Quando: 8 de maio de 2024
Local da Entrevista: Ambiente virtual
José da Rocha Carvalheiro é uma figura central na saúde pública brasileira. Médico formado pela Faculdade de Medicina da USP em 1961, Carvalheiro desenvolveu uma notável carreira acadêmica e profissional, destacando-se na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Lá, obteve doutorado em Parasitologia e tornou-se professor titular de Medicina Social. Sua trajetória inclui importantes contribuições na epidemiologia e saúde coletiva, especialmente durante seu período como diretor do Instituto de Saúde e na criação do Sistema Nacional de Imunizações no Brasil.
Em entrevista a Nelson Ibañez, para o projeto “História e Saúde em São Paulo: instituições, atores e ideias”, Carvalheiro discute sua experiência e as transformações que testemunhou e implementou no setor. Ele descreve a estrutura inovadora dos centros de saúde criados por Walter Leser, a revolução na saúde mental com o fim dos manicômios e a inclusão de psicólogos na rede de saúde. Além disso, destaca sua participação na resposta à epidemia de AIDS e a criação do Disque-AIDS, uma iniciativa pioneira no país.
Carvalheiro também aborda sua atuação política, desde a militância no Partido Socialista Brasileiro até seu envolvimento na coordenação da Secretaria da Saúde de São Paulo durante a gestão de Franco Montoro. Ele relata a implementação do Sistema de Informações de Mortalidade, uma ação que padronizou os atestados de óbito no Brasil, e a criação de um núcleo de informática no Ministério da Saúde, essencial para a gestão de dados epidemiológicos.
A entrevista revela a visão ampla e integrada de Carvalheiro sobre saúde pública, sempre alinhada às necessidades e desafios contemporâneos. Sua abordagem interdisciplinar e sua capacidade de mobilizar recursos e políticas reforçam seu legado como um dos principais arquitetos do sistema de saúde brasileiro.
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Nelson Ibañez: Professor Carvalheiro, é um prazer tê-lo aqui no projeto “Trajetória do SUS”. Gostaria que começasse falando sobre sua trajetória profissional e como foi sua atuação no campo da saúde pública.
José da Rocha Carvalheiro: Bom, eu sou médico formado em 1961, na Faculdade de Medicina da USP. No primeiro ano após a graduação, exerci clínica em diversos lugares, sempre de uma maneira muito amadora. Durante o curso de medicina, eu me sustentava dando aulas em um cursinho preparatório. Fui professor de Física no Cursinho Brigadeiro, que na época era o maior cursinho para candidatos ao vestibular de Medicina. Passava a maior parte do meu tempo dando aulas, pois esse era meu principal meio de sustento.
Minha primeira profissão, contudo, foi como caixeiro de bar no estabelecimento do meu pai, na Rua Silva Bueno, no Ipiranga. Lá, eu fazia café expresso e caipirinhas, servindo principalmente os trabalhadores da Cerâmica São Caetano que frequentavam o bar. Durante uma reunião em Havana, cheguei a preparar caipirinhas e até brincavam que fiz caipirinha para Fidel Castro, mas minha clientela principal era os trabalhadores que paravam seus caminhões na frente do bar para tomar um “martelo” – um grande copo de caipirinha.
Após me formar, trabalhei rapidamente em alguns hospitais, inclusive um de psiquiatria, mas isso foi algo muito breve. Durante esse período, junto com Nelson Rodrigues dos Santos, auxiliávamos Samuel Pessoa, renomado professor de Parasitologia, que nos envolvia em seminários e atividades acadêmicas no Instituto de Medicina Tropical. Em 1963, fui indicado por Samuel Pessoa para ser professor de Parasitologia na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.
Assim, considero que minha verdadeira carreira na área da saúde começou em 1963, quando fui para Ribeirão Preto como instrutor – na época não havia uma carreira estruturada como hoje. Comecei a trabalhar com o professor Mauro Barreto e Astolfo Ferraz de Siqueira, que orientou minha tese de doutorado. Nesse período, em vez de pós-graduação, íamos direto para o doutorado, e Astolfo foi fundamental nesse processo, sendo assistente do catedrático Mauro Barreto.
