Oswaldo Yoshimi Tanaka, diretor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), possui uma extensa e respeitada trajetória na área da saúde pública. Graduado em Medicina, mestre e doutor em Saúde Pública pela USP, Tanaka é um dos principais nomes na avaliação de políticas públicas de saúde no Brasil. Sua carreira é marcada por seu papel na formulação e implementação de estratégias que buscam melhorar a saúde pública, tanto no âmbito acadêmico quanto na prática. 

Ao longo de sua carreira, Tanaka desenvolveu diversas pesquisas focadas na integralidade do cuidado em saúde e na avaliação de políticas e gestão em saúde. Ele é coordenador do Grupo de Trabalho de Avaliação da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e está à frente de projetos de pesquisa que visam melhorar a articulação entre a atenção básica e a especializada, especialmente no cuidado de condições crônicas, como a hipertensão arterial sistêmica. 

Durante a entrevista conduzida por Nelson Ibañez, Tanaka compartilha sua experiência desde os tempos de residência médica em pediatria social no Chile, onde pôde observar de perto o funcionamento de um sistema nacional de saúde eficiente. Essa experiência foi fundamental para sua visão sobre a necessidade de um sistema de saúde mais integrado e normatizado no Brasil. Ele também detalha sua participação na Secretaria de Saúde de São Paulo, onde contribuiu para a implementação de programas médicos-sanitários e a reorganização dos centros de saúde no estado. 

Tanaka aborda ainda a importância da descentralização administrativa na saúde, refletindo sobre a criação dos ERSAS (Escritórios Regionais de Saúde) e os desafios enfrentados na integração dos serviços de saúde pública. Ele destaca a necessidade de melhorar a capacidade resolutiva da atenção básica e a importância de uma abordagem mais abrangente e integrada para a gestão da saúde pública. A entrevista oferece uma visão detalhada e crítica sobre a evolução das políticas de saúde pública no Brasil e os caminhos futuros para melhorar o sistema de saúde. 

Nelson Ibañez: Você poderia nos contar sobre sua trajetória profissional e como você se envolveu nas políticas públicas de saúde? 

Oswaldo Yoshimi Tanaka: Eu me formei em 1971, na Faculdade de Medicina da USP, na 54ª turma, em pleno período militar. Durante a minha residência, resolvi fazer pediatria e escolhi a área de pediatria social, coordenada pelo doutor João Yunes. Após concluir a residência, fui convidado por ele para um terceiro ano de especialização no Chile, em pediatria social, com uma bolsa da OPAS/OMS. 

Aceitei o convite e passei um ano no Chile em 1974, em meio à revolução chilena, sob orientação do professor Julio Meneguelli, onde estudei e experimentei o sistema de saúde local. Essa foi a experiência mais impactante da minha formação, pois pude atuar como médico pediatra na assistência à saúde infantil. O sistema nacional de saúde chileno era regionalizado, centrado em hospitais que, por sua vez, gerenciavam centros de saúde responsáveis por atender a população local. Esse sistema garantia que todas as cidades chilenas tivessem pelo menos um médico e uma enfermeira, seguindo um programa médico-sanitário desenvolvido pela OPAS, através da técnica CENDES-OPAS. 

Ao retornar ao Brasil em 1975, ainda sob o regime militar, mas em um contexto de intenso debate sobre saúde pública e medicina preventiva, fui convidado pelo professor e Dr. Walter Leser; através do professor Dr. Ruy Laurenti; para trabalhar na Secretaria Estadual de Saúde do Estado de São Paulo. Naquele momento, o professor Leser estava reformulando a política de saúde do estado, buscando uma assistência mais integral à população, especialmente na área materno-infantil. 

Com a experiência adquirida no Chile, participei da elaboração e desenvolvimento do programa de saúde materno-infantil, que foi finalizado em 1975 e implantado em seguida. Concluí um concurso público para o cargo de médico sanitarista e, posteriormente, assumi o cargo de diretor técnico nível II da Divisão de Normas Técnicas do Departamento Técnico Normativo da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Essa posição me permitiu participar ativamente na discussão e implementação do novo programa em toda a rede. 

