Neste momento de intensa reflexão sobre os caminhos percorridos e os desafios que ainda se impõem à saúde mental no Brasil, temos a honra de trazer ao público uma entrevista, conduzida pelo pesquisador Nelson Ibañez. O objetivo deste encontro será apresentar a trajetória e as contribuições de um dos pilares na luta pela reforma psiquiátrica no país, o professor Marcos Pacheco de Toledo Ferraz. Sua jornada, marcada por um compromisso inabalável com a melhoria dos cuidados em saúde mental e por uma atuação destacada em tempos de transformações sociais e políticas significativas, é revelada em detalhes nesta conversa.

Ao longo das entrevistas, mergulhamos nas memórias e análises do Professor Ferraz, desde seus primeiros dias na medicina até seu papel fundamental nos movimentos que buscaram humanizar e reformar a psiquiatria brasileira. Com a condução perspicaz do Professor Nelson Ibañez, estas conversas vão além da narrativa de uma carreira dedicada à saúde mental; elas desvelam as camadas complexas de uma época de intensos debates políticos, ideológicos e sociais, oferecendo um olhar detalhado sobre os desafios enfrentados e superados por aqueles que dedicaram suas vidas à causa.

Neste diálogo, destacamos não somente as contribuições de Ferraz para a psiquiatria e para a reforma psiquiátrica, mas também mergulhamos em discussões sobre os movimentos sociais que influenciaram e foram influenciados por estas mudanças, como o feminismo, a luta pelos direitos humanos e o movimento antimanicomial. Exploramos as intersecções entre a saúde mental, a política e os movimentos sociais, lançando luz sobre como estas dinâmicas moldaram o atendimento psiquiátrico no Brasil e contribuíram para os esforços de reforma.

Convidamos você a acompanhar esta jornada através da história e das histórias da saúde mental em São Paulo e no Brasil.

Prof. Marcos poderia nos falar de sua trajetória profissional e inserção no período de redemocratização?

Eu fui professor titular, tendo iniciado minha carreira na Escola Paulista de Medicina em 1969 e alcançado a posição de professor titular vinte anos depois, em 1989. Durante a transição dos anos 80, vivíamos ainda sob o regime de uma ditadura, mas essa época já sinalizava o surgimento de espaços para debate em São Paulo, o que se mostrava particularmente interessante. Dentro do Conselho Regional de Medicina (CRM), nosso grupo, que era bastante numeroso, conseguiu vencer uma eleição. Esse mesmo grupo, diversificado e composto por democratas de várias vertentes, membros do Partido Comunista e cristãos, promoveu debates enriquecedores no CRM, incluindo a punição de médicos envolvidos em atos de tortura, fatos esses que estão bem documentados e sobre os quais não me cabe mais discutir.

Nessa época, eu também presidia a Associação Brasileira de Psiquiatria, sucedendo Ulysses e Ana Filho. No Congresso de 1978, concluímos com uma moção por anistia ampla, geral e irrestrita, marcando um momento histórico significativo no recuo da ditadura. Esse recuo se acentuou com a eleição de Franco Montoro em São Paulo e de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, seguidos por Waldir Pires na Bahia, delineando um período de importantes mudanças políticas.

Foi também um momento de intensa mobilização e debate sobre mudanças, particularmente na rua Madre Teodora, onde se reuniam pessoas para discutir projetos de governo. Esses encontros, caracterizados por uma ampla frente de oposição à ditadura, reuniam indivíduos de diversas correntes, predominando a linha democrata cristã, mas abertos a sanitaristas e outras perspectivas. Na Madre Teodora, vivemos um período de trabalho excepcional, marcado por discussões sobre saúde mental não mais vista apenas como doença mental, mas sob uma ótica sanitarista. Montoro, sendo um democrata cristão, promoveu um ambiente de discussão aberta, evidenciando a riqueza e a diversidade de vozes na articulação desses projetos de mudança.

Como foi sua participação e convite para participar da Secretaria Estadual de Saúde (SES)?

