cecílio, optando por me indicar. Eu fiquei surpresa e perguntei por que eu? Eles me disseram que, como assessora do Vranjac, eu estava por dentro de todas as questões e conflitos das 12 regionais, enquanto havia um receio de que o Cecílio pudesse segmentar ainda mais a secretaria, talvez por razões políticas ou ideológicas. O Cecílio, sendo de origem trotskista, gerava essa preocupação. Eu, por outro lado, estava mais ligada ao grupo dos antigos, que talvez vissem em mim uma opção mais segura.

Mesmo assim, eu mesma não queria assumir essa coordenação naquele momento da minha vida. Mas fui impelida a aceitar e, no final, as coisas se ajustaram. Isso foi em 1984, e naquele momento eu já estava bastante convencida de que a CSC não tinha mais saída. Ao contrário do Vranjac, eu defendia a reestruturação da secretaria. Achava que essa estrutura da CSC, com esses 12 subsecretários, não era mais funcional…

Então, a gestão da CSC era praticamente impossível de conduzir, certo?

Ana Figueiredo: Sim, era impossível de gerir. Embora houvesse aspectos muito positivos, como a ampliação da assistência, a requalificação e a visibilidade política que a secretaria começou a ter, especialmente com as respostas às crises de Sarampo, Meningite e Aids, a tensão administrativa era absurda. Eu me via constantemente tendo que abrir sindicâncias para apurar conflitos que surgiam, como brigas entre médico-sanitaristas e municípios. Não havia uma estrutura organizativa capaz de lidar com isso e a hipertrofia da área de recursos humanos da CSC só aumentava o caos.

O problema se agravava quando os diretores regionais, como o do Vale do Paraíba, por exemplo, traziam prefeitos e deputados para audiências com o Yunes. Eles negociavam recursos ou promessas que muitas vezes não poderiam ser cumpridas dentro do orçamento da CSC, o que gerava uma tensão constante. Eu estava sempre no meio disso, tendo que tentar conciliar as promessas feitas com a realidade orçamentária da coordenação. O Mercadante, que tentava ajudar a administrar esses conflitos, também se via em situações difíceis, especialmente quando o Yunes prometia recursos que simplesmente não existiam.

Isso sem mencionar a greve dos médicos, que ocorreu em meio a tudo isso. O secretário do Planejamento na época, o José Serra, dizia que não havia dinheiro para aumento salarial, o que prolongou a greve por semanas. Quando a orientação do gabinete era cortar o ponto dos grevistas, alguns diretores regionais, como o Bidim na Grande São Paulo, se recusavam a cumprir. Acabou que tive que demitir o Bidim por questões políticas. Era um período de reorganização partidária; o PT estava se estruturando; e essas tensões políticas eram intensas.

Além disso, houve a questão do leite nos centros de saúde, onde havia uma tensão sobre como distribuí-lo de forma justa e eficiente. Por exemplo, o Eduardo Jorge distribuía o leite diretamente do caminhão, sem seguir as orientações de prescrição clínica, o que causava ainda mais conflitos. Eu me vi em uma posição onde era impossível agradar a todos, e a pressão era constante.

Então, contratamos a FUNDAP para pensar em um processo de reestruturação. A Rose e o Luciano fizeram um trabalho minucioso, ouvindo todos os níveis da secretaria. Eles propuseram duas reformas, uma mais radical, que acabava com as coordenações, e outra mais moderada. Quando a proposta foi apresentada em uma reunião do colegiado, houve uma votação. Fui a única que votou a favor da reforma. O José da Rocha Carvalheiro tentou mediar, mas não estava convencido, e a maioria votou contra, incluindo o Guilherme e o Marcos Ferraz. Isso já era em 1985, quase no final dos quatro anos de gestão, mas era evidente que a reforma era necessária.

A formação dos CVS e CVE era urgente. Eles precisavam sair da estrutura da CSC para se tornarem órgãos independentes e funcionais. O CVS, por exemplo, foi formado a partir do que chamávamos de exercício profissional, que fiscalizava medicamentos e profissões. Outro exemplo era a área de saneamento da CSC, que cuidava de questões de meio ambiente. Essas áreas precisavam ser reorganizadas para formar a Vigilância Sanitária, mas a resistência à mudança era enorme. Depois da votação frustrante sobre a reforma, eu realmente senti que algo precisava mudar. A resistência era grande, mas o processo de mudança já estava em movimento, e seis meses depois, a reforma se tornou incontestável.

Isso foi a implantação dos ERSAs, certo?

Ana Figueiredo: Exatamente. A grande reforma acabou com as coordenadorias e, como o Luciano costumava brincar, eu fui a primeira pessoa que ele conheceu que literalmente destruiu o próprio local de trabalho, extinguindo a CSC.