Naquele ano, também ocorreu a 5ª Conferência Nacional de Saúde, que promoveu o Programa Materno-Infantil como eixo da assistência à saúde dessa população, além de lançar as bases para o Sistema Nacional de Saúde (SNS), que mais tarde evoluiria para o SUS. Essa foi uma experiência de transformação significativa que me ajudou a entender que era possível, para nós como país, aspirar a um sistema nacional de saúde similar ao que vi no Chile. Lá, cada região era gerida por uma escola médica, com todos os procedimentos padronizados, permitindo uma efetividade uniforme em todo o território. Além disso, aprendi a realizar exames laboratoriais, raio-x e uma anamnese completa, demonstrando que era possível oferecer uma assistência abrangente mesmo sem uma infraestrutura de apoio totalmente desenvolvida. 

Nelson Ibañez: Professor Tanaka, como foi o desenvolvimento das políticas públicas de saúde durante sua atuação na Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo? 

Oswaldo Yoshimi Tanaka: Naquela época, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) contava com três coordenadorias principais: a Coordenadoria da Saúde da Comunidade, a Coordenadoria da Assistência Hospitalar e a Coordenadoria dos Serviços Técnicos. Essas coordenadorias eram essenciais para otimizar e racionalizar os diferentes serviços de saúde. Elas estavam diretamente ligadas aos departamentos regionais de saúde, que abrangiam um número fixo de centros de saúde, classificados de 1 a 5, de acordo com a complexidade tecnológica e os recursos disponíveis. Esse sistema visava garantir que toda a população do estado tivesse acesso a um centro de saúde, substituindo o antigo modelo de dispensários e promovendo um enfoque nos níveis de prevenção em saúde. Foi nesse contexto que o programa de Saúde Materno-Infantil foi implantado. 

Para garantir o funcionamento eficaz dos centros de saúde, o professor Walter Leser percebeu a necessidade de médicos sanitaristas para administrar esses centros e os distritos de saúde. Ele, então, procurou a Faculdade de Saúde Pública para formar 240 médicos sanitaristas em dois anos. Como resposta, a Faculdade, que originalmente oferecia um curso formal de um ano, teve que se adaptar e criou um curso específico para médicos, conhecido como Curso Curto. 

Simultaneamente à reorganização macroestrutural da secretaria, houve um foco significativo no trabalho multiprofissional. Os médicos sanitaristas tinham o papel de coordenar a equipe médica, de enfermagem, visitadoras e educadores sanitários para implementar o programa de Saúde Materno-Infantil e outros programas, com foco na promoção, prevenção e assistência à saúde. 

Com a formação desses médicos sanitaristas, cerca de 280 centros de saúde passaram a ser dirigidos por profissionais com uma visão mais abrangente de saúde pública, não apenas focada nos problemas, mas também na amplitude do processo saúde-doença. Isso deu uma nova configuração ao processo de assistência no estado de São Paulo, que passou a ter uma rede de centros de saúde com diferentes níveis de complexidade, adaptados às necessidades específicas de diferentes aglomerados populacionais. Naquela época, fazíamos a distinção entre “implantar” e “implementar”: implantar era começar a operar de uma forma diferente, racionalizando o serviço e definindo claramente as atribuições do pessoal de enfermagem, educadores sanitários, visitadoras sanitárias e médicos, o que conferiu uma nova dinâmica ao trabalho nos centros de saúde. 

Essa nova estrutura levou a população a procurar as unidades de saúde para atender suas necessidades específicas. Um ponto importante a ser destacado é que a imunização, especialmente de crianças, era um eixo central da assistência. O objetivo principal da assistência era reduzir a mortalidade infantil, que na década de 1970 era de 100 por mil nascidos vivos no país. Para enfrentar essa situação, foi implementado um programa de suplementação alimentar para gestantes e crianças. Para melhorar o baixo peso ao nascer, o professor Leser encomendou ao Instituto de Nutrição da Unicamp um suplemento especial chamado Gestal, para ser usado pelas gestantes durante a gravidez. Para as crianças, foi estabelecido um programa de distribuição gratuita de leite em pó. Esses suplementos funcionaram como um atrativo, permitindo manter a população sob supervisão contínua de crescimento e desenvolvimento, tanto intrauterino quanto extrauterino. Isso, em minha opinião, melhorou significativamente as condições de saúde de crianças e gestantes. Além disso, a Coordenadoria de Assistência Hospitalar também implementou medidas para agilizar e aumentar a capacidade de atendimento ao parto hospitalar. 

Nelson Ibañez: Sem querer interromper sua análise, gostaria de abrir um parêntese para falar sobre o curso que a Secretaria encomendou à Faculdade de Saúde Pública. Qual foi o seu papel nessa relação? Você estava atuando no Departamento Técnico Normativo (DTN) durante esse período?  