Naquele momento crucial da história da saúde em São Paulo, João Yunes liderava o setor. Conheci Yunes anos antes, quando ele ainda era estudante e participava ativamente do movimento universitário para o desfavelamento. Ele já era uma referência na área da saúde naquela época e, mais tarde, como Secretário de Saúde, conseguiu unificar nosso grupo de maneira significativa. Entre nós, havia uma diversidade de pessoas como Nilson Páscoa, Ana Pitta, Tancredi, Gabriel Figueiredo, Amir Sabine e muitos outros, provenientes de variadas correntes ideológicas e partidárias, incluindo aqueles que posteriormente se juntaram ao PT e à frente ampla. Juntos, participamos de debates que já faziam parte da história.

Observamos inicialmente uma clara divisão em dois grupos, que, com o tempo, começaram a se diferenciar mais lentamente. Para entender a questão histórica em debate, é fundamental perceber que vejo a história não como uma sequência de heroísmos, mas como movimentos moldados por condições históricas específicas. Segundo o filósofo espanhol Ortega y Gasset, “sou eu e minha circunstância”. Isso ressalta a importância do contexto em nossas discussões sobre saúde mental, que não devem ser idealizadas, mas vistas como parte de um movimento amplo contra a ditadura.

Fui convidado por João Yunes para coordenar a equipe de saúde mental, uma tarefa que aceitei sem pretensões de liderança, mas que cresceu significativamente em nossas reuniões na Madre Teodora. Em certo ponto, realizamos um seminário com quase 200 participantes, incluindo uma equipe multiprofissional composta por psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, evidenciando a expansão e a importância do nosso trabalho.

A proposta que levamos a Montoro refletia um desejo de transformação significativa no sistema de saúde, incluindo a redução e humanização do número de leitos hospitalares, a criação de unidades psiquiátricas em hospitais gerais e a formação de uma rede ampliada de ambulatórios. Montoro respondeu com uma visão que buscava reverter a tendência de fragmentação do sistema de saúde, com foco na redução da hospitalização e na melhoria da qualidade de atendimento, uma abordagem notavelmente moderna e alinhada com os ideais de Luiz Cerqueira, que antes havia liderado esforços semelhantes na área de saúde mental.

Você pode nos apontar os principais problemas e desafios a serem enfrentados?

Nesse período, estávamos observando tendências futuras, mas o cenário já indicava uma problemática central: a gestão de hospitais e a alta dependência dos leitos psiquiátricos do INAMPS. A prática na época era que um paciente só era liberado quando outro estava prestes a ser internado, mantendo uma taxa de ocupação dos leitos de 98 a 99%. Isso evidenciava um sistema profundamente enraizado em internações psiquiátricas prolongadas, uma realidade que não era sustentável.

Em Bauru, um grande polo de cidades, enfrentávamos o que chamávamos de “ambulância-terapia”. Cidades menores, sem leitos psiquiátricos disponíveis, dependiam do transporte de pacientes por longas distâncias, até 100 quilômetros, para alcançar um hospital capaz de recebê-los. Este sistema insustentável foi um dos fatores que contribuíram para a queda de Cerqueira. Com a mudança de governo, quando Maluf deu lugar ao vice e, após eleições, Montoro assumiu, a transformação no sistema de saúde mental começou a se desenhar rapidamente.

Recebi a tarefa de coordenar a saúde mental com surpresa. Ao assumir, juntamente com o grupo que havia formado, iniciamos um levantamento para compreender a situação vigente. Descobrimos que a Coordenadoria de Saúde Mental consumia cerca de 22% do orçamento da secretaria, com os hospitais psiquiátricos absorvendo impressionantes 91% dessa verba. Em contraste, apenas 4% eram destinados à rede ambulatorial e cerca de 2% para convênios universitários e outros serviços. Nossas análises revelaram que 41% dos leitos psiquiátricos públicos mantinham pacientes por uma média de permanência superior a cinco anos, com a maioria desses casos concentrados em instituições como Juqueri, em Lins e, primordialmente, em Ribeirão Preto.

Quais foram as medidas tomadas para enfrentar os problemas apontados?

Ao assumir responsabilidades no sistema público de saúde, deparei-me com uma prática desconhecida até então: a permuta. Esse processo envolvia transferir pacientes com condições graves e risco de morte para o hospital INAMPS e, em seguida, movê-los para o Juqueri, substituindo-os por pacientes em melhor estado físico. Isso resultava em uma alarmante taxa de mortalidade no Juqueri e uma artificialmente baixa nos hospitais conveniados. Diante dessa realidade, decidimos inspecionar o sistema pessoalmente, começando pelo Juqueri.

