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Local da entrevista: Laboratório de História da Ciência Instituto Butantan – Museu de Saúde Pública Emílio Ribas (MUSPER)
Quando pensamos na saúde pública brasileira, muitas são as nuances, desafios e histórias que se entrelaçam no desenvolvimento de políticas, sistemas e metodologias que visam ao bem-estar da população. Ao explorar essa teia complexa, é essencial ouvir as vozes daqueles que estiveram, e ainda estão, na linha de frente das decisões e transformações. Assim, esta entrevista, que reúne Otavio Azevedo Mercadante e Nelson Ibañez, se configura como uma oportunidade única de aprofundar-se nas intricadas realidades da saúde pública no Brasil.
Mercadante, com sua trajetória repleta de dedicação e estudos voltados ao setor, traz ao debate sua visão estratégica e analítica, delineando os desafios que o país enfrenta. Seu entendimento do sistema, suas vitórias e seus obstáculos, proporcionam uma visão abrangente e detalhada de onde já estivemos e para onde podemos seguir.
Nesta jornada de diálogo, somos convidados a mergulhar nas histórias, nos desafios, nas conquistas e, principalmente, nas pessoas que moldam a saúde pública brasileira. Em um cenário em constante evolução, entender nosso passado e presente é crucial para traçar caminhos futuros mais informados e eficazes. Prepare-se para uma viagem de conhecimento, paixão e dedicação ao bem-estar da população brasileira.
Pergunta: Professor Mercadante, poderia contar um pouco sobre a sua participação e trajetória na área de gestão e planejamento de políticas públicas na área da Saúde para o Estado de São Paulo?
Otavio Azevedo Mercadante – Sou médico sanitarista, uma categoria que hoje não se fala tanto. Quando me formei em Medicina em 1964, ainda não existia residência em Medicina Preventiva. A orientação do Professor Mascarenhas era fazer Clínica primeiro, para depois fazer Saúde Pública. Então, fui para a Faculdade de Saúde Pública. Trabalhava em Clínica e Medicina de Grupo, mas também fazia o curso de pós-graduação, que era de um ano.
Nessa época, conheci o Seixas, com quem comecei a trabalhar em uma visão comum sobre a saúde pública. Me formei em 1968 e, nessa época, já se desenhava a proposta da reforma administrativa da Secretaria da Saúde. Ainda no meu curso de pós-graduação, tive a oportunidade de fazer um trabalho com o Seixas, Reinaldo Ramos e Reinaldo Ramos sobre a regionalização da nova proposta da secretaria.
Esse trabalho era teórico e avaliava os equipamentos de saúde da secretaria, os principais problemas e as linhas gerais da reforma administrativa. Essas linhas gerais foram construídas no texto “Reforma Administrativa da Secretaria da Saúde”, que chamamos de “livrão verde”.
A reforma administrativa foi elaborada, discutida e apoiada pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS). Foi uma produção acadêmica, com fundamentação teórica sobre as diretrizes de uma política de reforma para São Paulo.
As principais influências vinham de onde nessa nova proposta?
OAM – A reforma administrativa da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo foi influenciada por discussões que já ocorriam na Faculdade de Saúde Pública. Havia duas abordagens principais: A primeira era a ideia de um Centro de Saúde como unidade integrada, de base integrada, que seria a unidade mais importante do sistema de saúde pública; e a segunda era a discussão sobre a articulação entre hospital e Centro de Saúde. Na época, a Secretaria da Saúde estava organizada de forma fragmentada, com departamentos especializados em doenças específicas. Essa fragmentação dificultava a coordenação das ações e a integração dos serviços.
Com base nessas discussões, foram definidas as diretrizes da reforma administrativa:
- Centralização técnico-normativa: criação de um grande Departamento Técnico-Normativo (DTN) para coordenar as ações da secretaria.
- Integração de serviços a nível local: fortalecimento dos Centros de Saúde e articulação com os hospitais.
- Regionalização: criação de regiões administrativas para organizar a rede de serviços.
A centralização técnico-normativa era necessária para melhorar a coordenação das ações da Secretaria da Saúde. A criação do DTN centralizou a definição de normas e diretrizes para todos os serviços.
A integração de serviços a nível local era necessária para garantir uma atenção mais integral à população. O fortalecimento dos Centros de Saúde e a articulação com os hospitais permitiram que a população tivesse acesso a uma ampla gama de serviços de saúde, desde a atenção primária até a atenção especializada.
A regionalização era necessária para organizar a rede de serviços de forma mais eficiente. A criação de regiões administrativas permitiu que os serviços fossem organizados de acordo com as necessidades da população.
As diretrizes da reforma administrativa foram um avanço importante para a saúde pública no Estado de São Paulo. Elas promoveram a integração dos serviços, a regionalização da rede e a centralização técnico-normativa. Essas mudanças permitiram uma atenção mais integral e eficiente à população.
Pergunta: Quem eram os governadores na gestão?
OAM – O governador Paulo Egydio Martins desempenhou um papel crucial no período que denomino de “ditadura progressista”. Ele pode ser comparado a figuras como Geisel, devido à sua influência no nacional-desenvolvimentismo, que foi um período de fortalecimento das empresas estatais e do poder público, aliado à modernização do Estado. Se olharmos para a história, é possível perceber que durante a era do Estado Novo e as reformas de Geisel, houve mudanças significativas em termos de reestruturação estatal.