Nelson: Só um comentário. A Faculdade de Ribeirão foi criada em que ano, mais ou menos? Eu sei que Sorocaba é em 1951, e acho que é a segunda ou terceira faculdade do interior.
Carvalheiro: Ela é a primeira do interior. Na verdade, a faculdade foi planejada durante uma reunião em Vinha del Mar, onde Pedreira de Freitas e Zeferino Vaz estavam presentes. A ideia era criar uma faculdade de medicina fora de uma capital, fora de uma grande metrópole. Foi nesse encontro que Pedreira de Freitas concordou em colaborar com Zeferino Vaz na criação da faculdade em Ribeirão Preto, desde que pudesse implementar um departamento próprio.
Pedreira de Freitas estava em Vinha del Mar, um marco importante para a saúde pública, pois ali foram definidas a História Natural da Doença e os Níveis de Prevenção, que organizaram a saúde nas Américas. Ele condicionou sua participação na faculdade em Ribeirão Preto à criação de um departamento. Na minha formação na Faculdade de Medicina da USP, nós não tínhamos aulas de epidemiologia e estatística médica. Estatística médica, então, nem pensar.
Eu me lembro que tivemos aulas de estatística aos sábados à tarde, ministradas por Paulo Emílio Vanzolini, diretor do Museu de Zoologia e compositor famoso. Essas aulas eram muito básicas, mas foram importantes. Quando fui para Ribeirão Preto, me aproximei do departamento de Medicina Preventiva, dirigido por Mauro Barreto, e do professor de estatística, Geraldão.
Foi em Ribeirão Preto que minha carreira realmente começou a tomar forma, em 1963, quando fui indicado pelo professor Samuel Pessoa para ser professor de Parasitologia. Trabalhei com Mauro Barreto e Astolfo Ferraz de Siqueira, meu orientador de doutorado. Minha tese foi sobre a biologia do barbeiro, vetor da doença de Chagas, um estudo extenso que durou mil dias. Durante esse período, comecei a me interessar por modelos matemáticos de doenças, inspirado pelo trabalho de George MacDonald no estudo da malária.
Com uma bolsa da Organização Mundial da Saúde, fui para Londres, onde esperava trabalhar com MacDonald. Infelizmente, ele havia falecido, e acabei estudando a repelência de mosquitos no Ross Institute. No entanto, aproveitei a oportunidade para fazer um curso combinado de epidemiologia e estatística médica na London School of Hygiene and Tropical Medicine, o que foi crucial para minha formação como epidemiologista.
Ao retornar ao Brasil, encontrei a USP passando por uma grande reestruturação, com a criação de departamentos e a extinção das cátedras. Isso me permitiu integrar o departamento de Medicina Social, onde continuei minha carreira acadêmica e concluí minha livre-docência. Minha formação e experiência em Londres me permitiram trazer novas perspectivas e metodologias para a saúde pública no Brasil.
Nelson: Isso foi em que ano, quando você voltou para o Brasil?
Carvalheiro: Isso foi em 1963, talvez 1964 ou 1965, nos anos 60. Durante minha estadia de um ano e meio em Londres, houve um terremoto institucional na USP. Extinguiram a cátedra e criaram departamentos, além de estabelecerem uma carreira estruturada que não existia antes. Introduziram os níveis MS 1 a 6, com o titular no nível 6 e o adjunto no nível 5. Essa mudança permitiu que a chefia de departamento pudesse ser ocupada tanto por associados quanto por titulares, eleitos pelo conjunto de professores com mandato.
A USP sofreu uma reestruturação significativa, como uma cidade se reorganizando após uma inundação. Todos os professores tiveram a liberdade de escolher onde queriam atuar, resultando em um rearranjo geral. Eu tinha ido para Londres como parasitologista de laboratório e voltei como epidemiologista com diploma. Então, fui para o departamento de Medicina Preventiva, liderado por Pedreira de Freitas.
Naquele momento, houve uma mudança no nome do departamento para Medicina Social. Isso aconteceu porque, para se criar um departamento, era necessário ter uma massa crítica de professores. A Medicina Legal, com apenas um professor, não tinha como formar um departamento independente, então foi incorporada ao que seria o departamento de Medicina Preventiva, e, por isso, mudamos o nome para Medicina Social. Essa mudança não foi fruto de uma discussão profunda sobre determinantes sociais, mas uma necessidade administrativa.