A visita ao Juqueri revelou condições desumanas, com muitos pacientes sem vestimentas e vivendo em extrema pobreza, inclusive em celas fortes, onde alguns permaneciam isolados por meses. Após tentativas frustradas de remover as portas dessas celas para melhorar as condições, recorri ao Secretário de Saúde, João Yunes. Sua intervenção incluiu uma ação drástica: arrombar as portas, uma medida divulgada pela Rede Globo, essencial para promover mudanças significativas.

A resistência inicial do prefeito da cidade e o apoio político ao Juqueri, devido a conexões familiares e profissionais com o hospital, complicaram os esforços de reforma. No entanto, continuamos a investigar, visitando outros hospitais, incluindo o Psiquiátrico de Ribeirão Preto de Santa Teresa, onde as condições eram igualmente alarmantes. Lá, uma sala cirúrgica suja e raramente usada simbolizava a negligência e a falta de integração com os recursos de saúde disponíveis na cidade.

Essa experiência sublinhou a necessidade de reestruturar o cuidado psiquiátrico, priorizando a saúde e o bem-estar dos pacientes, além de promover a integração com os serviços de saúde gerais para garantir um tratamento adequado e humano.

Esse processo iniciou-se no Juqueri, mas estendeu-se a outras unidades hospitalares?

Durante minhas visitas aos hospitais psiquiátricos, a situação no hospital de Lins foi particularmente chocante. Era o destino dos pacientes com deficiências graves, incluindo aqueles que tinham sofrido AVCs significativos ou cirurgias mutilantes. A preparação para minha visita revelou uma tentativa de mascarar a realidade do abandono, mas optou-se por mostrar a verdadeira condição em que os pacientes se encontravam, um testemunho do descaso com que eram tratados.

A situação era ligeiramente melhor em Botucatu, destacando-se como o melhor entre os visitados, em parte devido à presença da universidade e ao estado mais satisfatório de suas instalações. Em São Paulo, o hospital de Água Funda havia passado por reformas significativas, transformando um convento em hospital psiquiátrico e apresentava uma estrutura um pouco mais animadora comparada aos demais. Vila Mariana e o Pinel, por outro lado, enfrentavam condições precárias, com o Pinel sendo particularmente notório por ser um local onde mulheres eram internadas até a morte.

Em meio a esses desafios, nas discussões no projeto da Madre Teodora, surgiu o Projeto Zona Norte, uma iniciativa com o objetivo de reestruturar o atendimento psiquiátrico, transformando o hospital Pinel para atender tanto homens quanto mulheres, e introduzir um pronto-socorro, além de estabelecer um sistema de referência e contra referência com os centros de saúde locais. Essa transformação, que culminou na reforma do hospital, foi um marco que precedeu a criação do CAISM. Contrariamente ao que muitos poderiam pensar, o CAISM não emergiu de um único pensamento revolucionário, mas como resultado de esforços coletivos e da concretização do Projeto Zona Norte. Esta iniciativa não só mudou a face do Pinel, mas também se tornou fundamental para a evolução da saúde mental no contexto atual.

Essa proposta teve então um aspecto estratégico para as mudanças de rumo na saúde mental da SES?  

A reforma do Hospital Mandaqui foi concebida com um objetivo inovador: integrar uma unidade psiquiátrica ao Hospital Geral. Esse movimento representava um confronto entre o antigo e o novo, encapsulado na máxima de Cerqueira que afirmava ser impossível criar novidades a partir de ideias obsoletas. A implementação dessa reforma, apoiada pela decisão de Montoro, era vista como essencial.

O desafio subsequente era convencer a equipe médica da importância e viabilidade de acolher pacientes psiquiátricos dentro de um hospital geral. A discussão sobre onde localizar a unidade psiquiátrica dentro do hospital gerou debates, com propostas de isolá-la em uma área separada. A situação alcançou um ponto de inflexão com a intervenção do secretário João Yunes, cuja liderança e visão clara sobre a relevância da saúde mental no contexto da saúde pública foram decisivas. Yunes delegou a decisão sobre a localização da unidade psiquiátrica a mim, com autoridade para escolher o andar, o que rapidamente resolveu o impasse.

