A entrevista a seguir apresenta Irma Rossetto Passoni, ex-deputada federal por São Paulo, que exerceu três mandatos e teve uma carreira política marcada pela atuação junto a movimentos de moradores da periferia paulistana e questões de saúde pública. Irma Passoni, que também atuou como freira antes de se dedicar à política, é reconhecida por seu trabalho como administradora hospitalar e por ser uma das fundadoras do Movimento do Custo de Vida (MCV).

A entrevista foi concedida ao grupo de pesquisadores do projeto História e Saúde SP, coordenado pelo pesquisador Nelson Ibañez, do Museu Emílio Ribas. Durante a conversa, Passoni compartilha suas experiências e perspectivas sobre os desafios enfrentados durante a Constituinte e os anos que se seguiram, abordando temas como a importância da participação popular na construção das políticas públicas e a necessidade de uma democracia participativa e informada.

Este documento visa oferecer um olhar sobre o papel de Irma Passoni na política brasileira e sua visão sobre os eventos históricos que participou e testemunhou, fornecendo um contexto para as respostas detalhadas que se seguem. A entrevista é um registro valioso para aqueles interessados na história política recente do Brasil e nas contribuições individuais para a construção da democracia no país.

Em 15 de março de 2023, temos o prazer de iniciar uma entrevista com Irma Passoni, uma figura emblemática dos movimentos sociais e política brasileira. A ocasião é marcada pelo nosso projeto que visa resgatar a memória da saúde durante o processo de redemocratização do Brasil, com foco especial no estado de São Paulo. Professora Passoni, sua trajetória desde os movimentos eclesiais de base até a Assembleia Constituinte e a fundação do Instituto de Ciência e Tecnologia é inspiradora. Gostaríamos de compreender, através de suas vivências, como você percebe a interconexão entre saúde e memória histórica?

Irma Rossetto Passoni: Sou grata pela oportunidade de compartilhar minhas experiências com todos vocês e com a equipe envolvida neste projeto. Recordo-me vivamente dos eventos dos anos 70, uma época em que, como mencionado, eu estava ativamente envolvida nas comunidades eclesiais de base, organizando as comunidades nas periferias de São Paulo, especialmente na região sul e nas zonas leste e norte da cidade. 

Naquela época, testemunhei a migração interna massiva de pessoas de todo o Brasil para a área urbana em busca de trabalho, abandonando suas vidas no campo. A diferença entre o mundo rural e o urbano era abismal. Vivíamos sob um regime político profundamente ditatorial, onde qualquer forma de manifestação era vista como subversiva, sujeitando-nos ao risco de prisões e torturas. Posso citar o caso de Aurélio Pérez e de outro operário da pastoral operária, ambos presos e torturados. Essas experiências nos uniram e nos fizeram refletir sobre como poderíamos ajudar aqueles que chegavam despreparados para a realidade urbana, enfrentando desemprego e salários baixos que nunca acompanhavam a inflação.

 Neste contexto como começou o movimento pela saúde?

O movimento pela saúde começou com as mulheres, em clubes de mães e unidades de saúde comunitárias, bem como na pastoral da saúde. Juntos, começamos a pensar em estratégias para lidar com a busca por trabalho e o controle do custo de vida, o que nos levou a organizar grandes movimentos sociais. A periferia carecia de tudo, e parecia que, para além dos rios Pinheiros e Tietê, que delimitavam o centro da cidade, nós, da periferia, simplesmente não existíamos. Lembro-me de quando lutamos por infraestrutura escolar, pois não tínhamos escolas e trabalhávamos como professoras ACTs, sem vínculos empregatícios após dezembro. Graças à organização comunitária, como a do Jardim Alfredo e a liderança de Santo Dias da Silva da Vila Remo, conseguimos reunir 25 bairros com necessidade de escolas. Levamos abaixo-assinados à Assembleia Legislativa e, com a ajuda da engenheira Mayumi, conseguimos dialogar com o poder público e construir 25 escolas estaduais.

A saúde era uma necessidade urgente, pois não havia postos de saúde nem hospitais na rede da periferia. Dependíamos exclusivamente do Hospital das Clínicas e de outros hospitais públicos. Encontramos maneiras de identificar onde os hospitais deveriam ser construídos, mas enfrentamos o desafio da urbanização que não preservava áreas públicas suficientes para escolas ou hospitais.”