Uma reforma administrativa particularmente importante dessa época foi o Decreto 1.200. Este decreto foi fundamental porque proporcionou uma estrutura mais dinâmica e eficiente para a administração indireta, esclarecendo definições sobre o que constitui uma empresa pública, uma autarquia, e uma fundação de direito público. Este decreto foi implementado para reorganizar a estrutura estatal e evitar problemas legais futuros.
Na área da saúde, esta reforma foi acompanhada por uma lei que, infelizmente, não me recordo do nome exato. A relevância dessa lei residia no fato de que ela regulamentava todas as ações relacionadas à vigilância sanitária, que na época era chamada de “Polícia Sanitária”. Esta legislação forneceu o suporte legal necessário para a implementação de medidas coercitivas na área da saúde.
Em relação às diretrizes administrativas da época, houve um esforço para centralizar normas técnicas. A ideia era que diferentes departamentos e áreas especializadas dentro da Secretaria da Saúde tivessem um conjunto unificado de normas, ao invés de normas distintas e, por vezes, conflitantes. Por exemplo, o protocolo de diagnóstico para doenças como a lepra era diferente do protocolo para vacinação infantil. A reforma buscou harmonizar essas normas para proporcionar uma abordagem mais integrada e coesa.
Uma consequência dessa tentativa de harmonização foi a criação do Departamento Técnico-Normativo, composto por especialistas responsáveis por supervisionar os programas de saúde. A intenção era que este departamento centralizasse as normas técnicas, enquanto a execução dessas normas seria descentralizada, adaptada às necessidades regionais específicas.
O segundo pilar dessa reforma administrativa foi a “regionalização”, que envolveu a criação de departamentos regionais de saúde. Estes departamentos possuíam maior autonomia e um corpo técnico próprio, supervisando todas as unidades de saúde em sua região, com exceção dos hospitais.
Pergunta: O hospital estava associado à quarta coordenadoria?
OAM – Não, os hospitais estavam vinculados à Coordenadoria de Assistência Hospitalar. Leser, em minha opinião, tinha uma visão estratégica excepcional. Ele priorizou a regionalização, pois compreendeu que era a área onde as transformações reais ocorreriam e onde se estabeleceria um conceito central. A regionalização era essencial, e foi onde a integração de todos os serviços teve início. Essa integração foi alcançada de diversas maneiras, seja pela extinção do Dispensário de Tuberculose ou pela transferência de profissionais deste dispensário para um centro de saúde. Contudo, o aspecto mais desafiador foi integrar esses especialistas em uma unidade unificada, sob a liderança de um médico sanitarista.
Pergunta: Ele conseguiu dissolver esses departamentos?
OAM – Sim, ele obteve sucesso. A reforma administrativa aboliu todos os departamentos. Eles foram reestruturados com foco inicialmente no Departamento Técnico-Normativo, seguido pela regionalização e, posteriormente, pela integração de todos os serviços em uma Unidade Básica de Saúde a nível local. A visão por trás da Unidade Básica de Saúde era de uma entidade não apenas assistencial, mas também responsável pelo controle de doenças.
Pergunta: Então, essa unidade também tinha um papel de prevenção?
OAM – Exatamente. A Unidade Básica de Saúde não só desempenha um papel na prevenção, mas também no controle de doenças. É fundamental entender que ela é a entidade local com autoridade sanitária, capaz de implementar a legislação. Este conceito distingue-se amplamente das abordagens fragmentadas anteriores.
Pergunta: Qual foi a reação geral a essa transformação? Houve resistência?
OAM – A resistência foi significativa. A transformação só foi possível devido à ausência de uma atuação efetiva da Assembleia Legislativa na época. A assembleia estava frequentemente inativa ou, quando ativa, estava submissa a um controle rígido do Executivo.
Pergunta: Em um ambiente diferente, a implementação teria sido mais desafiadora?
OAM – É complicado dizer. Indubitavelmente, o caminho democrático tende a ser mais demorado.
Pergunta: E mais intrincado?
OAM – Sim, porém, teria sido mais proveitoso se fosse democrático. Implementações forçadas podem parecer efetivas, mas muitas vezes há falhas e desafios não aparentes. Por exemplo, a criação do Departamento Técnico-Normativo, a ideia dos especialistas e a regionalização. Uma questão crucial que merece destaque é a do Distrito Sanitário, que acredito ter sido obscurecida na memória organizacional.
Pergunta: O Distrito era uma espécie de nível intermediário?
OAM – Exato. O Distrito Sanitário servia como um nível entre a unidade básica de saúde e a coordenação regional. Era liderado por um médico sanitarista e desempenhava um papel vital na supervisão e coordenação das unidades de saúde. Não possuía especialistas, mas tinha uma equipe assistencial que colaborava estreitamente com o médico sanitarista. Havia cerca de 80 distritos em São Paulo, enquanto havia apenas 12 coordenações regionais.
Pergunta: Ele, portanto, tinha uma visão mais ampla e conectada?
OAM – Sim, ele tinha um papel de articulação. O foco era coordenar, sem a presença de especialistas específicos, mas sim com uma equipe de assistência.
Pergunta: E por que você acredita que a ideia de carreira profissional no setor de saúde, similar às carreiras do Ministério Público ou da polícia, seria ilusória?
OAM – Porque, na prática, isso não se concretizou.
Pergunta: Quais foram os fatores para essa falha?
OAM – É difícil dizer com precisão, mas acredito que um desafio significativo foi tentar requalificar profissionais existentes para essas novas funções em um curto período de tempo. Isso poderia ter levado a uma possível desqualificação desses novos profissionais.
Pergunta: Então, a tentativa de rápida adaptação dos profissionais existentes poderia ter sido um ponto de falha?