Voltei para o Brasil em 1971, com o diploma de epidemiologista. Continuei minha carreira acadêmica, fazendo minha livre-docência. Durante meu tempo na parasitologia, eu já realizava entrevistas domiciliares para levantamento de exames de fezes. Isso me levou a me interessar por estudos epidemiológicos domiciliares. Descobri o programa “Healthy People” dos Estados Unidos, que faz amostras domiciliares periódicas para acompanhar a saúde da população. Adaptei esse modelo para Ribeirão Preto, realizando amostras quinzenais em 380 domicílios, e isso tornou-se meu trabalho principal. Essa metodologia foi a base da minha tese de livre-docência, já como professor de Medicina Social.
Nelson: Só um parêntese. Isso é um inquérito domiciliar e epidemiológico. Você fez isso na região de Ribeirão Preto? Durante vários anos, qual foi a ligação com os serviços municipais ou com o secretário estadual? Quando isso começou?
Carvalheiro: Na minha tese de livre-docência, eu me queixo que nunca me levaram a sério. Nem em Ribeirão Preto, nem na região, nem a Área 5 da Secretaria da Saúde. Apesar de minhas insistências e ofertas de colaboração, a única coisa que me pediram foi um levantamento de prévia eleitoral na minha amostra, solicitado por um jornalista do Jornal Diário, que depois foi candidato a prefeito. Eu tentei vender meu trabalho na Secretaria de Saúde em São Paulo, na Regional de Saúde em Ribeirão Preto, em todos os lugares possíveis, mas ninguém se interessou.
O meu trabalho de inquérito domiciliar ficou restrito a interpretações próprias sobre os dados coletados. Entretanto, esse processo contínuo de amostragem domiciliar permitiu que alguns colegas do departamento utilizassem os dados. Por exemplo, Rufino fez um estudo de tuberculose e minha ex-mulher Clarice também usou a amostra em suas pesquisas. Tentei implementar essa metodologia para diferentes investigações, mas não teve o impacto esperado nas esferas municipais ou estaduais.
Nelson: Montou um esquema em que pudesse, talvez, usando essa mesma amostra, fazer vários tipos de investigação?
Carvalheiro: Exatamente. Essa ideia veio da minha experiência em Londres, no Hospital São Tomás, onde se criou a Associação Internacional de Epidemiologia. Lá, em Lambeth North, eles usavam uma metodologia similar, colocando à disposição dos professores de clínica amostras para investigações domiciliárias. Adaptei esse modelo em Ribeirão Preto, onde fazíamos exames de fezes e estudos epidemiológicos.
Em Londres, essa abordagem gerava uma produção científica considerável, similar ao que fazíamos com Mauro Barreto em Ribeirão Preto, na parasitologia. Tentamos replicar essa produtividade científica oferecendo amostras para diversos colegas. Conseguimos fazer alguns trabalhos, especialmente com Rufino e Clarice, mas não atingimos o impacto que eu esperava na utilização ampla da amostragem para diferentes investigações clínicas e epidemiológicas.
Nelson: Carvalheiro, vamos mudar um pouco de assunto. Vamos falar sobre sua atuação política durante o período de redemocratização e como isso influenciou sua trajetória na medicina social. Você teve alguma atuação política que o levou à gestão de João Yunes na Secretaria?
Carvalheiro: Claro, posso antecipar um pouco. Minha atuação política começou ainda no ensino médio, influenciado pelo professor de História chamado Jesus, que nos entusiasmava com a tramitação da lei que criou a Petrobras, conhecida pelo lema “O Petróleo é Nosso”. Frequentávamos a Praça da Sé em São Paulo, um ambiente de intensa discussão política nos anos 1950.
Muitos dos meus colegas da Praça da Sé foram para a Faculdade de Filosofia, enquanto eu fui para a Faculdade de Medicina. A partir dessas discussões, nos filiamos ao Partido Socialista Brasileiro (PSB). A sede do PSB ficava na Rua Tabatinguera, perto da Praça João Mendes. Desde então, fui um militante ativo do PSB, inclusive durante a faculdade, onde cheguei a ser membro da Comissão Nacional do partido.