A falta de planejamento urbano era evidente, não havia previsão para a construção de escolas ou hospitais essenciais. No entanto, graças ao empenho de profissionais da saúde e membros dos conselhos de saúde, que começaram a surgir naquela época, foi possível dialogar com o governo para viabilizar hospitais seguindo um plano regional. Recordo-me de nossa insistência por um hospital no Campo Limpo, na região sul de São Paulo, seguido por demandas similares em Jardim Ângela, Interlagos, Itaquera, Cidade Adhemar e outras áreas.

Como a população participava dos movimentos e tratava de seus objetivos? 

Era um trabalho altruísta, movido pela visão e persistência de indivíduos comprometidos com o bem comum, sem qualquer remuneração financeira, mas com a vontade de criar estruturas públicas que atendessem às necessidades da população. Naquela época, tivemos Adib Jatene como Secretário da Saúde, que ouviu nossas reivindicações e respondeu às nossas necessidades. Embora o plano não tenha sido executado exatamente como precisávamos, iniciou-se um processo para estabelecer um sistema de saúde que atendesse às demandas da periferia, com a construção de hospitais e postos de saúde. A comunidade também começou a discutir a qualidade do atendimento em saúde que era necessário.

A luta era ampla, abrangendo desde a carestia da vida até a saúde, educação, salários e emprego. Tudo estava interligado, e compreender essa dinâmica era essencial para entender uma cidade que, até então ignorada, começava a se fazer presente com propostas concretas baseadas nas reais necessidades de sua população. Quando as políticas visam o bem comum e atendem às necessidades reais das pessoas, há um engajamento e comprometimento notável, com indivíduos participando ativamente das reivindicações, mesmo que isso signifique faltar ao trabalho.

Por exemplo, a luta pela água foi um movimento significativo. Na Zona Sul, onde eu morava próximo à represa do Guarapiranga e lecionava no alto da Riviera, enfrentávamos a ironia de ter que perfurar poços profundos para acessar água, enquanto a represa, que fornecia cerca de 40% da água para São Paulo, estava bem ao nosso lado.

Nosso empenho não se limitou apenas às necessidades imediatas; ele também impulsionou um movimento de preservação ambiental. Iniciamos um projeto de replantio de árvores ao redor da represa, enquanto lutávamos por moradia digna e saneamento básico, com a água sendo nossa prioridade inicial. Enfrentamos grandes desafios com a Sabesp da época, cuja infraestrutura de água era inadequada, resultando em canos que frequentemente estouravam ao serem utilizados.

Além disso, a proximidade dos canos de esgoto com os de água potável levava a contaminações diretas, um problema grave que exigia vigilância constante. A luta incluía desde a identificação das necessidades até a organização comunitária para garantir que o poder público compreendesse e atendesse a essas demandas, passando pela conquista da infraestrutura necessária, sua fiscalização e manutenção. Essa foi uma cadeia produtiva de conhecimento e ação, essencial para que nossas reivindicações fossem atendidas de forma completa e eficaz. Tive um papel ativo no Hospital das Clínicas, especialmente em 1978, quando fui eleita deputada estadual.

 Além dos movimentos populares como era a participação dos profissionais da saúde?

A mobilização na área da saúde era intensa, com médicos e enfermeiros participando ativamente na luta por direitos. Tínhamos aliados valiosos dentro da infraestrutura de saúde, e essa parceria entre as necessidades da população e o profissionalismo dos trabalhadores da saúde nos levou a soluções mais estruturadas e organizadas. Essas soluções foram sendo implementadas gradualmente, atendendo às necessidades de uma cidade que já era metropolitana e servia não apenas a região, mas também o Brasil e outros países da América Latina. Muitos pacientes vinham de outros países para se tratar no Hospital das Clínicas.

A consciência e a participação dos profissionais da saúde foram fundamentais para continuarmos nossa luta e para interligarmos a saúde com outras áreas importantes, como educação, custo de vida, empregos e salários. Contamos com o diálogo aberto com figuras políticas como Paulo Eugênio Martins e, posteriormente, Montoro. Até mesmo Jânio Quadros reconheceu a importância de nossas propostas, destacando que, ao contrário de muitos que traziam apenas pedidos individuais, nós chegávamos com ideias e projetos concretos.