OAM – Sim, concordo plenamente. Essa é uma avaliação precisa da situação.
Pergunta: O distrito continuou operacional?
OAM – Sim, mas de forma muito precária.
Pergunta: Considerando que a função de supervisão não é burocrática e não confere autoridade sobre as pessoas, como foi gerenciar a articulação e coordenação com os antigos quadros que eram burocráticos e autoritários?
OAM – Foi complexo. A supervisão exigia uma análise profunda da realidade e a busca por soluções. No entanto, muitos dos quadros antigos estavam acostumados a uma abordagem burocrática e autoritária.
Pergunta: Portanto, uma função mais estratégica era necessária?
OAM – Sim, era uma função estratégica. No entanto, uma consideração importante é que, durante essa fase, houve uma iniciativa única de formar sanitaristas em massa através da Faculdade de Saúde Pública. Esta medida buscou suprir rapidamente as demandas, mas aconteceu em um contexto social em mudança, onde os movimentos sociais ganhavam força.
Pergunta: Então, o Distrito Sanitário desempenhou um papel de articulação nesse cenário?
OAM – Exatamente. O Distrito Sanitário buscava conectar e coordenar as unidades de saúde. Mas os desafios surgiram quando jovens sanitaristas, formados rapidamente, começaram a se aliar a movimentos sociais. Eles buscavam mudanças significativas e se viam como agentes de transformação dentro do sistema.
Pergunta: Como a Pastoral da Saúde se encaixava nisso?
OAM – A Pastoral da Saúde era uma das muitas organizações que trabalhavam em colaboração com os sanitaristas. Eles buscavam influenciar as decisões e as políticas de saúde.
Pergunta: Então, havia uma tensão entre os movimentos sociais e as autoridades?
OAM – Sim. E essa tensão era evidente na forma como os jovens sanitaristas eram percebidos. Muitos eram vistos como “subversivos” ou influenciados por ideais de esquerda. Com o tempo, essa dinâmica política influenciou a direção e as decisões dentro do setor de saúde.
Pergunta: Então, o foco se tornou político?
OAM – Em grande parte, sim. Os sanitaristas estavam divididos em suas visões e estratégias, mas muitos viam a necessidade de se engajar na política para influenciar as mudanças.
Pergunta: E a liderança da época, como reagiu a essa mudança de foco?
OAM – Dependeu muito da pessoa em questão. Enquanto algumas lideranças eram mais abertas e acolhedoras, outras eram mais resistentes e críticas.
Pergunta: Então, antes de nos aprofundarmos na era do Governo Montoro, é importante falar sobre a transformação do Instituto Bacteriológico no Instituto Adolfo Lutz. Como essa transição se encaixa no contexto da reforma?
OAM – Esse aspecto é fundamental. No meio de todas as mudanças que eu descrevi sobre Saúde Pública e reestruturação, omiti a relevância dos Institutos. O Instituto Bacteriológico, que posteriormente foi renomeado como Instituto Adolfo Lutz, desempenhou um papel crucial em nossa saúde pública.
Pergunta: E você teve um papel de liderança nessa transição, certo?
OAM – Sim, eu estive envolvido diretamente. Mas é interessante observar como, no meio de todas essas mudanças, muitas vezes nos perdemos em certos detalhes e esquecemos de áreas essenciais como os Institutos.
Pergunta: Então, como esses Institutos foram estruturados na reforma?
OAM – Além do Departamento Técnico-Normativo, as coordenadorias emergiram como unidades orçamentárias vitais. Havia a Coordenadoria de Saúde da Comunidade, que supervisionava as Regionais de Saúde, os Distritos Sanitários e os Centros de Saúde. Entretanto, surgiram contradições quando coordenadorias como Saúde Mental e Assistência Hospitalar foram estabelecidas, que, em teoria, deveriam se enquadrar sob a região de Saúde. Isso tudo foi parte da divisão de poder.
Pergunta: E o Instituto Adolfo Lutz? Qual era sua posição nesse arranjo?
OAM – O Instituto Adolfo Lutz, anteriormente chamado de Instituto Bacteriológico, foi centralizado sob a Coordenadoria de Serviços Técnicos Especializados, juntamente com o Butantan e o Instituto Pasteur. Também se criou o Instituto de Saúde, destinado a ser um centro de inovação. No entanto, houve desafios, já que muitos dos antigos especialistas, carregando visões tradicionais, foram incorporados ao Instituto de Saúde.
Pergunta: Então, a ideia era que o Instituto de Saúde servisse como um modelo inovador?
OAM – Exatamente. Mas em prática, ele acabou reproduzindo muitas das antigas estruturas e abordagens, o que, claro, apresentou desafios para a realização da visão inovadora inicialmente prevista.
Pergunta: E como ocorreu essa migração dos especialistas para o Instituto de Saúde?
OAM – Não foi algo imediato. Muitas dessas mudanças foram negociadas, considerando também as pressões e influências individuais. Apesar das intenções inovadoras, o Instituto de Saúde manteve traços significativos das estruturas antigas, como evidenciado pela presença dominante de áreas como a hanseníase.
Pergunta: O arquivo histórico sobre a tuberculose, mencionado anteriormente, ainda está presente?
OAM – Sim, hoje esse extenso arquivo encontra-se no Museu, preservando um registro crucial de nossa história em saúde pública.
Pergunta: Então, podemos falar um pouco sobre o SUS e sua relação com o que você discutiu anteriormente?