Deixe-me entender, em 1985, foi criado o Programa Metropolitano, que trouxe uma nova proposta de integrar hospitais, centros de saúde, laboratórios e criar os chamados módulos. Como você, estando na CSC, participou desse redesenho da secretaria que acabou resultando na criação desses módulos, com a construção de hospitais e centros de saúde na região de São Paulo? Como você via isso, considerando que a CSC era inadministrável e que uma reforma era necessária? Essa nova proposta de integração ajudou ou atrapalhou?

Ana Figueiredo: Ajudou muito, sem dúvida. Na verdade, o que estava sendo feito com os módulos no Programa Metropolitano era exatamente o que desejávamos fazer para o Estado inteiro. Era uma contradição clara: por que ali era possível criar módulos integrados, articulando hospital e centro de saúde, mas a CSC não tinha uma estratégia semelhante para o Estado? O que a CSC precisava era exatamente isso: vincular o laboratório Adolfo Lutz regional com os hospitais, que já estavam se transformando de hospitais especializados, como os de tuberculose, em hospitais gerais, conectados a essa estrutura integrada.

Dentro da secretaria, já havia essa concepção de que a integração era eficaz e funcional. Então, por que não aplicar isso em todo o Estado? A estrutura dos módulos era o modelo que os diretores regionais apoiavam, mas para que isso funcionasse, era necessário desmantelar a CSC. A estruturação dos ERSAs e das cinco macrorregiões seguiu essa lógica de vinculação territorial, onde todas as estruturas estariam interligadas e funcionando em conjunto. Portanto, o projeto da Grande São Paulo foi fundamental para fundamentar essa abordagem em todo o Estado.

Como você vê o papel das AIS? Por exemplo, para assinar o convênio com o Banco Mundial, uma das cláusulas era a assinatura das AIS. Se a Previdência, o INAMPS, não investisse na Secretaria, nada disso seria possível. Como isso impactou do ponto de vista financeiro ou na implementação de uma política de incorporação, de assistência e integração? Qual a sua visão sobre as AIS?

Ana Figueiredo: Agora estamos falando de um período mais à frente, 1986 teve a oitava conferência, e em 1988 tivemos a nova Constituição. Estamos tratando de um momento posterior. Acredito que a Secretaria foi preparada para isso com a reforma estrutural promovida pelo Montoro.

Naquele momento, já observei o movimento das AIS, a transição do SUDS para o SUS, mas eu já não estava mais no nível central da Secretaria. Com o fim do governo Montoro e a entrada do Pinotti, fui para a direção do CADAIS. Todas as áreas técnicas das quatro coordenadorias se juntaram.

O CADAIS era o antigo DTM, não é?

Ana Figueiredo: Era muito mais ampliado. O DTM era focado apenas no planejamento, enquanto o CADAIS abrangia todas as áreas, incluindo o grupo técnico hospitalar, mental e especializado. O CADAIS funcionava como um Centro de Apoio Técnico para todas essas áreas, organizando as coisas de forma diferente.

O Pinotti radicalizou o desenho dos GEPROs, Grupos Especiais de Trabalho, por áreas temáticas, e o CADAIS foi crescendo. Essa transição do SUDS para o SUS e a implementação das AIS aprofundaram o processo. A Secretaria estava estruturada nas macrorregiões, o que foi fundamental.

Entre 1987 e 1988, começou a descentralização das estruturas, e um pouco mais tarde, em 1989, a transição das estruturas federais para o Estado, quando o Guedes foi para o Ministério da Saúde e incorporou o INAMPS. Mas as AIS, que vieram antes, viabilizaram a expansão da atenção médica e assistencial. As unidades estaduais estavam mais preparadas para isso, graças à sua reconfiguração territorial.

As macrorregiões começaram a articular todos os equipamentos em seu território. As AIS permitiram a contratação e ampliação das atividades assistenciais nas unidades básicas de saúde. Paralelamente, surgiu um movimento muito importante de municípios que começaram a ter uma gestão de saúde exemplar, como Bauru com o Davi Capistrano; Campinas com o Nelson Rodrigues dos Santos; Londrina com Pordone; Niterói e Montes Claros em Minas Gerais. Esses municípios agora reivindicavam uma maior vinculação, promovendo uma dinâmica política significativa para o período.

Ana, vou fazer um parêntese. Estamos há uma hora e meia de gravação. Podemos dividir a entrevista em duas partes? Nesta primeira parte, chegamos até as AIS e o SUDS. Até 1994, por quanto tempo você ficou no CADAIS?

Ana Figueiredo: Fiquei no CADAIS por pouco tempo, apenas em 1988. Nesse mesmo ano, pedi demissão, e a Maria do Carmo me substituiu. Eu estava passando por questões pessoais, me separei do Guilherme, não queria mais morar em São Paulo. Meu filho Francisco tinha bronquite, e eu queria sair da cidade. Foi um momento de muitas mudanças para mim.

Então, você se afasta da secretaria.

Ana Figueiredo: Sim, me afastei da secretaria e fui para a Regional de Taubaté, onde assumi o papel de assessora. Ampliei minhas horas na universidade e acompanhei os movimentos regionais. A transição foi muito rápida.

Translate »