Oswaldo Yoshimi Tanaka: Embora eu não fosse docente da Faculdade de Saúde Pública, fui convidado a ministrar aulas de Programação em Saúde Pública, Administração e Saúde da Criança, devido ao trabalho que desenvolvia na Secretaria Estadual de Saúde (SES), que incluía o planejamento, implantação e implementação do Programa de Saúde Materno-Infantil. Além disso, minha experiência adquirida no Chile foi um diferencial. O convênio entre a Faculdade e a SES estava previsto para o período de 1976 a 1978, mas a Faculdade continuou oferecendo o curso por mais alguns anos. Durante esse tempo, continuei lecionando e desenvolvendo atividades de pesquisa em parceria com o professor Dr. Rosenburg, responsável pela disciplina de Saúde da Criança, com quem também fiz meu mestrado. 

Em 1983, prestei concurso público na Universidade de São Paulo e assumi o cargo de docente com uma carga horária semanal de 12 horas. Isso me permitiu continuar trabalhando na gestão pública ao mesmo tempo em que contribuía para a formação de profissionais na área de saúde pública. Quanto ao meu papel no DTN, durante o período do convênio do curso, eu atuava como diretor técnico. 

Nelson Ibañez: Esse depoimento é muito valioso, especialmente porque, em algumas conversas com o professor Eurivaldo Almeida, que também participou da elaboração desses programas e foi coordenador da Coordenadoria de Saúde da Comunidade, ele mencionou a importância da gestão dos centros de saúde, das regionais e dos distritos. Você chegou a participar diretamente da Coordenadoria de Saúde da Comunidade?  

Oswaldo Yoshimi Tanaka: Sim, após o término do terceiro curso curto, o professor Leser, preocupado com a implementação dos programas médico-sanitários, me alocou na Coordenadoria de Saúde da Comunidade. Lá, assumi a supervisão dos programas. Naquela época, o Eurivaldo Sampaio de Almeida era o coordenador e, portanto, meu chefe. Apesar de não estar mais no Departamento Técnico Normativo (DTN), mantive uma ligação próxima com eles, pois era crucial manter a coesão entre as áreas normativa e executiva. 

Minha experiência na Coordenadoria foi bastante enriquecedora, pois tive a oportunidade de percorrer todo o estado, visitando as unidades para avaliar a execução dos programas. Isso me permitiu observar as diferenças de funcionamento entre os diversos centros de saúde e como realidades tão distintas conseguiam desenvolver o programa materno-infantil com uma disparidade significativa de contexto, morbidade, mortalidade e recursos. 

Como supervisor, planejei a coleta de dois indicadores em todos os centros de saúde: cobertura e concentração. Definimos cobertura como o número de casos novos por ano, enquanto concentração era baseada no princípio de que uma criança com quatro consultas anuais teria um acompanhamento adequado de crescimento e desenvolvimento. Para gestantes, quatro consultas de pré-natal significavam um acompanhamento pré-natal adequado. Coletamos esses dados por meio do sistema da Coordenadoria de Saúde da Comunidade (CSC) e os resultados nos permitiram ajustar o programa à realidade observada. Esses dados também foram fundamentais para minha dissertação de mestrado. 

Observamos que a captação de gestantes era frequentemente tardia, o que limitava a eficácia das ações de saúde. Assim, programamos para que o ingresso da gestante no pré-natal ocorresse no primeiro trimestre, garantindo que as quatro consultas recomendadas pudessem ser realizadas ao longo da gestação, promovendo uma supervisão adequada e reduzindo o risco de baixo peso ao nascer. Em relação à população infantil, propusemos quatro consultas nos primeiro, terceiro, sexto e nono meses de vida, alinhadas ao esquema vacinal. Também estabelecemos parâmetros de ganho de peso a serem observados pela equipe de saúde. Naquela época, ainda não tínhamos uma curva de crescimento padronizada para monitorar o crescimento infantil. 

Nelson Ibañez: Tanaka, foi durante esse período que vocês implementaram a curva de crescimento e desenvolvimento nas unidades, focando especialmente na saúde infantil?  

Oswaldo Yoshimi Tanaka: A curva de crescimento foi implementada em 1984, quando o professor Dr. João Yunes se tornou secretário de saúde e determinou que a curva de crescimento infantil, desenvolvida com crianças de Santo André, pela FAISA, fosse adotada em todos os centros de saúde do Estado de São Paulo. Essa curva incluía, além dos parâmetros de peso, indicadores de desenvolvimento neuro-motor. 