 Quais as áreas que suscitavam outros projetos concretos ligados às condições de vida?

Nossa atuação parecia estar em sintonia com os desejos dos governos locais. Lembro-me bem de quando lutamos pela implementação de creches. Em 1978 e 1979, período em que minha filha nasceu e eu servia como deputada estadual, conseguimos estabelecer uma infraestrutura básica de creches na Assembleia Legislativa.

No entanto, havia uma necessidade generalizada de creches em todo o setor público. Retornei ao trabalho oito dias após o nascimento da minha filha, e foi nesse contexto que apresentamos a proposta de creches ao prefeito Reinaldo de Barros.

Ele recebeu bem a ideia, e conseguimos estabelecer 300 creches. Além disso, naquela localidade, conquistamos 25 escolas estaduais. Com o tempo, também alcançamos a implementação de uma rede de água e esgoto, apesar da resistência inicial da Sabesp. Em nossa última visita à companhia, levamos 40 ônibus cheios de pessoas reivindicando acesso à água.

A construção das escolas também levantou questões importantes. As pessoas perguntavam: ‘Vocês constroem escolas, mas como podemos garantir a qualidade da educação? Como acompanhar a metodologia de ensino?’

A qualidade da merenda escolar era outro ponto crítico. Era tão ruim que nem os animais a consumiriam. Durante meu mandato como deputada, levei essa questão para a Assembleia Legislativa. Num momento de intervalo, quando os deputados se reuniam para o lanche, apresentei a merenda escolar para que experimentassem o que estava sendo servido às crianças nas escolas. Esse ato foi documentado e acredito que possa ser encontrado nos arquivos da Folha de São Paulo.

Enfrentávamos o grande desafio da ditadura militar, uma estrutura opressora que priorizava o pagamento da dívida externa e via a população como inimiga do Estado. Em 1978, iniciamos grandes manifestações, pois nossa metodologia sempre foi trabalhar nas comunidades, nos clubes de mães, na alfabetização de adultos e na pastoral operária, promovendo a organização, consciência e participação popular.

Você atuou nas organizações ligadas às comunidades eclesiais de base. Como foi o envolvimento da Igreja na repressão do movimento? 

Durante a assembleia no Colégio Santa Maria, e posteriormente na Praça da Sé em 20 de agosto de 1978, enfrentamos uma repressão violenta. Nesse contexto, Dom Paulo Evaristo Arns emergiu como um aliado crucial. Ele compreendia a importância das comunidades e nos apoiava, promovendo uma participação inclusiva que transcendia barreiras religiosas.

Dom Paulo nos acolheu na catedral após a repressão na Praça da Sé e enfatizou o papel da igreja não como um vínculo do Estado, mas como um parceiro no diálogo com este. Ele exemplificou essa missão ao visitar o presídio Tiradentes para ver Frei Betto e outros presos políticos, insistindo em sua entrada apesar das objeções. Sua determinação em representar a população e garantir o bem-estar dos detidos refletiu o respeito pela independência do poder executivo e a separação entre Estado e igreja, reafirmando o papel histórico da igreja como mediadora.

Nossa luta não era por aliança com o poder, mas por um diálogo aberto para solucionar os problemas. Tudo aconteceu simultaneamente: a luta por postos de saúde, transporte, escolas, hospitais, água e habitação. A ocupação da fazenda Itupu, próxima à represa do Guarapiranga, é um exemplo marcante. A fazenda, pertencente ao INSS, foi rapidamente ocupada por mais de 5 mil pessoas em busca de moradia.

Naquele momento crítico, com minha filha recém-nascida e a ameaça de repressão iminente, aconselhamos a população a se organizar formalmente para reivindicar habitação popular. Foi um período em que o diálogo entre movimentos sociais, autoridades municipais e estaduais, e instituições religiosas, incluindo a igreja católica e outras, foi essencial.

Havia uma figura importante, um membro da comunidade judaica, que se juntou a nós nessa causa. Esse período foi extremamente valioso para compreender a natureza da ditadura, que promove violência, prisões e torturas, afetando a saúde mental da população. Foi um tempo de construção e acolhimento, não só em São Paulo, mas em todo o país, onde participei ativamente na luta pela terra e pela reforma agrária. Movimentos como o da Fazenda Primavera, em Lins e Andradina, onde a luta pela ocupação já durava 25 anos, foram fundamentais nesse processo.