OAM – Claro. Mas antes, gostaria de salientar a relevância da gestão do Lesser. Através dela, percebemos as raízes iniciais do que viria a ser o SUS. Notadamente, a ênfase na formação de colegiados é notável. Antes, a administração era mais centrada em uma figura de autoridade, como um diretor, e não havia espaço para decisões coletivas.
Pergunta: Essa abordagem era predominantemente hierárquica, então?
OAM – Exatamente. Contudo, com as reformas, surgiu o Conselho Técnico Administrativo, um colegiado fundamental que reúne todos os coordenadores, secretários e outras figuras centrais da secretaria. Foi uma mudança significativa, tornando a tomada de decisão mais colaborativa.
Pergunta: Você mencionou algo sobre a Evelin?
OAM – Ela se tornou uma professora notável na área de Saúde Pública. E vale dizer que as atas do CTA, onde ela atuava como secretária, são verdadeiros tesouros. Elas representam um registro valioso da evolução da saúde pública em nossa região.
Pergunta: E sobre os conselhos de saúde formados nesse período?
OAM – Sim, além do CTA, já tínhamos um embrião do que seria um Conselho Estadual de Saúde. Era uma tentativa inicial de integrar diferentes áreas da saúde e criar uma coordenação unificada, algo que o Leser já antevia.
Pergunta: Parece que o Leser tinha uma visão muito clara do futuro da saúde.
OAM – Sem dúvida! Apesar de ser protetor da saúde pública, ele também tinha uma visão progressista. No entanto, tinha suas reservas quanto à mercantilização da saúde, algo que era comum à sua geração. A concepção era de que a saúde não deveria ser um meio de lucro.
Pergunta: Como isso se refletiu na transformação dos institutos e em sua coordenadoria?
OAM – Bem, um dos pilares foi a Lei 125, que estabeleceu a Carreira de Pesquisador Científico. Isso deu aos institutos uma base sólida e permitiu que a pesquisa prosperasse. E é notável como essa carreira foi criada: pela própria base de pesquisadores, sem interferências políticas excessivas. Alba Lavras, uma pesquisadora aqui do Instituto, foi fundamental nesse processo.
Pergunta: Parece que os pesquisadores realmente se uniram para defender sua profissão e a integridade da pesquisa.
OAM – Exatamente. A força e a determinação dos pesquisadores garantiram que a carreira fosse estabelecida de forma justa e meritocrática, protegendo a integridade e a autonomia da pesquisa em nossa região.
Pergunta: Podemos prosseguir abordando o período que antecede imediatamente a implantação do SUS?
OAM – Claro. Durante o pedido do Governo Maluf para Adib Jatene assumir a Secretaria, eu permaneci na secretaria, especificamente na CST. Foi um período marcante porque, apesar de uma mudança de governo, Adib sinalizou sua intenção de dar continuidade ao trabalho de Leser. Uma das suas primeiras ações foi manter os coordenadores de cada setor, como forma de evitar politização excessiva da secretaria.
Pergunta: Você poderia nos informar quem eram os coordenadores nesse período?
OAM – Eu estava na CST. Se não me engano, Vitório Barbosa estava na Comunidade. Já o CAH estava sob a liderança de Morbach. No setor de Saúde Mental, tínhamos um tradicional psiquiatra cujo nome não consigo me recordar agora.
Pergunta: No que diz respeito à capacitação, houve mudanças significativas?
OAM – Na verdade, essa é uma herança direta do período do Leser. Durante sua gestão, houve uma forte formação de sanitaristas, e uma grande parcela deles entrou na carreira. Essa nova geração estava altamente motivada para os desafios do setor público de saúde.
Pergunta: Houve alguma legislação ou regulamentação notável durante essa transição?
OAM – Sim, em 1975, a lei de criação do Sistema Nacional de Saúde foi promulgada. Embora o sistema fosse fragmentado, havia um esforço para conferir-lhe uma organicidade. Além disso, durante o mandato de Lesser, foi estabelecido o Fundo Estadual de Saúde. Este fundo antecipava a ideia de trazer recursos da previdência social para a Secretaria da Saúde, uma ideia progressista para a época.
Pergunta: Então, você diria que, apesar das mudanças políticas, houve uma real continuidade entre as gestões de Leser e Adib?
OAM – Sem dúvida. A transição entre eles foi bem executada, mantendo a estabilidade e avançando nas iniciativas já começadas. Adib, em particular, por sua natureza carismática, manteve uma relação próxima com os movimentos populares de saúde. Essa continuidade, apesar das mudanças de governo, foi vital para os avanços que vimos na saúde pública durante esse período.
Pergunta: Queremos abordar as Ações Integrais de Saúde, as AIS. Pode nos falar sobre elas?
OAM – As AIS eram uma política federal com forte respaldo financeiro do Inamps. O apoio do Inamps foi essencial para essa política. A descentralização dos recursos e a integração com estados e municípios se tornaram centrais com as diretrizes do CONASP, no início do governo Sarney. Foi uma época de transição em que houve uma crescente integração dos recursos da previdência social com a Secretaria da Saúde.
Pergunta: Pode detalhar como os fundos eram gerenciados e a estrutura dos convênios?
OAM – A maior parte dos recursos era direcionada por meio de convênios. No entanto, essa abordagem tinha seus desafios. Convênios, por sua natureza, podem ser temporários e sensíveis às mudanças políticas. Além disso, quem fornece o recurso normalmente quer influenciar o uso desse recurso. Então, esses convênios tinham prazos e metas bem definidos.
Pergunta: No período da gestão do Yunes, qual foi o seu papel e como a estrutura da Secretaria foi organizada?