Nelson Ibañez: Agora, além do seu papel como supervisor de saúde da comunidade e da sua tese de mestrado, você também participou da elaboração de programas para o curso curto. Depois, com a mudança de governo em São Paulo, você teve uma atuação na gestão municipal. Poderia nos contar sobre sua experiência na administração municipal de São Paulo e sua participação nas gestões de Jatene e Yunes?  

Oswaldo Yoshimi Tanaka: Claro, Nelson. Um resumo breve do meu trabalho nas instituições públicas de saúde inclui meu período na Secretaria Estadual de Saúde (SES) de 1975 a 2002. Durante a gestão do professor Dr. Adib Jatene, que assumiu a SES em 1982, houve um esforço para criar algo inovador na saúde pública. Jatene, conhecido cirurgião cardíaco, formou um grupo de trabalho para planejar um Plano Metropolitano de Saúde (PMS), com o objetivo de expandir a rede de atendimento na área metropolitana de São Paulo. A base conceitual do plano era garantir que toda a população da periferia tivesse acesso a um centro de saúde próximo e, idealmente, que houvesse pelo menos um leito geral para cada mil habitantes, minimizando a má distribuição dos recursos de saúde, que estavam concentrados no centro da cidade. 

Minha participação na elaboração desse plano permitiu identificar fatores fundamentais para a reorganização do sistema público de saúde em áreas urbanas, enfatizando a integralidade da atenção e a importância da participação social na gestão do sistema. Sob a liderança do professor Jatene, houve um esforço significativo para incluir a população na discussão do plano, marcando uma das primeiras vezes que vimos essa participação ativa na construção de políticas de saúde. 

Em 1983, com a nomeação de Mário Covas como prefeito de São Paulo, fui convidado pelo professor José da Silva Guedes para integrar a equipe da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), como chefe da Assessoria Técnica de Programas de Saúde. Nessa função, participei da implantação e implementação do programa de Ações Integradas de Saúde (AIS), que se tornou uma estratégia para reorganizar o sistema de saúde no município. As AIS, formuladas no início dos anos 1980, buscavam integrar os serviços de assistência médico-sanitária com um financiamento suplementar do INAMPS, otimizar os espaços físicos ociosos dos serviços estaduais e municipais e expandir a cobertura e o atendimento médico curativo para a população em geral. 

O financiamento extraorçamentário das AIS permitiu à equipe da SMS implementar duas estratégias principais: a expansão do terceiro turno de atendimento, aumentando a oferta de serviços para a população trabalhadora e a abertura de serviços de pronto-atendimento 24 horas em postos de saúde na periferia do município. 

Além disso, durante a implementação do PMS, lembro-me de que a proposta do INPS, depois INAMPS, de repassar 50% do orçamento dos hospitais para implantar o terceiro turno e pronto atendimento nos centros de saúde foi crucial. Isso possibilitou criar o terceiro turno em todas as unidades, necessitando de um rearranjo nos horários de trabalho da equipe de apoio. Simultaneamente, estávamos concluindo o Plano Metropolitano de Saúde, onde os novos centros de saúde foram planejados com uma área central ampla para agendamento e pronto-atendimento, facilitando o acesso da população. 

Nos anos seguintes, a SMS conseguiu implementar o PMS no município de São Paulo por duas razões principais: primeiro, porque o plano já estava todo estruturado pela SES, com a participação da população, e segundo, porque o município recebeu recursos financeiros do Banco Mundial, através da SES, para iniciar sua implantação. O PMS previa 400 novos centros de saúde e 40 hospitais, com a ideia de ter um hospital para cada conjunto de 10 centros de saúde. No entanto, a construção dos hospitais foi mais lenta, o que acabou comprometendo o plano. 

A proposta era criar um sistema local de saúde em que o centro de saúde fosse a porta de entrada, garantindo resolutividade conforme a complexidade e especificidade de cada caso. A integração entre o centro de saúde e o atendimento hospitalar era essencial para assegurar a efetividade das ações de saúde. 