Em Itapeva e Itupeva, enfrentávamos o desafio de legalizar terras, e no Vale do Ribeira, juntamente com os deputados Rescki e Lara, lutávamos contra crimes e violências associadas a fazendas como a Filde, em Miracatu, e contra o abandono dos quilombolas da região.

A ocupação das praias paulistas também era uma preocupação. Lara, representante da Baixada Santista, destacou a necessidade de examinar a questão das terras litorâneas e dos pescadores tradicionais, enfatizando a defesa de uma ocupação racional que preservasse a vegetação e a Mata Atlântica. Na Ilha do Cardoso, tivemos o padre João Trinta como um defensor fervoroso da área de preservação ambiental, um local que merecia proteção especial.

Quero ressaltar que a saúde sempre esteve intrinsecamente ligada a esses movimentos. A saúde se conectava com o meio ambiente, com as condições de trabalho e desemprego, com a saúde das mulheres e crianças, e com a qualidade das escolas.

Essa interconexão era evidente, e nos uníamos naturalmente para identificar problemas e buscar soluções organizadas, resultando em serviços e produtos que atendessem verdadeiramente às necessidades da população.

À medida que o movimento ganhava força, ele agregava mais participantes e expandia sua influência política, formando uma frente unificada contra a ditadura e em apoio aos movimentos sociais. A senhora mencionou os profissionais da saúde, que, com a formação de turmas de sanitaristas em 1975, foram fundamentais para estabelecer um diálogo com a estrutura do Estado. Gostaria que a senhora delineasse um panorama dessa frente que se formou a partir dos movimentos sociais e que, talvez, tenha contribuído para a eleição do primeiro governador progressista de São Paulo em 1982, marcando um avanço na luta antiditatorial.

IRP: Professor, o senhor recorda com precisão os eventos daquela época. A abordagem sanitarista da medicina estava intrinsecamente ligada às necessidades reais da sociedade. Essa perspectiva dos serviços médicos foi crucial para nós.

De fato, 1982 foi um ano eleitoral significativo, marcado pela campanha ‘Diretas Já’. Enfrentamos o confronto entre o governador nomeado e a luta por eleições diretas. Nós, das comunidades, apoiamos parlamentares em exercício que pudessem representar nossos interesses. Em 1986, durante as eleições municipais, houve um esforço coletivo para eleger vereadores que refletissem nossas necessidades. Goldman foi um dos apoiados por nós em 1982.

Em 1986, as comunidades se questionaram: por que não eleger alguém de nosso meio como candidato? Esse questionamento levou ao desenvolvimento da consciência política e institucional, e fui escolhida por mais de 60 entidades sociais para concorrer como deputada estadual. Aurélio Pérez, um militante sindical e membro das comunidades de base, foi nosso candidato a deputado federal.

Ele estava profundamente envolvido com o plano de saúde local, especialmente com o primeiro posto de saúde ampliado, que serviu à população próxima ao Jardim Alfredo. Sua esposa, Conceição, lutou incansavelmente pela saúde, assim como o SOF, Serviço de Orientação da Família, em Santo Amaro, que foi de grande auxílio.

Essas ações mostraram às pessoas que nossa realidade não era fruto do acaso, mas resultado de políticas estatais e do controle dos recursos públicos que negligenciavam as necessidades da população. O movimento sindical e as greves denunciaram o sistema econômico vigente.

A campanha do custo de vida coletou 1,4 milhão de assinaturas, entregues ao presidente Figueiredo, que, embora não nos tenha recebido, representou um movimento significativo em todo o Brasil. Freitas Nobre, deputado do MDB, leu a ‘Carta das Mães’ no Congresso Nacional, um documento que utilizamos para mobilizar a população, questionar o custo de vida, o arrocho salarial e reivindicar a reforma agrária. Sua ação teve grande repercussão e inspirou políticos em todo o país. Assim, o movimento pelo custo de vida tornou-se um catalisador para o debate sobre o sistema econômico e político brasileiro, em um contexto de repressão e medo, que era combatido pela força da organização popular e pelo apoio incondicional da participação popular.

Olhando para trás, questionamos qual era a força que nos impulsionava a nos mobilizar. Era a energia de uma classe social intelectualmente preparada, incluindo médicos, professores da USP, arquitetos e outros profissionais, que contava com o apoio da classe média alta. Lembro-me do apoio da Metal Leve e de seu proprietário, assim como de muitos empresários que passaram a compreender a importância da democracia no Brasil.