Durante a campanha para prefeito em Ribeirão Preto, logo me enturmei no PSB local. Embora nunca tenha sido do Partidão (Partido Comunista), sempre fui ligado ao PSB e à sua ala marxista predominante em São Paulo. O partido, naquela época, estava dividido, especialmente durante a campanha Jânio Quadros contra Lot. O PSB nacional apoiou Lot, enquanto o diretório paulista, dominado pelos janistas, apoiou Jânio. Isso resultou na expulsão dos dirigentes do PSB em São Paulo, e nós, jovens militantes, assumimos a direção.
Com isso, conseguimos financiamento para a Casa do Nacionalista na Praça da Sé, onde realizávamos debates políticos. Esse espaço foi importante, mas também limitou nosso alcance quando comparado aos debates públicos genéricos que fazíamos antes. Mesmo com essas reviravoltas, continuei minha militância no PSB e, quando fui indicado por Samuel Pessoa para ir a Ribeirão Preto, mantive minha ligação política e continuei ativo na luta política local.
Nelson: Como é que você se vinculou na campanha do Montoro, na campanha da redemocratização na eleição dos governadores? Como é que foi a sua inserção? E como você chega a participar do grupo que elabora o programa de saúde?
Carvalheiro: Nós nos reuníamos na Madre Theodoro e quem coordenava nosso grupo era o João Yunes. Quando Montoro venceu a eleição, ele atribuiu a Yunes a responsabilidade de dirigir a Secretaria da Saúde, e foi aí que Yunes me convidou para ser coordenador de Institutos de Pesquisa. Tenho isso detalhado no meu memorial de professor titular. Infelizmente, não tenho o documento em formato digital aqui, mas posso tirar uma cópia e levá-lo para São Paulo.
Na medida em que me aproximei do grupo, passei a fazer parte da direção coletiva da Secretaria da Saúde. Quando Yunes e José da Silva Guedes me convidou, eu aceitei sob a condição de acumular temporariamente a direção do Instituto de Saúde, que estava sob ameaça de extinção por um decreto preparado pelo Jatene, o secretário anterior do governo Maluf. Condicionei minha aceitação à preservação do Instituto, e essa questão foi um ponto crucial para mim.
Simultaneamente, o grupo internacional ao qual eu pertencia, liderado por Carlyle Guerra Macedo, assumiu a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Carlyle, junto com figuras como Juan César Garcia, Maria Isabel Rodrigues e Miguel Marques, redefiniu o papel da OPAS, propondo a administração do conhecimento em saúde em vez de programas verticais focados em doenças específicas como tuberculose e malária. Essa abordagem me influenciou profundamente.
Quando assumi a coordenação dos institutos, levei esses conceitos para o Instituto de Saúde, alinhando-o com as discussões e práticas que estávamos desenvolvendo em Washington, com o grupo da OPAS. Transformamos o Instituto para que não fosse apenas um centro de programas verticais, mas uma instituição voltada para a gestão do conhecimento em saúde. Documentei essas mudanças e discussões no meu memorial.
Em resumo, ao assumir a Secretaria da Saúde, fizemos dela um espaço de condução coletiva, com reuniões semanais onde todos os diretores participavam ativamente das decisões em diversas áreas, desde saúde mental até hospitalar. Esse modelo coletivo e a integração com as diretrizes internacionais da OPAS marcaram nossa gestão e garantiram a preservação e a evolução do Instituto de Saúde em São Paulo.
Nelson: Carvalheiro, se você pudesse sintetizar esse período, o que avançou? Fazer uma síntese do que você percebeu, o que avançou. Essa ideia da verticalização versus pensar a saúde como um conjunto, isso é fundamental.
Carvalheiro: Para nós foi relativamente fácil, porque Walter Lezer já havia estabelecido uma estrutura inovadora que não existia em nenhum outro lugar no Brasil e no mundo. Ele criou centros de saúde que não eram especializados, mas organizados por níveis – nível 1, nível 2, nível 3 – com coordenação regional e discussões com a sociedade. Encontramos essa premissa já estabelecida por Lezer, o que facilitou muito nosso trabalho.
