Gonzalo Vecina Neto é um médico sanitarista, professor universitário e pesquisador brasileiro, amplamente reconhecido por suas contribuições fundamentais à saúde pública no Brasil. Graduado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí e mestre em Administração pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Vecina é um dos idealizadores do Sistema Único de Saúde (SUS) e fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Vecina iniciou sua trajetória na saúde pública durante os anos 70, um período de intensa transformação política e social no Brasil. Ele esteve envolvido com movimentos políticos que buscavam reformular a saúde pública no país, influenciado pela conjuntura pós-golpe militar de 1964. Durante sua carreira, Vecina ocupou diversos cargos de destaque, incluindo Secretário Nacional de Vigilância Sanitária, Secretário Municipal de Saúde de São Paulo e superintendente do Hospital Sírio-Libanês.

Em entrevista a Nelson Ibañez, conduzida remotamente para o projeto “História e Saúde em São Paulo: Instituições, Atores e Ideias”, Vecina compartilha reflexões sobre sua carreira e os desafios enfrentados ao longo de sua trajetória. Ele destaca a importância da formação de profissionais de saúde, a necessidade de uma visão holística da saúde pública e os desafios contemporâneos enfrentados pelo SUS, especialmente em termos de financiamento e gestão.

Vecina também discute a criação da Anvisa, ressaltando os desafios institucionais e políticos que marcaram o processo de estabelecimento da agência. Ele enfatiza a importância da vigilância sanitária e da regulamentação de produtos e serviços de saúde para garantir a segurança e a qualidade dos cuidados prestados à população.

A entrevista oferece uma visão profunda e humanizada de um dos principais nomes da saúde pública brasileira, refletindo sobre as conquistas passadas e os caminhos futuros para a melhoria do sistema de saúde no Brasil.

Nelson Ibañez: Gonzalo, você poderia começar nos contando um pouco sobre sua trajetória profissional? O que o levou a se dedicar à saúde pública e quais foram suas principais influências e experiências nesse período?

Gonzalo Vecina Neto: Claro, Nelson. Minha trajetória na saúde pública começou nos anos 70, um período extremamente rico e desafiador. Naquele tempo, eu estava na faculdade e já me envolvia com movimentos políticos que buscavam transformar a saúde pública no Brasil. Nós, da turma da saúde dos anos 70 e 80, fomos responsáveis por dar conformidade ao que hoje conhecemos como Sistema Único de Saúde (SUS). Os princípios, diretrizes e a estrutura organizacional do SUS foram construídos com base nas lutas que travamos durante esse período.

Durante os anos 60 e 70, o Brasil vivia uma época turbulenta, especialmente após o golpe militar de 1964. O governo tentava implementar um plano de privatização da assistência à saúde, enquanto os institutos e o INPS falhavam em responder adequadamente às necessidades de saúde pública. Foi nesse contexto que surgiram as medicinas de grupo e as Unimeds, como uma alternativa ao colapso do sistema estatal de saúde.

Na década de 70, sob a liderança de Paulo de Almeida Machado, o Ministério da Saúde passou por uma importante reforma que incluiu a criação do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) e, posteriormente, o CONASP. Esses programas foram fundamentais para a estruturação do sistema de saúde que temos hoje. Eu ainda estava na faculdade nesse período, mas já participava ativamente do Movimento de Renovação Médica (REME) e do PMDB Jovem, além de estar envolvido com o Partidão.

Como foi sua participação no movimento político e na formação médica durante os anos 70?

Gonzalo: Nos anos 70, estávamos criando um movimento político robusto dentro da saúde pública. Participamos de iniciativas como o internato rural e os centros integrados de saúde, tentando criar um modelo mais adequado de formação e disposição dos profissionais de saúde. Eu acompanhei de perto experiências de gestão municipal em cidades como Londrina, Campinas, Itu e Niterói. Essas experiências foram fundamentais para a criação de uma rede de saúde mais integrada e eficiente.

Durante minha residência, trabalhei com figuras influentes como Edmundo Juarez, João Yunes e José Carlos Seixas. Eles lideraram reformas significativas no Sistema Federal de Saúde e ajudaram a moldar o que viria a ser o SUS. A vigilância sanitária também ganhou importância nesse período, com a criação de leis fundamentais como a Lei 6360 de 1976 e a Lei 6437 de 1977, que estabeleceram o arcabouço legal para a ação da vigilância sanitária no Brasil.

Você mencionou a importância da vigilância sanitária. Pode falar mais sobre sua atuação nessa área?