OAM – Durante a gestão do Yunes, fui inicialmente chefe de gabinete e, posteriormente, nomeado secretário adjunto. Nessa estrutura de descentralização, o secretário adjunto tinha um papel mais técnico, enquanto o secretário tinha um papel mais político e de articulação externa. Todo o processo e as decisões importantes eram delegadas do Yunes para mim.
Pergunta: Como a saúde mental e hospitalar evoluíram durante esse período?
OAM – Na área da saúde mental, houve uma revolução significativa. Antes, a abordagem era mais centralizada nos grandes hospitais psiquiátricos. Mas, com a Reforma Psiquiátrica, esse paradigma começou a mudar. Em relação à saúde hospitalar, houve esforços para integrar mais os hospitais com outros centros de saúde.
Pergunta: E o planejamento interno? Houve mudanças na equipe e na abordagem?
OAM – Sim, houve uma mudança significativa na abordagem de planejamento. O Departamento Técnico Normativo, que antes tinha uma abordagem mais rígida, começou a se abrir para novas ideias e conceitos. Também trouxemos novas lideranças para os diferentes setores, o que trouxe uma lufada de ar fresco e novas perspectivas para a Secretaria.
Pergunta: Quem eram essas novas lideranças?
OAM – No Hospitalar, você assumiu a posição após Humberto. Marcos Ferraz também foi uma adição notável. Na Saúde da Comunidade, tivemos Alexandre Vranjac, seguido por Ana Figueiredo. No Serviço Técnico, Cavalheiro foi o principal nome. Essas mudanças trouxeram uma nova energia e direção à Secretaria.
Pergunta: Nota-se que, sob o governo de Pinotti, houve ações assertivas e até ousadas em relação à saúde, particularmente com a incorporação das unidades do Inamps. Poderia discutir mais sobre a estratégia por trás dessas ações e sua implementação?
OAM – Sem dúvida. No governo de Pinotti, a abordagem foi mais incisiva. Em vez de um processo de negociação meticuloso e progressivo, houve uma ação direta para absorver as funções do Inamps. Lembro-me vividamente de quando Pinotti “invadiu” o escritório da Nove de Julho, anunciando que as unidades do Inamps passariam a fazer parte da Secretaria da Saúde. Isso trouxe uma dinâmica muito mais interventiva para a gestão da saúde no estado. Foi, sem dúvida, um período marcado por decisões audaciosas.
Pergunta: Você mencionou os convênios SUDS como a principal estrutura legal que sustentou essas ações. Poderia aprofundar sobre isso?
OAM – Exato. O SUDS, em essência, era uma extensão das AISs. O objetivo era permitir que as Secretarias Estaduais de Saúde assumissem as atividades assistenciais do Inamps, incluindo a gestão dos recursos. No entanto, é crucial destacar que, embora o SUDS proporcionasse essa flexibilidade, ele era, por natureza, um convênio. E como tal, possuía uma fragilidade intrínseca. O processo de transferência de recursos e ativos não foi feito com a devida diligência, muitas vezes. A aquisição de hospitais, por exemplo, foi feita sem um levantamento patrimonial adequado. Essa abordagem “rápida” teve seus desafios, especialmente quando se tratava de assegurar a legalidade e conformidade de todas as ações.
Pergunta: Considerando esses desafios legais e de conformidade, como a Secretaria lidou com questões jurídicas durante esse período?
OAM – Foi um período peculiar em termos de consultoria jurídica. A Secretaria da Saúde criou sua própria assessoria jurídica, a Asjur. Essa entidade, distinta da consultoria jurídica tradicional do governo, foi responsável por revisar e aprovar as ações relacionadas ao SUDS e outras iniciativas. Foi uma estratégia para agilizar decisões, mas, sem dúvida, trouxe uma nova dimensão de complexidade ao cenário.
Pergunta: O período sob a liderança de Pinotti parece ter sido marcado por uma mudança significativa em termos de atendimento ambulatorial. Como essa mudança afetou o sistema?
OAM – Sim, houve uma grande mudança no atendimento ambulatorial. O sistema anterior, baseado nos BAUs (Boletim de Atendimento de Urgência), foi progressivamente substituído por um modelo onde a rede pública assumiria mais responsabilidades. Isso levou a uma redução no uso de serviços privados para atendimentos de urgência. Vale ressaltar que o modelo BAU tinha suas falhas, como a falta de controle e a possibilidade de abusos. A iniciativa de Pinotti, por outro lado, tentou trazer mais integridade e eficiência ao sistema, canalizando recursos de forma mais estratégica.
Pergunta: Durante o período de transição entre o Governo Montoro e o Governo Quércia, onde você estava alocado? Você permaneceu no nível central?
OAM – Após o término do governo Montoro e o início do governo Quércia, houve uma mudança considerável. No início do governo Quércia, passei um tempo na Itália. Quando retornei, tudo já havia mudado sob a administração do Pinotti. Os ERSAs tinham sido renomeados como SUDS e havia novas estruturas e diretrizes em vigor. Assumi a coordenação da Regional de Saúde, abrangendo o Vale do Paraíba e a região de Campinas. Estava envolvido em atividades de planejamento e coordenação, particularmente em relação ao Fundes.
Pergunta: Como foi sua experiência de trabalho sob a gestão de Pinotti?
OAM – Trabalhar sob a liderança do Pinotti foi, sem dúvida, um desafio. Ele era muito dinâmico e sempre estava a um passo à frente, tomando decisões rapidamente. Em uma ocasião, enquanto estava de férias, ele me chamou para cobrir uma falta de médicos no Hospital de Sapopemba. Tive que trabalhar um plantão de 24 horas. Havia outros desafios também, especialmente com a municipalização e a interação com outras partes do governo. Mas, em geral, era um período de ação rápida e muitas mudanças.