Nelson: Esse CTA que, semanalmente, reunia e você conseguia ter uma visão do conjunto das estratégias…
Carvalheiro: Primeiro, acabamos com os manicômios. Isso por si só já foi uma grande revolução. Também introduzimos psicólogos na rede de saúde. Recentemente, falei sobre isso em um grupo do Instituto de Saúde, e uma das alunas, psicólogas, mencionou como isso foi um marco. Naquela época, hospitais psiquiátricos privados nunca tinham leitos vagos. Quando um paciente saía, eles ligavam para a Secretaria de Saúde para enviar outro. Nós desmontamos esse sistema, acabando com o envio automático de pacientes dos hospitais públicos para os privados. Isso foi uma revolução na área de saúde mental.
Nelson: Na área de pesquisa, você conseguiu montar essa área de Ciência e Tecnologia. Eu sei que os institutos, vários deles, nesse período, também sofreram reformas. Eu, como militante do Butantan, sei que o Butantan, com a nova direção, também revolucionou…
Carvalheiro: Lá, tinha um paraguaio que precisava ser afastado quando assumimos. Convidamos o Otavio Azevedo Mercadante para dirigir o Butantan, mas ele precisava de alguns meses para deixar Brasília e vir para São Paulo. Durante esse período, assumi a direção interina do Butantan. Fizemos escolhas estratégicas para os diretores do Adolfo Lutz, do Lauro de Souza Lima e do Emílio Ribas. Essas mudanças foram fundamentais para reformular a estrutura e a gestão dos institutos.
Nelson: Você falou no começo da nossa conversa, que se montou um sistema de informações e isso passou…
Carvalheiro: Isso foi algo que fiz no Ministério da Saúde, quando eu, Edmundo Juarez e João Yunes éramos assessores do ministro Paulo de Almeida Machado. Fui responsável por criar o núcleo de informática em Brasília, mesmo sem ter muito conhecimento prévio na área. Foi quando a informática começou a surgir, e nós, com apoio do pessoal do planejamento da Presidência da República, montamos toda a estrutura. Eliminamos a duplicidade de atestados de óbitos (nascidos mortos e nascidos vivos) e padronizamos o modelo de atestado de óbito em todo o país. Fizemos uma grande reunião no Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAM) em Brasília, para unificar os modelos de atestados de óbitos usados pelos estados. Tenho a carta que encaminhei ao ministro Almeida Machado sobre o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), com uma anotação dele para divulgar amplamente. Isso foi um marco na padronização e melhoria da coleta de dados de mortalidade no Brasil.
Nelson: Isso é fundamental para nós, isso a gente pode publicar na sessão de documentos.
Carvalheiro: Eu fiz uma carta assinada pelo José Carlos Seixas, que na época era secretário-geral do Ministério da Saúde. Assinada por ele, eu preparei uma carta intencionalmente cobrante, com um tom forte. A carta praticamente dizia: “Estou te cobrando! Quem é o responsável pelas estatísticas de mortalidade no seu estado?” Todos os secretários estaduais indicaram seus responsáveis.
Essa carta deve existir ainda em algum lugar, e tenho um documento em minha mesa, em São Paulo, que contém a composição dos grupos de discussão. Inclui quem veio de cada estado. Graças à pressão da carta, conseguimos que todos os estados enviassem seus representantes. Apenas um estado não mandou a mesma pessoa indicada inicialmente. Criamos grupos de trabalho a partir disso.
O Rui Laurenti e o departamento da Faculdade de Saúde Pública me ajudaram imensamente. O Ernani Bandarra, que coordenava a informática na Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, também foi fundamental. Naquela época, a saúde pública só tinha um computador, um mainframe enorme na Fundação CESP, em Porto Alegre. Bandarra foi essencial para padronizar o atestado de óbito e organizar a estrutura de informática. Ele acabou sendo levado para Brasília, onde criou o DATAPREV e depois o DATASUS.
Nelson: Você mencionou que montou um sistema de informações. Isso foi no Ministério da Saúde?
Carvalheiro: Sim, fui assessor do ministro Almeida Machado, junto com Edmundo Juarez e Yunes. Em Brasília, criei o núcleo de informática do ministério, mesmo sem ter muito conhecimento na área. Trabalhamos com o pessoal do planejamento da Presidência da República para montar toda a estrutura. Primeiro, eliminamos a duplicidade de atestados de óbitos (nascidos mortos e nascidos vivos) e padronizamos um único modelo de atestado. Fizemos uma grande reunião no Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição para unificar os modelos de atestados de óbitos usados pelos estados. O ministro Almeida Machado apoiou amplamente nossa iniciativa.