A democracia que buscávamos, fundamentada nas ‘Diretas Já’, no direito ao voto livre e na eleição direta, além da anistia para os presos políticos, não se apoiava apenas no meu mandato. Tínhamos aliados como Suplicy, Marco Antônio, Marco Aurélio e outros cinco parlamentares eleitos pela área popular.

 À época o partido existente era o MDB como foi a relação deste com o movimento?

Apesar da resistência inicial do MDB em nos conceder a legenda, o movimento popular garantiu a eleição desses candidatos. Quércia duvidava, acreditando que lançar cinco candidatos resultaria em nenhum eleito, mas todos nós fomos eleitos. Atuamos constantemente ao lado dos movimentos de saúde, sindicais e populares, desmascarando o sistema econômico. A famosa frase de Delfim Neto e Ernane Galveias, ‘fazemos o bolo crescer para depois distribuir’, era conhecida por nós como uma promessa vazia, pois enquanto o ‘bolo’ crescia, a dívida externa e os juros também aumentavam. Descobri em meus registros o momento em que o governo parou de pagar a dívida externa, um marco na luta econômica para proteger nossos recursos.

Esse período é lembrado com prazer, pois representou uma democracia participativa efetiva, onde as consequências pessoais eram secundárias em relação aos benefícios públicos que estávamos criando. Foi um dos movimentos mais belos da história, na minha opinião. O direito ao voto das mulheres, por exemplo, foi significativo. Eu, Teodosina Ribeiro e Nudeci Nogueira fomos três mulheres eleitas entre 1978 e 1982. No entanto, enfrentamos resistência no parlamento, onde alguns deputados não queriam permitir a entrada da população para reivindicar direitos.

Quando entrei na Assembleia, fiz questão de levar a participação popular, pois eles tinham o direito de estar presentes no Poder Legislativo, além das eleições. Esse foi um grande avanço.

A resultante desses movimentos acabaram desembocar na constituinte. Como foi sua participação? 

O processo de superação da ditadura foi como um despertar da cidadania brasileira, uma afirmação de que o país nos pertence e temos o direito de lutar por ele. Foi como se tivéssemos cultivado um grande campo, onde as sementes plantadas durante esse período germinaram, floresceram e frutificaram. Esses frutos representam a cidadania que exige leis maiores em uma Constituição, o que nos levou à Constituinte.

A Constituinte foi outro movimento extraordinário. Participei de várias comissões, como a Comissão Econômica, que discutia questões como a Petrobras. Eduardo Jorge, um médico, trabalhou intensamente na área da saúde e contribuiu com estudos e subsídios para o sistema SUS, que conseguimos incluir na Constituição.

Considerando o contexto da Assembleia Constituinte e a não majoritária frente parlamentar de centro-esquerda, que estratégias foram adotadas para negociar com as forças centristas e garantir a aprovação unânime do Sistema Único de Saúde (SUS)? 

Poderia detalhar o papel dos movimentos populares e a influência de figuras centrais, como Inocêncio de Oliveira, na superação dos desafios impostos pela composição do ‘centrão’? E como esses esforços se alinharam à entrada na fase da Constituinte?

IRP: Quando você pergunta sobre a articulação política necessária para a aprovação do SUS, é importante lembrar que, apesar de a frente parlamentar de centro-esquerda não ser majoritária, ela precisava negociar com diferentes grupos, incluindo o centrão. A aprovação unânime do SUS foi um feito notável, que exigiu o apoio e a mobilização dos movimentos populares para superar a resistência do centrão, que incluía figuras como Inocência de Oliveira.

Eu destaco o papel crucial do deputado Eduardo Jorge na batalha pelo SUS e lembro que o movimento social da época era intenso e participativo, envolvendo milhões de pessoas e diversas entidades civis. Essa mobilização garantiu que as minorias conscientes da necessidade de políticas públicas de saúde e educação fossem ouvidas e suas demandas atendidas.

A presença e participação efetiva de mulheres na Constituinte, incluindo as 23 eleitas entre os 513 parlamentares constituintes, também foram fundamentais para o debate e a formulação de políticas de saúde, educação e direitos das mulheres. Eu menciono a comunicação intensa com a população durante esse período, que ajudou a informar a sociedade sobre os debates e a escrever a Constituição.