Nelson Ibañez: Tanaka, esse seu depoimento é fundamental. Só para fazer uma breve síntese: o primeiro programa, o CIAM (Centro de Integração Assistência Médica no Centro de Saúde), que você mencionou, foi o precursor, e a AIS (Ações Integradas de Saúde) veio um pouco depois, nos anos 1980, quando as unidades já estavam operacionais e tinham essa experiência que você descreveu. É importante lembrar que a Coordenadoria de Saúde da Comunidade foi a principal articuladora desses programas, enquanto a área hospitalar estava mais voltada para as Santas Casas e alguns hospitais gerais do Estado. A ideia de um módulo de saúde composto por centros de saúde e hospitais para cada região, integrando serviços de diferentes complexidades e incorporando assistência médica ao centro de saúde para atendimento de demanda espontânea como porta de entrada, foi um avanço significativo.  

Oswaldo Yoshimi Tanaka: Exato, Nelson. Gostaria de acrescentar que o processo de integração do pronto atendimento nos centros de saúde, envolvendo assistência médica com a coordenação de médicos sanitaristas, foi muito significativo para mim e motivou meu doutorado. Fui ao PAM São Jorge, localizado ao lado da Rodovia Régis Bittencourt, que foi a primeira unidade a abrir o terceiro turno e o pronto atendimento. Lá, busquei entender como a população utilizava esses dois serviços. Realizei entrevistas com todos os usuários que chegavam à unidade, buscando atendimento de rotina no Centro de Saúde ou no pronto atendimento, perguntando o que vinham fazer, o que esperavam receber e como viam o serviço. 

Foi uma experiência muito rica, pois, até então, eu estava sempre do outro lado, organizando o acesso. Essas entrevistas no PAM São Jorge abriram meus olhos. A população sabia exatamente quando usar um serviço ou outro. Por exemplo, vinham ao centro de saúde para vacinas, pegar leite, ou buscar ajuda, mas, se uma criança tinha febre ou estava doente, iam direto ao pronto atendimento, sabendo que poderiam ser encaminhados para exames como raio-x se necessário. 

A população do PAM São Jorge, que não era de alta renda, sabia exatamente para que utilizar o pronto atendimento e o centro de saúde. Isso me fez perceber que “a oferta define a demanda”. A população sabe usar o serviço, é inteligente e consciente. O problema é que os serviços muitas vezes não atendem a todas as suas expectativas, o que leva à sua baixa adesão. 

No centro de saúde, procuravam claramente vacinas, leite, o suplemento Gestal ou apoio da visitadora. Quando havia um problema de saúde, recorriam ao pronto atendimento, pois sabiam que seriam atendidos a qualquer hora. No centro de saúde, com agendamento, se não estivesse agendado, não seria atendido. Essa clareza no uso dos serviços me fez compreender melhor a lógica do atendimento. 

Com base nessa experiência, fui trabalhar no Ministério da Saúde. O ministro era o professor Adib Jatene, que levou o professor Guedes e sua equipe, da qual eu fazia parte, para Brasília. Lá, assumi o cargo de diretor do Departamento de Programas da Secretaria de Assistência à Saúde (SAS) do Ministério da Saúde. Foi uma experiência curta, mas que me permitiu entender, após ter trabalhado nos níveis estadual e municipal, qual deveria ser o papel do Ministério da Saúde na viabilização de uma proposta de descentralização. Enfrentar uma estrutura técnico-burocrática funcionando com programas verticais e sistemas de informação centralizados me deu a oportunidade de repensar a gestão do SUS, onde as responsabilidades dos níveis federal, estadual e municipal precisam ser redefinidas em uma nova lógica. 

Após essa experiência federal, retornei à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, onde assumi o cargo de diretor técnico do Centro de Apoio ao Desenvolvimento das Ações Integradas de Saúde (CADAIS), responsável pelo planejamento da área técnica. O trabalho de planejamento em saúde desenvolvido tanto no Ministério da Saúde quanto no CADAIS da SES visava promover uma mudança na lógica de trabalho vigente. A proposta era que a ação política nesses níveis devesse focar na definição de diretrizes e estratégias técnicas centradas no impacto epidemiológico esperado. Em vez de trabalhar por programas, que passariam a ser atribuições do nível municipal no processo de descentralização, seria mais eficaz focar nos problemas de saúde e negociar intervenções alternativas com o nível municipal. 