Pergunta: E durante a gestão de Fleury, como foi sua participação?
OAM – Sinceramente, eu meio que “apaguei” essa parte da minha memória. Não ocupei nenhum cargo significativo durante a gestão de Fleury. Havia vários secretários transitando naquela época, como Náder Waffari e Vicente Amato, mas minha participação foi limitada.
Pergunta: Então, após o Fleury, o governo foi assumido pelo Covas. Como foi essa transição para você?
OAM – Durante a transição para o governo Covas, eu ainda estava tentando encontrar meu espaço. Não tinha uma definição partidária clara na época.
Pergunta: Em relação à gestão Pinotti, qual é sua avaliação?
OAM – A gestão Pinotti foi repleta de contradições. Apesar dos desafios, teve avanços significativos, como a implementação dos ERSAs e a defesa do SUS. A maneira como Pinotti operava, cercando-se de admiradores, mas mantendo o poder concentrado, era particularmente única.
Pergunta: Como você vê a transição para a gestão de Fleury após Pinotti?
OAM – A transição de Pinotti para Fleury foi marcada por muita ruptura política. Fleury foi um período medíocre e tenebroso. Durante essa época, houve uma intensa disputa política entre o PMDB e o PSDB, sendo o último surgindo como uma dissidência do PMDB.
Pergunta: Como foi sua experiência durante a gestão do Guedes?
OAM – Fiquei pouco tempo na secretaria sob a liderança do Guedes. Mas durante a transição entre Fleury e Covas, os ERSAs foram descontinuados, refletindo uma ruptura mais radical na política.
Pergunta: Como você percebe o valor da sua atividade para o registro da história?
OAM – Minha formação é tecnicamente em saúde pública, mas vivenciei e me inseri no contexto político de cada período que descrevo. Não fui apenas um técnico; minha vivência e experiência são únicas e podem oferecer uma perspectiva mais profunda e contextualizada.
Pergunta: Acredita que sua participação política influenciou sua perspectiva?
OAM – Sim, tive a oportunidade de conviver diretamente com a política, o que certamente influenciou minha visão e meu entendimento dos eventos.
Pergunta – Doutor Mercadante, gostaria de nos aprofundarmos em três temas: as NOBS, NOAS e o PSF e a interação durante a gestão de Fernando Henrique com o Partido Sanitário do Ministério, que unia diversas correntes políticas e ideológicas. Por onde gostaria de começar?
OAM – – Vou iniciar falando das NOBS e da NOAS. Curiosamente, não são temáticas que tive experiência direta, mas fiz um estudo recente sobre elas. A tese de Ana Viana oferece uma análise detalhada desse período. A primeira NOB surgiu em 1993, um momento em que a municipalização, apesar da lei do Sistema Único de Saúde ser de 1990, ainda estava em fase inicial. A NOB/93 teve como referência o Secretário Municipal de Saúde de São José dos Campos, Gilson De Carvalho.
Ao revisitar a NOB, percebi que ela, sendo uma simples portaria ministerial, tentava regular aspectos da lei do SUS. O peculiar é que, considerando a hierarquia jurídica, deveria ser um decreto regulamentando uma lei. Esta portaria trazia novas responsabilidades aos municípios, centrando-se na transferência de recursos, majoritariamente da União.
Revisando minhas anotações sobre a Secretaria da Saúde, no tempo do Pinotti, percebi a intersecção com a NOB. Pinotti fortaleceu os municípios, mas também tinha aspirações políticas. Ele via o município como o principal gestor do SUS, e a Secretaria da Saúde em um papel de articulação.
A NOAS, que surgiu em 2002 durante o Governo José Serra, trouxe a regionalização como foco. A criação da comissão tripartite nacional, e das bipartites em níveis estaduais, marcou um avanço institucional.
Pergunta – Qual foi o período de surgimento das comissões bipartites e tripartite?
OAM – Essas comissões surgiram com a NOB. A lei do SUS não se refere explicitamente a elas, mas sugere uma gestão conjunta entre os três níveis de governo. Vale ressaltar que, após a criação da tripartite, vários outros setores começaram a adotar esse modelo. O Conselho Nacional de Saúde, por outro lado, já estava previamente estabelecido na legislação.
Para concluir, a NOAS buscou consolidar o papel do Estado, enfatizando a regionalização e incentivando os estados a elaborarem suas Programações Pactuadas Integradas, que se baseiam em territórios de saúde.
Pergunta: No que diz respeito ao financiamento e à interação interministerial, a NOB encontrou reflexo na prática, principalmente em termos de repasses financeiros e coordenação com outros ministérios?
OAM – Absolutamente. Durante aquele período, ou imediatamente após a introdução da NOB, Bresser Pereira, que era um alto funcionário do governo, foi um defensor entusiasmado da iniciativa. Ele via isso em linha com sua visão de descentralização e responsabilização de governos subnacionais. Lembro-me de várias conversas que tivemos com Bresser, e fiquei surpreso com o quão familiarizado ele estava com as nuances da NOB.
O Ministério da Saúde continuou a operar com o sistema orçamentário anterior, apesar de ter o Fundo Nacional de Saúde. Em São Paulo, por exemplo, o Fundo Estadual de Saúde era usado principalmente para receber recursos federais através de acordos. Mas o que chama a atenção é a forma como a NOB e a NOAS designaram os municípios como os principais gestores de recursos, enquanto também estabeleciam formas de transferência fundo a fundo, eliminando a necessidade de negociações políticas.