Com a ajuda do Bandarra e do Caminha, conseguimos implementar um único atestado padrão para todo o país. Usamos fichas contínuas, em vez das tradicionais fichas IBM de 80 colunas. Isso foi crucial para padronizar o sistema de informações de mortalidade. Também fiz uma grande licitação para imprimir os atestados de óbitos em grande quantidade, garantindo que os estados não voltassem a usar os antigos modelos.
Nelson: E como foi a questão da implementação desse sistema com os estados?
Carvalheiro: Para garantir a implementação uniforme, decidimos imprimir uma grande quantidade de atestados de óbitos e distribuir para todos os estados. Na época, o atestado de óbito era emitido em duplicata com papel carbono. Descobrimos que havia um papel sem carbono disponível, produzido por uma única firma. Fiz a maior compra do ano sem licitação, adquirindo papel suficiente para dois anos. Isso foi feito em novembro e a decisão foi estratégica para garantir que todos os estados adotassem o novo modelo de atestado de óbito imediatamente.
O processo de debate para definir o formato do atestado de óbito foi conduzido de forma democrática, quase como uma assembleia estudantil. Lembro que Sérgio Arouca chegou atrasado a uma dessas reuniões e ficou surpreso ao me ver presidindo a discussão de forma tão aberta. Mas essa abordagem funcionou e conseguimos implementar o sistema com sucesso em todos os 27 estados.
Nelson: Isso é realmente impressionante. E você mencionou algo sobre a distribuição desses atestados de óbitos.
Carvalheiro: Sim, era essencial que os estados adotassem o novo modelo imediatamente. Fizemos uma compra massiva de papel sem carbono para garantir que todos tivessem acesso aos novos atestados. A implementação desse sistema de informações de mortalidade foi um grande passo para padronizar e melhorar a coleta de dados no Brasil. O apoio do Bandarra e do Caminha, assim como do Rui Laurenti e seu grupo, foi crucial para o sucesso dessa iniciativa.
Nelson: Só para a gente fechar isso aí. Essa iniciativa tem o centro, o núcleo em São Paulo?
Carvalheiro: Não, São Paulo e Rio Grande do Sul, com o Bandarra e o Caminha. Eles eram da Fundação SESP, que é o Corpo Internacional da Saúde. A concepção inicial partiu de São Paulo, mas com a colaboração crucial do pessoal do sul.
Nelson: Então essa concepção parte de São Paulo?
Carvalheiro: Parte de São Paulo, claro. Era nossa, evidente. Ela se estende para todos os estados. Inundamos o país com papel sem carbono suficiente para dois anos. Inicialmente, pensei em usar fichas IBM de 80 colunas, como fazíamos em São Paulo, mas o Bandarra e sua equipe acabaram adotando uma fita contínua de papel, que era enviada para Porto Alegre para processamento no mainframe deles.
Nelson: Carvalheiro, você mencionou a revolução na saúde mental, mas houve também a questão da epidemia de AIDS. Como foi essa transição?
Carvalheiro: Isso foi muito depois. Antes disso, houve um outro episódio importante que causou minha saída do Ministério da Saúde. Tenho o documento do José Sarney me nomeando para coordenar o sistema de imunizações no país. Naquela época, não havia SUS, então propusemos um projeto que foi aprovado na Câmara Federal, criando o sistema de imunizações. No entanto, um parágrafo foi inserido no projeto exigindo que todos os trabalhadores comprovassem, mensalmente, que a carteira de imunizações de seus filhos estava em dia, sob pena de suspensão do salário-família.
Eu e o Guedes nos insurgimos contra essa exigência, considerando-a um absurdo. Durante uma reunião com o ministro e cerca de 50 a 60 pessoas, nos opusemos publicamente. Como resultado, pedi demissão. Fui diplomático na minha carta de demissão, mas deixei claro que não podia continuar após discordar publicamente do ministro. A implementação desse parágrafo foi empurrada com a barriga, e até hoje não sei se foi totalmente extinto. Tenho uma orientada no Instituto de Saúde que está analisando a vigilância epidemiológica e pedi para ela verificar a situação atual dessa legislação.