Nelson Ibañez: De 1983 a 1986, você trabalhou na Assessoria de Coordenação e Vigilância Epidemiológica e Programas de Saúde (ACOVEP) …  

Oswaldo Yoshimi Tanaka: Minha participação na Secretaria Municipal de Saúde, junto com o Guedes, foi uma experiência incrível. Ele sempre foi uma pessoa muito conectada à realidade. Guedes percorria todas as unidades sem hesitar, visitava todos os locais, sem preguiça. Ele desempenhou um papel crucial no desenvolvimento do Plano Metropolitano de Saúde, assim como o próprio Barradas. 

Fiquei impressionado com a capacidade de escuta de Guedes. Ele ouvia todos: os que eram favoráveis, os contrários, a população, os políticos, sem interromper ou argumentar. Ele simplesmente escutava e procurava encaminhar as questões. Para mim, ele foi um exemplo de como uma gestão pode ser participativa e como as decisões podem ser implementadas de forma eficaz quando se tem uma participação ativa e se escuta as pessoas envolvidas. 

Ele foi, para mim, o maior exemplo de gestor em saúde. Por quê? Porque, ao longo do tempo, as coisas foram ficando cada vez mais complicadas. Os programas médicos-sanitários, que antes tinham uma grande importância, começaram a perder força. Gradualmente, esses programas foram sendo substituídos por uma abordagem mais voltada para a assistência médica, que começou a demandar outros tipos de recursos, além da simples programação e dos trabalhos de grupo. 

O que observamos foi que a assistência médica passou a exigir não só mais recursos financeiros, mas também uma infraestrutura mais robusta e uma maior capacidade de resposta às demandas de saúde da população. Essa transição foi um desafio, pois a estrutura de saúde pública, que antes era muito centrada em programas preventivos e na promoção da saúde, precisou se adaptar para atender a uma demanda crescente por cuidados médicos curativos. 

Esse período também foi marcado pela necessidade de integrar melhor os serviços de saúde, garantindo que a população tivesse acesso a um contínuo de cuidados, desde a atenção básica até o atendimento especializado. A mudança exigiu uma nova abordagem de gestão e planejamento, com foco não apenas na oferta de serviços, mas também na qualidade e na eficiência dos cuidados prestados. 

Além disso, tivemos que enfrentar desafios políticos e administrativos significativos. A mudança de governo trouxe novas prioridades e, com isso, a necessidade de redefinir estratégias e objetivos. No entanto, acredito que, graças à abordagem participativa e à capacidade de escuta do Guedes, conseguimos avançar em muitas áreas e implementar mudanças que ainda hoje são relevantes para o sistema de saúde. 

Guedes, com sua habilidade de envolver todos os atores no processo de tomada de decisão, mostrou que uma gestão eficaz não se faz apenas com diretrizes técnicas, mas também com a habilidade de ouvir, negociar e adaptar-se às necessidades da população e aos desafios do contexto político-administrativo.  

Nelson Ibañez: Com a evolução do Programa Metropolitano, houve uma reforma significativa na Secretaria com a criação dos ERSAS, que, de certa forma, descentralizaram a gestão para quase um nível distrital, com os 62 ERSAS. Como você viu essa experiência? Você participou desse processo? Como percebeu a criação dos ERSAS no final da gestão do Yunes? O que essa estrutura facilitou na implementação do modelo que você mencionou, que incorpora tanto a assistência médica quanto uma visão de saúde pública mais abrangente, considerando as necessidades individuais? 

Oswaldo Yoshimi Tanaka: Em princípio, considerei a criação dos ERSAS uma medida extremamente necessária e oportuna. Naquela época, os municípios já possuíam um certo grau de autonomia e estavam assumindo a responsabilidade pela assistência à saúde da população. Os ERSAS foram criados para melhorar a interlocução entre a Secretaria Estadual de Saúde (SES) e os municípios. 

A antiga coordenadoria era muito pesada e, infelizmente, bastante burocrática. Eu reconheço isso. Ela tendia a ser mais normativa do que estratégica, o que tornou o momento bastante complicado. A coordenadoria estava acostumada a comandar diretamente os centros de saúde, mas com a criação dos ERSAS, isso mudou. Agora, a coordenadoria precisava passar pelos ERSAS, que tinham uma pactuação regional que era mais política do que técnica, o que dificultava a implementação das normativas do CADIS (Centro de Apoio ao Desenvolvimento das Ações Integradas de Saúde). Vale lembrar que, com a nova estrutura da SES, a Coordenadoria de Saúde da Comunidade (CSC) foi extinta. 