Pergunta: Esta abordagem fundo a fundo foi, portanto, uma maneira de minimizar a intermediação política e aumentar a eficiência?
OAM – Exatamente. Os recursos são transferidos diretamente, sem a necessidade de acordos ou negociações políticas.
Pergunta: E os consórcios municipais, que são mencionados na Constituição, foram efetivamente implementados?
OAM – Houve algumas tentativas. Por exemplo, o famoso Consórcio de Penápolis em São Paulo. Mas esses consórcios, em grande parte, não foram tão bem-sucedidos quanto se esperava. Na verdade, eles eram mais comuns em áreas de extrema pobreza.
Pergunta: E em relação ao PAB, o Piso de Atenção Básica? Como isso se encaixa no quadro geral?
OAM – O PAB foi uma iniciativa significativa do Barjas Negri. É uma transferência fundo a fundo, per capita, que não requer acordos. É apoiado legalmente, tomando como exemplo o financiamento da educação que também tem transferências automáticas da União para os municípios. Esse tipo de abordagem facilita o financiamento e a implementação de iniciativas de saúde.
Pergunta – O agente comunitário de saúde foi a base para a introdução do Programa Saúde da Família (PSF)?
OAM – Exatamente. O ACS desempenhou um papel fundamental, especialmente em áreas onde o acesso à saúde era limitado ou inexistente. A ideia era que, ao empregar membros da própria comunidade, haveria um melhor entendimento das necessidades locais e uma relação de confiança mais fácil de ser estabelecida. Assim, ao olharmos para o PSF, vemos claramente como ele se desenvolveu a partir dessa base inicial do ACS, expandindo a abordagem para incluir uma equipe multidisciplinar mais ampla, focada na saúde da família e da comunidade.
Pergunta – E como foi a transição do foco apenas no ACS para a introdução de uma equipe mais ampla sob o PSF?
OAM – Foi um processo gradual e também uma resposta à necessidade de uma abordagem mais holística da saúde. Afinal, enquanto o ACS era fundamental para as tarefas básicas e a sensibilização da comunidade, uma abordagem de saúde mais completa requer uma variedade de competências. Médicos, enfermeiros, dentistas e outros profissionais de saúde foram integrados para oferecer uma gama mais ampla de serviços e cuidados, sempre com foco na saúde da família e da comunidade.
Pergunta – Há alguma particularidade sobre a maneira como o PSF foi implementado e se desenvolveu no Brasil?
OAM – Sim, uma das particularidades é a forma como o PSF priorizou as áreas mais desfavorecidas e rurais, reconhecendo as disparidades de acesso à saúde. Outra característica única é a ênfase na prevenção e promoção da saúde, em vez de apenas tratamento. Isso significa que o PSF não apenas trata doenças, mas também trabalha ativamente para preveni-las, educando a comunidade e promovendo estilos de vida saudáveis.
Pergunta – Você mencionou desafios anteriores com relação ao ACS. Como esses desafios foram abordados quando o PSF foi introduzido?
OAM – O PSF, ao incorporar uma equipe multidisciplinar, tentou abordar alguns dos desafios de capacitação e formação enfrentados pelos ACSs. Com médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde envolvidos, havia uma maior variedade de competências e conhecimentos disponíveis. Além disso, com o apoio governamental e uma estrutura mais formal, havia mais recursos para treinamento e capacitação. No entanto, desafios persistiram, especialmente em relação ao financiamento e à sustentabilidade do programa a longo prazo. O médico de família, na visão idealizada, era o profissional central para o PSF, um generalista com capacidades amplas e um enfoque na saúde preventiva e promoção da saúde. No entanto, enfrentou-se o desafio da formação adequada destes profissionais, para que pudessem de fato atender às demandas do programa. Por outro lado, o agente comunitário de saúde, originado diretamente da comunidade, possuía uma conexão direta com a população, mas seu papel muitas vezes foi visto com desconfiança ou incompreensão, especialmente pelo setor de enfermagem, que não sabia exatamente como categorizá-lo ou integrá-lo no sistema. O agente não se encaixava nas categorias tradicionais, e isso causou certa resistência, especialmente por parte das enfermeiras mais tradicionais.
Pergunta – Então, o sucesso do PSF, em grande parte, dependeu de superar essas tensões e desafios de integração dos profissionais no programa?
OAM – Exatamente. O PSF era revolucionário em sua abordagem, buscando transformar o sistema de saúde ao focar na prevenção e na saúde da família. No entanto, como toda inovação, enfrentou resistências e desafios. Superar essas tensões e garantir uma formação adequada para todos os envolvidos, especialmente o médico de família e o agente comunitário de saúde, foi fundamental para o sucesso e a eficácia do programa.
Pergunta: você já havia falado dessas tensões, pode aprofundar um pouco em relação ao agente comunitário?
OAM – Verdadeiramente, a situação gerou contradições consideráveis. Introduzir uma nova figura no contexto da equipe de Saúde, sem uma clara definição de seu papel e escopo de trabalho, trouxe vários desafios. No sistema de serviço público brasileiro, a contratação de servidores, em geral, é feita após um processo seletivo rigoroso. Portanto, ter agentes comunitários escolhidos e recrutados diretamente de suas comunidades gerou um dilema. O Ministério Público do Trabalho interveio, pressionando os municípios a realizarem concursos públicos. Muitos municípios tentaram contornar esta exigência através de nomeações em cargos de comissão, mas com a ressalva de que o agente ainda deveria ter um vínculo com a comunidade.
