Desde a redemocratização do Brasil, a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) é vista como uma das maiores vitórias sociais do país. Fruto de um esforço coletivo de gestores, profissionais de saúde, acadêmicos, ativistas e movimentos sociais, o SUS consolidou-se como uma política pública abrangente, que busca garantir o acesso universal e equitativo à saúde para toda a população brasileira. O projeto “Trajetória da Saúde em São Paulo: Instituições, Ideias e Atores” trouxe à tona as vozes de diversos protagonistas desse processo, revelando os avanços e os impactos positivos da construção desse sistema ao longo das últimas décadas.

A conquista do direito universal à saúde

Um dos maiores avanços reconhecidos no processo de construção do SUS é a conquista do direito universal à saúde, consagrado na Constituição de 1988. Esse marco histórico representou uma mudança radical na forma como a saúde era concebida e gerida no Brasil, garantindo que todo cidadão, independentemente de sua condição socioeconômica, tivesse acesso aos cuidados de saúde. Antes do SUS, o acesso à saúde era restrito a quem podia pagar ou tinha seguro privado, deixando milhões de brasileiros à margem do sistema. O SUS mudou essa realidade, promovendo a ideia de que saúde é um direito de todos e um dever do Estado.

O reconhecimento do direito à saúde como um direito fundamental representou um avanço não apenas na legislação, mas também na mudança cultural em torno da saúde pública no Brasil. A população passou a ver o acesso aos serviços de saúde como um direito garantido, gerando uma demanda por serviços públicos de qualidade e por uma gestão mais eficiente e transparente dos recursos de saúde. Esse avanço cultural é um dos legados mais significativos do SUS, contribuindo para uma maior conscientização sobre os direitos dos cidadãos e para a promoção de uma cidadania ativa.

O papel transformador da atenção primária

A implementação da Atenção Primária à Saúde (APS) é frequentemente destacada como um dos pilares mais importantes do SUS. A APS reorganizou a forma como os serviços de saúde são prestados, focando na prevenção e promoção da saúde, em vez de se concentrar apenas no tratamento de doenças. A criação de equipes de saúde da família, que trabalham diretamente com as comunidades, permitiu um cuidado mais próximo, personalizado e eficaz, fortalecendo o vínculo entre os profissionais de saúde e os usuários.

Esse modelo de atenção primária é visto como transformador porque não apenas melhora o acesso aos serviços de saúde, mas também contribui para a redução de desigualdades em saúde. A APS promove uma abordagem holística e integrada, considerando não apenas os aspectos físicos da saúde, mas também os determinantes sociais que afetam o bem-estar da população. Isso significa uma compreensão mais abrangente da saúde, que abarca fatores como condições de vida, educação, saneamento básico, alimentação e meio ambiente. O impacto da APS é sentido em todos os níveis do SUS, ajudando a descongestionar hospitais e unidades de emergência e promovendo um cuidado mais preventivo e menos dependente de intervenções médicas complexas.

Descentralização e participação popular

Outro avanço significativo do SUS foi a descentralização da gestão da saúde, que transferiu a responsabilidade de muitas decisões para os estados e municípios. Essa mudança promoveu uma maior proximidade entre os gestores e a população, permitindo que as políticas de saúde fossem adaptadas às necessidades locais e regionais. A descentralização também incentivou uma maior participação popular no planejamento e gestão dos serviços de saúde, através dos conselhos de saúde e das conferências de saúde.

Esses espaços de participação popular são vistos como uma inovação democrática, que permite que a população tenha voz ativa nas decisões que afetam sua saúde e seu bem-estar. A criação de conselhos de saúde em todos os níveis de governo, com participação de representantes da sociedade civil, usuários, profissionais de saúde e gestores, reforçou o compromisso do SUS com a gestão participativa e transparente. Esse modelo de governança é um dos avanços mais celebrados do SUS, promovendo uma cultura de participação cidadã e fortalecendo a legitimidade das políticas de saúde.

Inovação e flexibilidade na gestão

O SUS também é reconhecido por sua capacidade de inovação e flexibilidade na gestão dos serviços de saúde. Ao longo de sua história, o sistema adaptou-se a diferentes contextos e desafios, sempre buscando aprimorar a qualidade dos serviços prestados. A introdução de novas tecnologias, a informatização dos sistemas de saúde e a criação de redes de atenção especializada são exemplos de como o SUS tem evoluído para atender melhor às necessidades da população.

A flexibilidade do SUS é um de seus pontos fortes, permitindo que o sistema se adapte rapidamente a novas demandas e desafios, como foi o caso durante as epidemias de AIDS, dengue, Zika e, mais recentemente, a pandemia de COVID-19. A capacidade do SUS de responder a essas emergências sanitárias com agilidade e coordenação é frequentemente destacada como um exemplo de sua eficácia e de sua importância como um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo.