Nelson: Essa iniciativa da imunização acabou sendo um ponto de conflito sério, não é?
Carvalheiro: Sim, exatamente. A exigência de comprovação mensal de vacinação era impraticável e injusta. Imagine o impacto disso sobre trabalhadores de pequenos comércios, como o meu quitandeiro aqui da esquina. Se ele tivesse um empregado, este teria que demonstrar mensalmente que seus filhos foram vacinados para receber o salário-família. Isso era inviável. O projeto de imunização foi crucial, mas essa exigência específica foi um grande problema. Pedi demissão devido a essa discordância, mas continuei acompanhando a evolução dessa política, sempre preocupado com seus desdobramentos e impacto na população.
Nelson: Então, só para a gente situar. Em 1973, tem o Plano Nacional de Imunização (PNI). E nessa época se criou o Sistema Nacional de Imunização, é isso?
Carvalheiro: No governo do presidente Tancredo Neves, de 1985, o Eurico Borba, do IBGE, coordenava o projeto. Ele selecionou 17 pessoas para apresentar 60 documentos. Estou aqui com meus três documentos na íntegra, sem alteração. Era o programa do Tancredo. Além de mim, outros 16 participaram, como Borges da Silveira, o depuado Carlos Moscone, Hezio Cordeiro, Francisco Beduschi, Gabriel Ozelka, Guido Levi, Guilherme Rodrigues da Silva, João Bosco Salomão, João Yunes, Zé Carlos Seixas, José da Silva Guedes, Luiz Humberto Pinheiro, Maria Angélica., Nelson Guimarães Proença e Otávio Mercadante. O documento de Ciência e Tecnologia em saúde que apresentei está na íntegra. Eurico Borba, que coordenou esse trabalho, também fez o mesmo para o governo Fernando Henrique Cardoso.
Nelson: Carvalheiro, e aí? O que mais você tem distinto? Eu falei da AIDS, mas e a área de informações?
Carvalheiro: Eu era diretor do Instituto de Saúde quando a AIDS surgiu. Maria Isabel Rodrigues, uma colega que trouxe para discutir o futuro do Instituto de Saúde, insistiu que não deveríamos abandonar a assistência médica, pois era nosso trunfo. Ela estava certa. A assistência de ambulatório nos dava poder. Foi nesse contexto que surgiu o primeiro caso de AIDS no Brasil, e eu acabei assumindo a responsabilidade como diretor do Instituto de Saúde. Isso me levou a participar de diversas reuniões em Genebra, na Organização Mundial da Saúde (OMS), que inicialmente coordenava a resposta à AIDS, antes da criação da UNAIDS.
Fiz parte de um comitê liderado por Françoise Barré-Sinoussi, que descobriu o HIV e ganhou o Prêmio Nobel junto com Eon Montagnier. No Brasil, a OMS escolheu o Hospital das Clínicas de São Paulo para coordenar a resposta à AIDS, mas o diretor do hospital, Vicente Amato Neto preferiu que eu assumisse essa responsabilidade em nome do Brasil. Assim, o Instituto de Saúde acabou coordenando várias iniciativas, incluindo a criação do primeiro Disque-AIDS do mundo.
Nelson: A atuação no campo da AIDS foi um marco importante. Como foi a transição para essa nova área de atuação?
Carvalheiro: A transição foi intensa e desafiadora. A AIDS trouxe uma nova dimensão de problemas de saúde pública que exigiam respostas rápidas e coordenadas. Participar de comitês internacionais, como o liderado por Barré-Sinoussi, me deu uma perspectiva global sobre a doença. No Brasil, nossa abordagem pioneira incluiu a implementação do Disque-AIDS, uma inovação que ajudou a disseminar informações corretas e combater o estigma associado à doença.
A resposta à epidemia de AIDS exigiu a mobilização de recursos e a formação de parcerias entre diferentes instituições de saúde. O Instituto de Saúde se tornou um centro de referência nesse processo, integrando esforços de pesquisa, prevenção e tratamento. Essa experiência também reforçou a importância da vigilância epidemiológica e da coleta de dados precisos, áreas nas quais já tínhamos começado a trabalhar com a criação do Sistema de Informações de Mortalidade.