Essa fase de transição marcou um momento significativo na percepção e tratamento da saúde mental, evidenciando a importância de uma abordagem integrada. A capacidade de Yunes de enxergar além dos preconceitos e resistências estabelecidas pavimentou o caminho para mudanças substanciais na forma como os cuidados psiquiátricos eram concebidos e administrados dentro do sistema de saúde público. Este episódio, juntamente com uma crise subsequente no Juqueri, que também faz parte da nossa história de transformações na saúde mental, destaca a complexidade e a necessidade de abordagens progressistas no tratamento da saúde mental.

Fale mais um pouco sobre a crise do Juqueri …

A crise no Juqueri, marcada por incidentes trágicos onde mulheres morreram queimadas ao serem deixadas ao sol, poderia ter prejudicado irreversivelmente o movimento de reforma psiquiátrica que estava em curso. Esses eventos alarmantes, amplamente divulgados pela imprensa, refletiam a realidade sombria da instituição naquele período. A proposta de privatização do Juqueri, que emergiu como uma solução potencial, sugerindo a transferência de seus aproximadamente 6.000 pacientes para 14 hospitais psiquiátricos privados, representava um ponto de virada crítico.

A decisão sobre esta proposta caiu nas mãos do governador, que optou por uma abordagem democrática para resolver a questão, conduzindo uma votação entre os secretários. Apesar da minha posição inicial de apenas coordenador de saúde mental, minha participação na votação foi solicitada devido ao meu conhecimento especializado no assunto. Apresentei argumentos convincentes, que levaram o governador a concordar com nossa perspectiva, resultando na liberação de verbas para o Juqueri e na implementação de visitas que iniciariam um processo de melhoria na instituição.

Em um movimento considerado talvez o mais significativo de minha gestão, propus a eliminação de uma grande quantidade de cargos não essenciais no Juqueri, substituindo-os por uma equipe focada na reabilitação dos pacientes, incluindo médicos, auxiliares de terapia ocupacional, terapeutas ocupacionais e enfermeiros. Com essa mudança, o Juqueri transformou-se, na prática, de um hospital psiquiátrico para um asilo, dedicando-se ao cuidado dos pacientes remanescentes até sua eventual extinção. Esta transição culminou no fechamento do Juqueri alguns anos mais tarde, uma vez que a instituição perdeu sua função original como hospital.

A partir dessa reestruturação, a terapia ocupacional ganhou destaque, levando à criação do museu Osório César, dedicado à reativação das atividades artísticas, uma iniciativa que permitiu que pacientes expressassem suas habilidades artísticas, chegando até a receber prêmios. Essa transformação do Juqueri não apenas resolveu uma crise imediata, mas também redefiniu o papel da instituição na saúde mental, enfatizando a importância da reabilitação e do bem-estar dos pacientes através de atividades criativas e terapêuticas.

Como foi essa intervenção no Juqueri e suas consequências?

A intervenção no Juqueri e a subsequente reforma psiquiátrica foram eventos marcados por desafios e decisões críticas, destacando-se pela maneira como as lideranças políticas abordaram as necessidades urgentes da saúde mental. A proposta de privatizar o Juqueri, diante de uma crise desencadeada pela morte de pacientes sob circunstâncias negligentes, colocou em risco o futuro da reforma psiquiátrica. A decisão final do governador Montoro, influenciada por discussões profundas e pela votação democrática entre os secretários, optou por investir na reconstrução e melhoria do Juqueri, refletindo um compromisso com o cuidado e a reabilitação dos pacientes.

Montoro, reconhecido por sua visão de cuidador, insistiu na importância de criar um ambiente terapêutico que incluísse atividades como a horticultura, ilustrando sua percepção de que o cuidado vai além do tratamento médico, englobando o bem-estar geral dos indivíduos em suas comunidades. A inauguração do museu Osório César pelo governador em 1985, mesmo sob um incidente peculiar que poderia ter desencadeado uma crise de segurança, simbolizava o avanço nas políticas de saúde mental, promovendo a inclusão e reconhecendo o valor terapêutico da arte.