Gonzalo: Minha atuação na vigilância sanitária começou quando fui diretor de Vigilância Sanitária de Serviços da Saúde no Centro de Vigilância Sanitária (CVS) de São Paulo. Nesse papel, trabalhei para fortalecer a estrutura de vigilância e integrar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica. Foi uma experiência transformadora que me preparou para futuras responsabilidades, como a criação da Anvisa.

Em 1998, fui para Brasília como Secretário de Vigilância Sanitária, onde participei da criação da Anvisa em 1999. A Anvisa foi fundamental para regulamentar e supervisionar a saúde no Brasil, garantindo a qualidade e segurança dos serviços e produtos de saúde. Implementamos políticas importantes, como a regulamentação dos medicamentos genéricos e a rotulagem nutricional obrigatória. Esses avanços foram possíveis graças ao trabalho coletivo de uma equipe dedicada e à vontade política de promover mudanças significativas na saúde pública.

Como foi a transição para a criação da Anvisa e quais foram os desafios enfrentados?

Gonzalo: A criação da Anvisa foi um processo complexo e desafiador. A agência foi estabelecida para ser uma autarquia independente, com a missão de proteger a saúde da população por meio da regulamentação de produtos e serviços de saúde. Tivemos que lidar com resistência política e institucional, mas conseguimos estabelecer uma estrutura robusta e eficiente. O trabalho inicial envolveu não apenas a construção de um novo marco regulatório, mas também a formação de uma equipe capacitada e comprometida com a missão da Anvisa.

Como foi sua passagem pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo?

Gonzalo: Em 2003, fui convidado pela então prefeita Marta Suplicy para ser o Secretário Municipal de Saúde de São Paulo. Assumir essa posição foi um desafio enorme, devido ao tamanho e complexidade do sistema de saúde da cidade. Implementamos programas importantes, como o Sorria São Paulo, a rede de atendimento odontológico, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), e construímos hospitais como o de Cidade Tiradentes e M’Boi Mirim.

Apesar das dificuldades, foi um período extremamente produtivo. Conseguimos melhorar a infraestrutura e a qualidade dos serviços de saúde, além de fortalecer a rede de atendimento. Trabalhei com uma equipe dedicada e comprometida, o que fez toda a diferença para o sucesso das iniciativas que implementamos. Também enfrentamos grandes desafios financeiros e operacionais, mas com a colaboração de todos, conseguimos realizar muitas melhorias.

Quais foram os momentos mais desafiadores e gratificantes de sua carreira?

Gonzalo: Cada etapa da minha carreira teve seus desafios e recompensas. Trabalhar na vigilância sanitária, na criação da Anvisa, e na Secretaria Municipal de Saúde foram momentos de grande responsabilidade e impacto. Um dos desafios mais significativos foi a resistência política e institucional às mudanças que tentávamos implementar. No entanto, ver os resultados positivos dessas mudanças, como a melhoria na qualidade dos serviços de saúde e a criação de políticas públicas inovadoras, foi extremamente gratificante.

Outro momento desafiador foi minha condenação em segunda instância por um e-mail enviado enquanto estava na Secretaria Municipal de Saúde. Foi uma experiência difícil, mas que não diminuiu minha determinação em continuar trabalhando pela saúde pública. Cada desafio enfrentado reforçou meu compromisso com a justiça social e a equidade na saúde.

Para finalizar, qual é sua visão para o futuro da saúde pública no Brasil?

Gonzalo: Acredito que o futuro da saúde pública no Brasil depende de um compromisso contínuo com a justiça social e a equidade. Precisamos fortalecer o SUS, garantir financiamento adequado e investir na formação de profissionais de saúde comprometidos com uma abordagem holística e integrada. A integração entre a vigilância epidemiológica e a assistência médica deve ser uma prioridade, especialmente à luz das lições aprendidas com a pandemia de COVID-19.

Além disso, é fundamental desenvolver políticas públicas intersetoriais que abordem os determinantes sociais da saúde, como educação, habitação e emprego. Com dedicação e esforço contínuos, acredito que podemos construir um sistema de saúde mais robusto e eficiente, capaz de atender às necessidades de toda a população brasileira.

Você mencionou a importância da formação de profissionais de saúde. Pode falar mais sobre sua atuação nessa área?

Gonzalo: A formação de profissionais de saúde sempre foi uma prioridade para mim. Durante minha atuação no PROASA, conseguimos descentralizar cursos de administração hospitalar, planejamento e gestão de pessoas para 14 estados brasileiros. Esses cursos foram essenciais para capacitar gestores de saúde e promover uma gestão mais eficiente e integrada. Também participei de iniciativas como o projeto UNI, da Fundação Kellogg, que introduziu metodologias ativas de ensino na formação de profissionais de saúde, como foi o caso da Faculdade de Medicina de Marília.