Eu também abordo os desafios enfrentados, como a questão do Hospital Sarah Kubitschek, que dependia do dinheiro público, mas tinha uma gestão privada. Eduardo Jorge expressou preocupações de que poderíamos perder o SUS se não fizéssemos concessões para incluir alguns sistemas de saúde privados complementares à saúde pública. Portanto, fizemos algumas exceções para garantir a inclusão do SUS na Constituição.

Espero que essa reflexão ajude a esclarecer um pouco mais sobre o processo complexo e colaborativo que levou à criação do SUS e à sua inclusão na Constituição Brasileira.

Pode ser que Inocêncio tenha conseguido avanços significativos na área da saúde em sua região, Pernambuco. Outros médicos que eram deputados federais também contribuíram, mas foi a nossa dinâmica participativa, o diálogo aberto e incansável, que nos permitiu superar muitos obstáculos e vencer várias propostas.

A assessoria do presidente Ulisses Guimarães e a competência jurídica do relator da Constituinte foram fundamentais. Eles ouviram nossas propostas e foram, de certa forma, fiéis às demandas da sociedade. Claro, enfrentamos resistência dos sindicatos e dos trabalhadores, mas as conquistas para os trabalhadores foram significativas.

Houve até um momento em que a bancada do PT optou por não assinar a Constituição, mas eu e Eduardo Jorge assinamos. Por quê? Porque víamos que a Constituição representava o possível, que era soberana e continha muitas conquistas importantes, todas apoiadas pela organização da sociedade.

As resistências eram reais, e momentos cruciais surgiram, como na Comissão Econômica, onde debatemos intensamente sobre a manutenção da Petrobras como empresa pública ou privada, o controle sobre os minérios e o problema da dívida externa. Cada comissão enfrentou seus próprios desafios. Acredito que tínhamos políticos que, embora nem todos estivessem profundamente envolvidos na política anteriormente, possuíam visões competentes de suas áreas de atuação.

O quadro parlamentar da época era intelectualmente robusto e comprometido com a garantia da democracia de forma coletiva e ampla, o que sustentou o conteúdo da Constituição. Defendo veementemente a Constituição brasileira. Faço questão de relê-la diariamente e acredito que todos deveríamos revisitar suas frases e direitos regularmente, especialmente as cláusulas pétreas, que são imutáveis.

É essencial conhecermos profundamente o que diz nossa Constituição.

Para esclarecer a postura do movimento sindical durante a elaboração da Constituição, em relação às divergências com outras forças políticas sobre manutenção de privilégios versus avanços cívicos, e entender a decisão do PT de não assinar a Constituição em contraste com a posição de assinatura e visão de avanço compartilhada por você e Eduardo Jorge, poderia detalhar o contexto e as percepções sobre essas decisões?

IRP: Durante esse período, o movimento sindical se fortaleceu com grandes greves e assembleias, e foi essa articulação que nos permitiu assegurar os direitos dos trabalhadores na Constituição. Embora eu não me recorde de todos os detalhes, sei que a questão das estatais foi um ponto crítico. Os trabalhadores se perguntavam sobre seu futuro em meio a mudanças tecnológicas significativas.

Professores e analistas apontam que cada evolução na infraestrutura de comunicação — da escrita ao correio, do telégrafo ao rádio, e agora à TV e à internet — desencadeia transformações profundas em todas as áreas, inclusive no trabalho. Nas greves, especialmente na zona sul de São Paulo, onde quase duas mil empresas, como a Caterpillar, estavam localizadas, enfrentávamos um dilema. A Atlas, fabricante de elevadores, por exemplo, argumentava que não podia inovar na automação industrial com trabalhadores acostumados apenas com ferramentas manuais.

A solução proposta era desmontar a estrutura existente e transferi-la para uma nova planta adaptada à automação. Esse debate levantou a questão de como garantir empregos para os desempregados. A pastoral operária, incluindo um operário chamado Nelson e o Santo Dias, defendia o investimento na capacitação dos trabalhadores, insistindo que eram capazes de aprender e se adaptar à nova realidade industrial.