Fortalecimento da rede de assistência farmacêutica

A criação e o fortalecimento da rede de assistência farmacêutica no âmbito do SUS são outros avanços notáveis. A oferta gratuita de medicamentos essenciais e a implementação de programas como o “Farmácia Popular” ampliaram o acesso a medicamentos, reduzindo o custo para os usuários e garantindo o tratamento contínuo para doenças crônicas e outras condições de saúde. Essa política tem sido crucial para melhorar a adesão ao tratamento e para evitar complicações que poderiam sobrecarregar ainda mais o sistema de saúde.

Além disso, o fortalecimento da rede de farmácias e a introdução de medicamentos genéricos ajudaram a reduzir custos e a ampliar o acesso a tratamentos de qualidade para toda a população. A política de assistência farmacêutica é um exemplo de como o SUS tem buscado garantir o acesso integral à saúde, proporcionando não apenas serviços médicos, mas também o acesso a medicamentos essenciais para o tratamento e a prevenção de doenças.

Desenvolvimento de políticas integradas

Os entrevistados também ressaltaram a importância do desenvolvimento de políticas integradas de saúde, que consideram as múltiplas dimensões que afetam o bem-estar da população. As iniciativas de promoção de saúde mental, saúde da mulher, saúde da criança e do adolescente, saúde do trabalhador, entre outras, são exemplos de como o SUS aborda a saúde de maneira integral, promovendo ações de prevenção, tratamento e reabilitação em todos os ciclos de vida.

A implementação dessas políticas integradas é vista como um avanço importante para garantir uma abordagem mais holística e inclusiva da saúde. As políticas de saúde mental, por exemplo, promoveram uma mudança significativa no tratamento de transtornos mentais, com foco na desinstitucionalização e na reintegração social dos pacientes. Essas políticas representam um compromisso do SUS com a saúde integral da população, abordando tanto as questões físicas quanto emocionais e sociais que afetam o bem-estar.

Valorização dos profissionais de saúde

Outro avanço destacado é a valorização dos profissionais de saúde no SUS. A criação de carreiras específicas para médicos sanitaristas, enfermeiros, agentes comunitários de saúde, entre outros, representou um reconhecimento da importância desses profissionais para a efetividade do sistema. Além disso, o SUS promoveu a formação e a capacitação continuada de seus profissionais, garantindo uma mão de obra qualificada e comprometida com a saúde pública.

Os programas de formação de médicos e outros profissionais de saúde em saúde pública, gestão de saúde e outras áreas essenciais são vistos como um investimento crucial para o fortalecimento do SUS. Essa valorização e capacitação dos profissionais de saúde são fundamentais para garantir a qualidade e a eficácia dos serviços prestados e para promover uma cultura de melhoria contínua e inovação dentro do sistema de saúde.

O Papel Fundamental da Sociedade Civil

A participação da sociedade civil foi fundamental para a construção e consolidação do SUS. Movimentos sociais, ONGs, associações de pacientes e outras entidades da sociedade civil desempenharam um papel crucial na defesa do direito à saúde e na promoção de políticas públicas mais inclusivas e democráticas. A luta pela reforma sanitária, que culminou na criação do SUS, é um exemplo do poder de mobilização da sociedade civil e da importância de sua participação na construção de políticas públicas.

A colaboração entre o poder público e a sociedade civil tem sido uma característica distintiva do SUS, promovendo um sistema de saúde mais inclusivo e participativo. Essa colaboração permitiu a criação de políticas de saúde que refletem as necessidades reais da população e promoveu uma maior conscientização sobre os direitos à saúde. O papel ativo da sociedade civil na construção e defesa do SUS é frequentemente citado como um dos avanços mais importantes do sistema, garantindo que a saúde permaneça como um direito fundamental e acessível a todos.

Um Legado Coletivo de Saúde Pública

O SUS representa uma conquista histórica para o Brasil, refletindo décadas de esforços coletivos para construir um sistema de saúde mais justo, inclusivo e eficaz. Os avanços destacados pelos entrevistados mostram que, apesar dos desafios e das dificuldades, o SUS continua a ser uma das maiores realizações sociais do país. Sua capacidade de inovar, adaptar-se e responder às necessidades da população faz dele um exemplo de política pública bem-sucedida e um modelo a ser seguido.

A construção do SUS é um processo contínuo de aprendizado e adaptação, sustentado pela colaboração entre gestores, profissionais de saúde, movimentos sociais e a sociedade civil. Os avanços alcançados são uma prova do compromisso coletivo com a saúde pública e um legado duradouro de equidade e justiça social. Este projeto de revisitação histórica é um convite para refletir sobre o caminho percorrido e sobre o que ainda precisa ser feito para garantir que o SUS continue a ser um pilar fundamental da saúde pública no Brasil.

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