Como foi sua experiência na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)?

Gonzalo: Na ENSP, tive a oportunidade de trabalhar na criação de cursos de administração hospitalar junto com o Pedro Barbosa e o Chico. Foi um período muito interessante e de grande aprendizado. A ENSP foi fundamental para a formação de gestores hospitalares em todo o Brasil. Trabalhamos para desenvolver uma abordagem de ensino que integrasse teoria e prática, preparando os alunos para os desafios reais da gestão hospitalar. A ENSP desempenhou um papel crucial na profissionalização da gestão hospitalar no Brasil, formando líderes que levaram adiante os princípios da saúde pública que defendemos.

E como foi sua atuação no setor privado, especialmente no Hospital Sírio-Libanês?

Gonzalo: Após minha saída da Secretaria Municipal de Saúde, fui para o Hospital Sírio-Libanês, onde passei 10 anos como superintendente. Durante esse período, conseguimos duplicar a capacidade do hospital e implementar várias melhorias na gestão e nos serviços prestados. Foi uma experiência muito enriquecedora, que me permitiu aplicar os conhecimentos adquiridos no setor público e privado. No Sírio-Libanês, trabalhamos para integrar a excelência médica com uma gestão eficiente, sempre com foco na qualidade do atendimento aos pacientes. Conseguimos implementar práticas inovadoras que serviram de modelo para outros hospitais no país.

Quais foram as principais lições que você aprendeu ao longo de sua carreira na saúde pública?

Gonzalo: Uma das principais lições que aprendi é a importância da colaboração e do trabalho em equipe. A saúde pública é um esforço coletivo, e os melhores resultados são alcançados quando trabalhamos juntos, compartilhando conhecimentos e recursos. Também aprendi que a resiliência e a adaptabilidade são essenciais. Enfrentamos muitos desafios ao longo dos anos, mas com determinação e criatividade, conseguimos superá-los e implementar mudanças significativas.

Outra lição importante é a necessidade de uma visão holística da saúde. A saúde não se resume ao tratamento de doenças; envolve a promoção do bem-estar e a melhoria das condições de vida da população. Por isso, é fundamental desenvolver políticas públicas que abordem os determinantes sociais da saúde, como educação, habitação e emprego. Uma abordagem integrada e intersetorial é essencial para enfrentar os desafios complexos da saúde pública.

Em sua opinião, quais são os maiores desafios enfrentados pelo SUS atualmente?

Gonzalo: O SUS enfrenta vários desafios atualmente. Um dos maiores é o financiamento adequado. O subfinanciamento crônico do SUS compromete a qualidade e a abrangência dos serviços oferecidos. Precisamos de um compromisso político e social para aumentar os investimentos na saúde pública e garantir que os recursos sejam utilizados de forma eficiente.

Outro desafio é a gestão e a governança. Precisamos fortalecer a capacidade de gestão dos serviços de saúde, garantindo que os gestores sejam bem treinados e capacitados para lidar com as complexidades do sistema. Além disso, é crucial promover a participação social e o controle social na gestão do SUS, assegurando que as vozes da comunidade sejam ouvidas e consideradas nas decisões de saúde.

A integração dos serviços também é um desafio significativo. Precisamos melhorar a coordenação entre os diferentes níveis de atenção à saúde, garantindo que os pacientes recebam cuidados contínuos e integrados. A pandemia de COVID-19 destacou a importância de um sistema de saúde bem coordenado e resiliente, e precisamos aprender com essas lições para fortalecer o SUS.

Para finalizar, qual é sua mensagem para os jovens profissionais que estão começando na saúde pública?

Gonzalo: Para os jovens profissionais que estão começando na saúde pública, minha mensagem é de esperança e determinação. A saúde pública é uma área desafiadora, mas extremamente gratificante. Vocês têm a oportunidade de fazer uma diferença real na vida das pessoas e contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e saudável.

É importante manter um compromisso com a justiça social e a equidade, lembrando sempre que a saúde é um direito de todos. Busquem constantemente o aprendizado e a inovação, e estejam abertos a trabalhar em colaboração com outros profissionais e setores. A saúde pública é um esforço coletivo, e o sucesso depende do trabalho em equipe e da participação ativa de todos.

Nunca subestimem o impacto que podem ter. Cada ação, por menor que pareça, contribui para um sistema de saúde mais forte e mais justo. Continuem lutando pelos princípios que fundamentam o SUS e por uma saúde pública que realmente atenda às necessidades de toda a população. Com dedicação e perseverança, vocês podem ajudar a construir um futuro melhor para a saúde no Brasil.

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