Infelizmente, fomos superados por uma grande greve que resultou em tragédia. Santos Dias da Silva foi morto pela polícia do estado de São Paulo durante a greve em frente à fábrica Silvânia, em Santo Amaro, e muitos operários foram presos e torturados. Ficou claro que, apesar de nossos esforços, não conseguimos alcançar todas as conquistas desejadas junto aos empresários. 

Naquela época, houve uma preferência por transferir às empresas para o interior, para cidades como Campinas, Sumaré e Hortolândia, que se tornaram sedes de grandes indústrias. Isso levantou um debate crucial sobre nossa relação com a tecnologia: éramos dependentes ou poderíamos ser autônomos e soberanos no desenvolvimento tecnológico? A questão era complexa, especialmente considerando que muitos brasileiros não tinham a preparação intelectual e tecnológica necessária para se integrar ao novo processo de automação. Hoje, vemos um paralelo com a inteligência artificial, onde esse desafio se repete.

Como você enxerga hoje o desafio de incluir a inovação tecnológica na agenda prioritária para os movimentos populares?

No parlamento, a deputada Cristina Tavares, do MDB autêntico, liderou uma articulação progressista e teve um papel importante na questão da informática. Naquela época, o desafio era produzir supercomputadores, algo além de nossa competência, e a tendência mundial era a transição para microcomputadores.

Tivemos debates intensos sobre telecomunicações também. Em Campinas, participei de uma articulação significativa, onde destaco o doutor Rogério Siqueira Leite, uma figura importantíssima na história. O CPQD era uma empresa de ponta no desenvolvimento tecnológico das telecomunicações, e tínhamos empresas desenvolvendo fibra ótica. A telefonia no Brasil estava em expansão: de 8 milhões de acessos, saltamos para mais de 500 milhões. Havia quem duvidasse da nossa capacidade de desenvolver tecnologia, e por isso realizávamos visitas internacionais para entender melhor como funcionavam os avanços tecnológicos.

Os laboratórios de Denver e Atlanta, por exemplo, eram referências que antecipavam as mudanças tecnológicas. Aprendemos muito com eles. No entanto, essa aprendizagem implicava participação, debate, pesquisa e conhecimento, recursos que nem sempre estavam disponíveis para o PT, que enfrentava desafios como a defesa dos direitos dos trabalhadores e o combate ao arrocho salarial.

Junto com outros parlamentares, como Eduardo Jorge, conseguimos nos aliar à SBPC, Sociedade Brasileira pela Ciência e Tecnologia, e a outras associações e fóruns temáticos, o que nos permitiu avançar significativamente. Até mesmo surpreendemos alguns parlamentares que estavam perplexos com as rápidas mudanças da época. Acredito firmemente que a esquerda precisa se preparar e estudar intensamente para superar os desafios; caso contrário, será sempre superada pela minoria que detém o poder econômico e ignora as necessidades da maioria.

O grande desafio de hoje, semelhante ao enfrentado pela Constituinte com a automação e agora com a Inteligência Artificial, é compreender e adaptar-se às mudanças tecnológicas. Após a Constituinte, em 1992 e 1993, realizamos a CPMI para investigar as causas do atraso científico-tecnológico do Brasil em educação, pesquisa e extensão. Ouvimos todos os setores envolvidos, e quando unimos conhecimento e força, somos capazes de resolver problemas complexos.

Identificamos várias áreas estratégicas para investimento, incluindo o setor farmacêutico. Naquela época, enquanto presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia e Comunicação Informática, recebemos uma lei em inglês, também enviada à Argentina, sobre patentes. A SBPC foi consultada para entendermos como lidar com essa legislação, que era crucial para definir os direitos sobre produtos e processos. Se patentearmos o processo de fabricação, podemos destruir uma indústria inteira. Portanto, compreender a lei de patentes em termos de processos de produção é essencial para garantir a capacidade de fabricar, produzir e acessar conhecimento, permitindo que esse conhecimento gere novos produtos.

Uma sociedade inteligente é aquela que evolui constantemente. Os processos são fundamentais, muitas vezes até mais do que os próprios produtos. Visitamos todas as áreas relevantes e fizemos recomendações para cada uma delas. Destaco a contribuição de duas pessoas em particular, o deputado Ariosto Landa, do Ceará, e o deputado Magalhães Teixeira, de Campinas, que foram de grande ajuda nesse processo.