A transição não foi fácil e nem tranquila; foi uma gestão repleta de conflitos. Naquela época, a política de saúde no Brasil estava passando por grandes transformações em todos os níveis. Por exemplo, o Conselho Consultivo de Administração de Saúde Previdenciária (CONASP) e o Programa de Ações Integradas de Saúde (PAIS), que depois evoluiu para as AIS, propunham a otimização dos serviços públicos de saúde para lidar com a crescente demanda por assistência médica. Para viabilizar essa proposta, foram criadas várias comissões de gestão: a Comissão Interministerial de Planejamento (CIPLAN), as Comissões Interinstitucionais de Saúde (CIS), as Comissões Regionais Interinstitucionais de Saúde (CRIS) e as Comissões Locais e/ou Municipais de Saúde (CLIS ou CIMS). As CIS eram compostas pelo Secretário Estadual de Saúde, pelo Superintendente Regional do INAMPS, e por representantes do Ministério da Saúde (MS) e do Ministério da Educação (MEC). 

Nesse período, o Secretário de Saúde de São Paulo, além de liderar a SES, também estava à frente da Superintendência do INAMPS em São Paulo, centralizando muito poder. Isso levou ao esvaziamento das comissões de gestão e gerou conflitos no processo de integração entre a SES e os municípios. Na minha leitura atual, a criação dos ERSAS foi mais um processo de desconcentração do que de descentralização. Foi uma tentativa de desconcentrar atividades administrativas para um nível intermediário sem, no entanto, delegar um poder de decisão efetivo. 

Nelson Ibañez: Muito boa a sua análise, Tanaka. É isso mesmo, houve uma desconcentração. Agora, vou entrar em um outro movimento que começou a emergir nesse período. Não era a maioria, mas havia um movimento que acabou desencadeando várias perspectivas do SUS, como as primeiras Normas Operacionais Básicas (NOBs) e a questão da municipalização. Como você percebeu esse momento? Estamos falando de um período em que se estavam implantando programas de assistência médica, integrando com o antigo INAMPS e as AIS, e, ao mesmo tempo, surgia uma demanda descentralizadora. Algumas secretarias municipais começaram a desenvolver processos de autonomia, e dentro do federalismo do SUS, não havia subordinação. Como você vê esse processo?  

Oswaldo Yoshimi Tanaka: As NOBs foram fundamentais para definir o processo de municipalização da saúde. Quando aplicadas plenamente, permitiram que os municípios prestassem assistência à saúde com recursos financeiros federais transferidos diretamente de fundo a fundo. Isso proporcionou autonomia na gestão dos serviços de saúde dentro de seus territórios. Os recursos foram repassados gradualmente, de acordo com a capacidade de cada município para incorporar os serviços de saúde. No entanto, esse processo variou conforme o porte dos municípios. A Secretaria Estadual de Saúde (SES) ainda manteve a gestão dos hospitais devido à sua complexidade e aos elevados custos de manutenção, algo que a maioria dos municípios não estava preparada para assumir naquela época. 

Se me permite fazer um pequeno desvio, Nelson, gostaria de compartilhar uma experiência que acredito ser relevante. De outubro de 1978 a outubro de 1979, tive a oportunidade de estudar o sistema de saúde inglês na Inglaterra. Meu orientador foi o professor John Colley, do Departamento de Epidemiologia Social da Universidade de Bristol. Ele sugeriu que minha primeira atividade fosse observar “in loco” o trabalho dos General Practitioners (GPs), que são médicos generalistas responsáveis por uma população específica. Passei três meses acompanhando o trabalho de um GP. Foi uma experiência muito interessante, pois o GP tinha que atender todos os problemas de saúde da sua população e só encaminhava os pacientes para outros níveis de atenção quando necessário. 

O GP contava com o suporte de uma enfermeira comunitária e uma parteira, contratadas pelo NHS (National Health Service), para complementar a assistência programática e domiciliar. O que é interessante é que, apesar de o GP ser um profissional autônomo e privado, seu local de trabalho era designado pelo NHS, que pagava pela população sob sua responsabilidade e por atividades definidas de prevenção à saúde. Na área geográfica do GP, trabalhavam vários profissionais que estavam sob a coordenação administrativa do distrito de saúde. A população sob os cuidados do GP era definida por um contrato formal entre o GP e o usuário, administrado pelo distrito de saúde. Esse contrato podia ser desfeito a qualquer momento, seja pelo usuário ou pelo GP. 