A situação se complicou ainda mais quando, em um dos primeiros concursos públicos realizados, profissionais de outras áreas, como assistentes sociais e enfermeiras, foram selecionados como agentes comunitários de saúde. Isso revelou uma falha no sistema, pois estes profissionais, uma vez dentro do SUS, buscaram redefinir suas funções e responsabilidades, alegando desvio de função. Esse cenário trouxe à tona a necessidade de uma legislação específica para a profissão de Agente Comunitário de Saúde, o que levou à elaboração e posterior aprovação de uma lei que, embora genérica, serviu para consolidar a posição do agente comunitário dentro do PSF.
A formação adequada dos profissionais de saúde, principalmente do médico de família, foi outro ponto crítico. O médico de família, idealmente, deveria trabalhar em tempo integral, atendendo a uma clientela específica e trabalhando em estreita colaboração com agentes de saúde e enfermeiras. No entanto, muitos médicos de família acabaram optando por trabalhar em tempo parcial, dividindo seu tempo entre a comunidade e suas clínicas particulares. Esta situação destacou a necessidade de investimento em capacitação e educação continuada, para garantir que estes profissionais possam desempenhar adequadamente suas funções.
Recentemente, o programa “Mais Médicos” foi lançado como uma tentativa de abordar o déficit de médicos em áreas rurais e remotas. Contudo, o programa trouxe sua cota de controvérsias, em particular a decisão de contratar médicos estrangeiros, principalmente de Cuba. Enquanto o programa se concentrava quase exclusivamente nos médicos, negligenciando outros profissionais essenciais, como enfermeiras especializadas em saúde pública, os médicos cubanos, por outro lado, já possuíam a formação e a experiência necessárias em medicina familiar. A reação da comunidade médica brasileira à introdução dos médicos cubanos foi, em muitos casos, negativa, culminando em tentativas de desqualificar a formação e competência desses profissionais. No entanto, a realidade mostrou que os médicos cubanos estavam plenamente qualificados para desempenhar suas funções e tiveram um impacto significativo nas comunidades onde foram alocados.
Pergunta – Existe uma grande circulação dos médicos, correto?
OAM – Sim, porque o médico de família, por definição, ele é um profissional que tem continuidade com a clientela. Ele acompanha a clientela ao longo do tempo e sabe exatamente quem é sua clientela.
Pergunta – E em relação à visão de rede de serviços e sua consolidação, como vê essa progressão?
OAM – Estamos avançando nessa direção, mas ainda temos um longo caminho a percorrer. Com a tecnologia atual, como a telemedicina e a internet, o médico de família não deveria se sentir isolado. Pessoalmente, utilizo muito o “doutor Google” para minhas consultas, para minha família. Sempre que surge algo que desconheço, recorro a ele para verificar a bibliografia mais recente, os últimos artigos publicados, etc. Assim, temos a possibilidade de…
Pergunta – Está falando de uma maior comunicação e conexão?
OAM – Exatamente. É uma questão de conexão e crescimento contínuo. Claro, seriam necessários ciclos constantes de aperfeiçoamento, mas é essencial que não percamos de vista a perspectiva do médico de família: ele não é um não-especialista em algo, mas é o especialista no atendimento daquele paciente específico.
Pergunta – Mas enfrentamos outros desafios nessa jornada, não apenas políticas de estado, correto?
OAM – Sim, e é uma luta constante contra a corrente. Toda a elite, toda a cúpula do governo adotam essa visão de que apenas a alta complexidade tecnológica pode resolver os problemas. E há também essa ideia de que é preciso ter um plano de saúde para ter acesso a um atendimento adequado.
Pergunta – Tais discursos são realmente destrutivos para qualquer programa, não acha?
OAM – Definitivamente. E embora os sistemas nacionais de saúde, especialmente na Europa, estejam enfrentando suas próprias crises, acredito que resistem bravamente graças ao apoio da população. A legitimidade vem do povo. Sempre gosto de mencionar como, durante as Olimpíadas no Rio, ao abordar a civilização brasileira, foi destacada uma ambulância do SUS, ilustrando uma das grandes conquistas do Brasil: o Sistema Único de Saúde. Foi uma manifestação poderosa do reconhecimento pela população.
Pergunta – E em relação ao Partido Sanitário e a gestão do Serra?
OAM – Bem, a gestão do Serra teve suas particularidades. Ele é, acima de tudo, uma figura racional. Quando ele formou seu ministério, não havia viés político-partidário, pelo menos não em primeiro plano. A sua abordagem para montar o gabinete foi bastante heterogênea, buscando uma ampla gama de perspectivas. E, embora ele reconhecesse e valorizasse o “partido sanitário”, também percebeu que havia uma necessidade de se conectar com todos os espectros ideológicos.
Pergunta – Você está colocando a Pastoral da Criança, nessa conexão? Como ela se integrou a essa dinâmica?
OAM – A Pastoral da Criança, sob a liderança da Dra. Zilda Arns, foi uma iniciativa muito bem-sucedida, principalmente devido à sua abordagem comunitária e à sua capacidade de mobilizar voluntários. O Ministério da Saúde, reconhecendo seu valor, deu forte apoio à Pastoral. No entanto, a relação próxima entre a Pastoral e o Ministério, em determinados momentos, gerou tensões, uma vez que havia questões sobre porque tanta ênfase e recursos estavam sendo direcionados para uma única iniciativa. Mesmo assim, a Pastoral provou ser uma parceira valiosa, complementando o trabalho do PSF e ajudando a atingir comunidades ainda mais remota