Compreendemos profundamente o processo e atuamos para demonstrar que um Brasil estratégico para o crescimento era aquele que reconhecia as questões estratégicas de desenvolvimento nacional. Isso foi de suma importância, embora tenha tido pouca repercussão devido ao momento político da cassação do Collor.

Parece que, no Brasil, grandes crises desencadeiam inovações. As crises não são apenas políticas; às vezes, são tecnológicas ou resultam de sistemas de governo autoritários. Mas essas crises podem ser usadas para desviar a atenção de tarefas importantes, como a necessidade de regulamentar milhares de itens após a Constituição. Teimosamente, com o Covas na presidência da CPMI das Causas do Atraso e eu como relatora, e com a assessoria competente do Senado, apresentamos um relatório com 47 recomendações. Não ditamos ações específicas, mas enfatizamos que o desenvolvimento de qualquer setor requer uma visão eclética, considerando leis, executores, financiamento, pesquisa, desenvolvimento e usuários. A política é complexa e exige inteligência.

Como diz um livro que aprecio da Mantum, para falar por uma hora, é necessário estudar por cem horas, para transmitir conhecimento próprio, e não apenas o que outros contam. Desenvolver cidadãos capazes de pensar e compreender autonomamente é essencial, especialmente em um momento em que são bombardeados por influências externas que não revelam suas verdadeiras intenções, que é a concentração de riqueza nas mãos de poucos.

A dinâmica política na Constituinte foi uma trincheira de debates e discussões intensas. Algumas questões foram resolvidas, outras não, mas acredito que deixamos nossa marca. Ontem à noite, por exemplo, participei de um evento em Vinhedo, onde fui homenageada pela população de uma maneira que jamais imaginei. Quando anunciaram minha presença como constituinte, senti-me extremamente valorizada por eles. Isso mostra que a população ainda se interessa pela Constituinte, pelas leis e regras. Não desejamos um país dividido como resultado de um governo irresponsável, com o qual convivi, que é o ex-presidente da República, despreparado e condicionado, incapaz de compreender uma nação, mas apenas os interesses familiares.

 Para finalizar, como você entende hoje a luta democrática?

Diante das eleições municipais deste ano, é crucial que dialoguemos intensamente com as pessoas, oferecendo-lhes confiança para superarem o medo e o terror impostos por certos segmentos da sociedade, incluindo algumas igrejas evangélicas. A tarefa que temos hoje é tão grandiosa e exaustiva quanto foi a luta contra a ditadura do passado e a coragem de um pequeno grupo que prevaleceu graças à reação ao 8 de janeiro do ano anterior. O maior feito da sociedade recente foi evitar um golpe de Estado.

Isso já justifica o mandato do Lula, pois democracia significa direito à sobrevivência. Mas uma democracia precisa ser participativa, como o foi o movimento social histórico do Brasil, onde tudo é alcançado pela mobilização cidadã. A política e o futuro do Brasil dependem de todos nós, e nós dependemos de um Brasil que nos reconheça como cidadãos.

Compreender as leis, praticá-las, vigiá-las e garantir sua execução e fiscalização é essencial para evitar o uso indevido dos recursos públicos. Por exemplo, meu pai contribuiu para a fundação da Petrobras com a compra de selos na década de 1940 e 1950, uma iniciativa nacional. Ainda possuo esse selo. Portanto, a Petrobras pertence a todos nós, não apenas constitucionalmente, mas porque pessoas como meus pais ajudaram a construí-la. Somos acionistas naturais, enquanto os acionistas de mercado se beneficiam dos resultados.

Quem realmente ajudou a construir a Petrobras? Os pesquisadores, os desenvolvedores e todos aqueles que contribuíram com o dinheiro público. A Petrobras é nossa, pertence a todos nós. Como instrumento de uma empresa poderosa que auxilia no desenvolvimento do país, é claro que deve operar com competência, seriedade e integridade.

O Brasil possui competência e ética. Embora às vezes seja abalado pela corrupção, é dever de nós, cidadãos, reconhecer que o país depende de nossa atuação.

Nosso grande poder é o voto, um voto autônomo e livre do medo. Digo isso especialmente às pessoas mais humildes, pois a população muitas vezes é vencida pelo medo, pela miséria, pelo desemprego e pela fome. Por isso, as políticas sociais são fundamentais para garantir autonomia e uma democracia duradoura.

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