Essa experiência me fez entender a importância de um sistema de saúde baseado na responsabilidade territorial e na coordenação dos cuidados. A descentralização proposta pelas NOBs e o movimento de municipalização no Brasil, de certa forma, buscavam um modelo similar, onde os municípios teriam maior autonomia e responsabilidade pela saúde de suas populações. No entanto, é crucial reconhecer que, mesmo com maior autonomia, a integração entre os níveis de governo e a coordenação dos serviços são fundamentais para garantir a efetividade e a equidade do sistema de saúde. 

Nelson Ibañez: Ou seja, existe uma cultura já formada para a implementação desse modelo?  

Oswaldo Yoshimi Tanaka: Totalmente formada. Existe uma cultura bem estabelecida e um acordo mútuo na comunidade de que o atendimento pelo GP (General Practitioner) é de natureza privada, baseado em um contrato de livre escolha por parte dos usuários. Isso é muito diferente do modelo do programa de saúde da família, que está sendo implementado como porta de entrada para o SUS. Na Inglaterra, vale lembrar, todos os hospitais e ambulatórios de especialidades são regulados pelo distrito. O pedido de encaminhamento feito pelo GP é enviado ao distrito, que então viabiliza o atendimento solicitado. 

Nelson Ibañez: Então, o GP funciona como uma unidade descentralizada dentro do sistema de saúde.  

Oswaldo Yoshimi Tanaka: Exatamente, é uma unidade descentralizada. O distrito tem o poder de decisão e é quem controla o orçamento. É o distrito que gerencia todos os contratos e define a execução de programas especiais, como campanhas de vacinação ou exames de Papanicolau. O mais interessante é que cada GP pode receber de forma diferenciada, dependendo das condições socioambientais da área em que atua. Isso demonstra uma flexibilidade no sistema que permite ajustar os serviços às necessidades específicas da comunidade. 

Nelson Ibañez: Tanaka, tentando fazer um paralelo, essa experiência na Inglaterra foi marcante para você. Você enfatizou que, culturalmente, aqui no Brasil, temos uma tendência à centralização. Qual ligação você vê entre essa experiência e o desenvolvimento do Programa de Saúde da Família (PSF) aqui no Brasil, que começou com uma concepção diferente e depois se tornou uma estratégia? Como o Brasil adaptou esse conceito? Você acha que o Programa de Saúde da Família conseguiu aprimorar o nosso modelo, considerando nossa cultura centralizadora, onde o médico é funcionário público e trabalha capturando a demanda? Como você percebeu o impacto da implementação do PSF no contexto da redemocratização? Isso abriu novas perspectivas para um modelo mais próximo da população, mesmo com a característica de uma captura de demanda mais ou menos imposta? Como você vê essa adaptação no Brasil?  

Oswaldo Yoshimi Tanaka: Eu acho que isso representa um grande desafio para nós, porque iniciamos nosso sistema de uma forma bastante diferente. Curiosamente, focamos muito mais na parceria público-privada no nível hospitalar do que na atenção básica e na relação entre o paciente ou usuário e o centro de saúde. Na relação médico-paciente, temos um elo de pouca governabilidade, tanto de um lado quanto de outro. Dependemos essencialmente de capacitar e tornar o médico um profissional verdadeiramente comprometido, e não apenas um encaminhador de casos. Esse é o grande desafio, porque, no sistema inglês, essa dinâmica já está prevista no contrato entre o médico e o NHS. Aprendi que o médico é uma figura difícil de gerenciar, pois sua formação é baseada na autonomia; ele faz o que acredita ser o melhor. Isso pode dificultar a gestão, interferindo na relação médico-paciente e prejudicando a construção de uma relação de confiança e responsabilidade mútua. 

Acredito que precisamos recuperar um pouco dessa normatização para melhorar os serviços prestados. Temos uma tarefa mais complexa pela frente: construir um sistema mais integrado, utilizando plenamente todos os recursos disponíveis no território, para alcançar a efetividade na atenção à saúde. O grande desafio agora é alcançar os princípios de integralidade e equidade no SUS. 

Estamos nos movendo em direção à formação das Regiões de Saúde como o principal espaço de atuação, em vez do enfoque apenas municipal. Construir uma governança que envolva todos os interlocutores no sistema permitirá alcançar uma rede de serviços que funcione de maneira eficaz e responda às necessidades de saúde da população. A ideia é que, com uma abordagem mais regionalizada e menos centralizada, possamos atender melhor às demandas locais, promovendo um sistema de saúde mais equitativo e acessível para todos. 

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