A evolução das políticas públicas de saúde mental em São Paulo, sob a liderança de Montoro e com a implementação de iniciativas como os NAPS em Santos e os CAPS, reflete um período de inovação e democratização do acesso aos cuidados de saúde mental. A expansão da rede ambulatorial e a reformulação de hospitais psiquiátricos, como Água Funda e Vila Mariana, para incluir emergências psiquiátricas, marcaram significativos avanços no tratamento e na percepção da saúde mental.

A criação do CAPS, embora muitas vezes narrada como resultado de uma luta heroica, na verdade surgiu de um processo colaborativo e de democratização de ideias, onde a necessidade de modernizar o cuidado psiquiátrico e torná-lo acessível se tornou uma prioridade clara. A decisão estratégica de localizar esses serviços em áreas centrais, garantindo a qualidade e a modernidade do atendimento, foi essencial para a eficácia e o impacto positivo dessas políticas.

Essas transformações no cenário da saúde mental não apenas fecharam um capítulo na história do Juqueri, mas também abriram novos caminhos para o cuidado psiquiátrico, evidenciando a importância de políticas públicas inclusivas e inovadoras que respondam às necessidades reais da população.

O que foram essas políticas inclusivas e inovadoras?

Quando Luiz Cerqueira foi nomeado, já havia enviado uma carta de apoio à nossa gestão, em um momento em que enfrentávamos fortes críticas relacionadas às práticas hospitalares. Sua chegada a São Paulo, a convite meu, marcou um momento de reconhecimento e valorização de sua contribuição anterior para a saúde mental. Essa ocasião especial, onde Cerqueira foi convidado a assumir simbolicamente a cadeira de coordenador, serviu para resgatar e reparar uma injustiça que ele havia sofrido ao ser demitido anos antes. Esse gesto de respeito e apreciação reafirmou o valor de seu trabalho e dedicação à saúde mental.

Após sua morte, as homenagens a Cerqueira, incluindo a viúva descerrou uma placa em sua memória, refletiram o profundo respeito e carinho que todos tinham por ele. Essa celebração da sua vida e contribuições serviu como um lembrete poderoso de sua influência positiva na área. Sob sua inspiração, os projetos CAPS e NAPS avançaram, transformando significativamente a saúde mental, oferecendo atenção mais acessível e reduzindo as taxas de internação em todo o Brasil.

A expansão do CAPS pelo país, especialmente em cidades de médio porte, ilustra o sucesso dessa transformação, evidenciando uma mudança significativa na forma como a saúde mental é abordada. Essa ampliação permitiu uma maior descentralização do atendimento, proporcionando cuidados mais próximos das comunidades. Essa abordagem não apenas facilitou o acesso aos serviços de saúde mental, mas também contribuiu para a redução das internações psiquiátricas, uma tendência que começou a se manifestar já na década de 80.

Contudo, existem aspectos que ainda geram preocupações, como a Terceira Conferência Nacional de Saúde Mental, que, embora tenha trazido diretrizes importantes, também refletiu a complexidade do debate sobre a extinção dos hospitais psiquiátricos. A comparação com doenças como a tuberculose e a lepra, que tiveram seus hospitais fechados devido a avanços farmacológicos, destaca a necessidade de cautela na aplicação dessas diretrizes ao contexto da saúde mental.

A questão do eletrochoque, por exemplo, permanece controversa. Apesar de ser uma prática menos comum devido ao desenvolvimento de medicações mais eficazes, sua utilização ainda é defendida em certos contextos, ilustrando a complexidade das decisões terapêuticas na psiquiatria. A visão crítica sobre o eletrochoque reflete, em parte, a distância entre percepções idealizadas e a realidade das práticas médicas, particularmente em diferentes contextos sociais e econômicos.

Essa dicotomia entre o ideal e o real também se manifesta na apropriação de tratamentos de qualidade por diferentes classes sociais, evidenciando desigualdades no acesso à saúde mental de alta qualidade. A prática do eletrochoque em hospitais privados de países desenvolvidos, comparada com métodos mais coercitivos em instituições locais, destaca as disparidades no cuidado e no respeito aos pacientes.

A evolução das políticas públicas em saúde mental, marcada pela criação e implementação de programas como o CAPS, reflete um esforço contínuo de modernização e democratização do acesso aos cuidados. Este processo foi não apenas uma resposta às demandas por tratamento mais humano e acessível, mas também um reconhecimento da complexidade da saúde mental e da necessidade de abordagens inovadoras e inclusivas.

Por fim, a transformação do Juqueri e a expansão dos serviços de atenção psicossocial simbolizam a longa jornada da saúde mental no Brasil, da marginalização à integração, da exclusão ao cuidado. Esses avanços, embora desafiadores, representam passos importantes em direção a um sistema de saúde mental mais justo, humano e acessível, refletindo o compromisso com a melhoria contínua do bem-estar de todos os cidadãos.

Esses movimentos refletiam mais que uma realidade nacional, como você analisa esse contexto internacional?

Minha análise sobre o contexto social e a saúde mental parte da observação dos movimentos sociais e políticos que emergiram após a Segunda Guerra Mundial, incluindo a luta pelos direitos humanos e o avanço do feminismo, impulsionados por figuras como Sartre e Simone de Beauvoir. Este panorama de transformação social serve de pano de fundo para compreender as mudanças na saúde mental, distinguindo-se da abordagem do movimento antimanicomial, que frequentemente celebra figuras como Basaglia e Tomas Szasz como heróis.

Prof. Marcos você poderia nos trazer suas reflexões finais sobre esse processo rico e inovador no ESP e para a evolução do SUS na área de saúde mental?

Ao refletir sobre a história do Juqueri e sua fundação, fica evidente que sua criação não visava apenas o segmento mais abastado da sociedade, uma percepção que desafia a ideia simplista de que todas as instituições psiquiátricas foram concebidas sem consideração pela qualidade arquitetônica ou pelo bem-estar dos pacientes. A distinção entre São Paulo do fim do século XIX e as décadas subsequentes revela o rápido crescimento populacional e a necessidade emergente de expandir os serviços de saúde mental para atender a uma população crescente e diversificada.

Esta necessidade levou à transformação e criação de novos espaços para o cuidado em saúde mental, refletindo as disparidades sociais existentes no Brasil, em contraste com a Europa, onde a segregação em saúde não é tão acentuada. A história da psiquiatria no Brasil é marcada por longos períodos de governos autoritários, que influenciaram negativamente a diversidade de pensamento e a implementação de políticas públicas inclusivas e respeitosas em saúde mental.

A crítica à idealização de figuras como heróis na luta pela reforma psiquiátrica aponta para a importância de reconhecer o valor de todas as contribuições sem superestimar o papel de indivíduos específicos. Este reconhecimento deve se estender à análise das diferentes abordagens à saúde mental ao redor do mundo, incluindo a psiquiatria de setor na França e a psiquiatria comunitária nos Estados Unidos, iniciativas que precederam e influenciaram o movimento de reforma psiquiátrica no Brasil.

No contexto universitário, a diversidade de pensamento reflete a complexidade da sociedade como um todo, com pontos de vista que variam amplamente entre esquerda, centro e direita. Esta diversidade, embora possa às vezes dificultar a convivência, é essencial para o avanço do conhecimento e deve ser orientada por critérios científicos em vez de opiniões pessoais ou políticas.

A introdução da psiquiatria comunitária, inspirada pelas críticas aos hospitais psiquiátricos e promovida durante o governo Kennedy nos Estados Unidos, exemplifica como crises e desafios podem ser transformados em oportunidades para melhorias significativas na saúde mental. Este modelo ressalta a capacidade de evoluir e adaptar-se às necessidades emergentes da população, aproveitando momentos de crise para reconstruir e inovar.

Portanto, diante da crise atual, existe uma oportunidade única de repensar e remodelar o sistema de saúde mental, buscando soluções que sejam mais inclusivas, eficazes e humanizadas. As universidades desempenham um papel crucial neste processo, refletindo e influenciando as estruturas sociais mais amplas, e têm o potencial de liderar o caminho na construção de um sistema de saúde mental que verdadeiramente atenda às necessidades de todos os segmentos da população.

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