Entre 1983 e 1994, a cobertura da Folha de S. Paulo sobre a reorganização da saúde pública — das AIS ao SUDS e ao SUS — ajudou a consolidar uma imagem persistente: a do sistema como um conjunto de serviços precários voltados aos mais pobres. A pesquisa de Claudio Bertolli Filho, realizada no âmbito do projeto “Construção das políticas de saúde no Estado de São Paulo: AIS, SUDS e SUS no ciclo da democratização”, analisou 7.756 textos, entre editoriais, artigos, reportagens e peças publicitárias, e concluiu que o noticiário contribuiu para cristalizar essa representação, que ainda ecoa no presente.
O recorte temporal cobre a transição democrática e acompanha mudanças institucionais decisivas, sem que se observe variação substantiva de orientação no jornal quanto ao sistema público. As inflexões percebidas foram de tom, e não de direção: a saúde apareceu como instrumento para dialogar com — e, sobretudo, criticar — governos federal e estadual, com oscilações associadas ao início e ao fim de mandatos presidenciais e do governo paulista.
A pesquisa privilegia o jornal como fonte para a “história do tempo presente” e adota um procedimento de leitura que espelha, tanto quanto possível, o fluxo de navegação de um leitor comum entre gêneros e cadernos. Ao entrecruzar editoriais, colunas e reportagens, reconstrói-se a forma como o diário “comprova” fatos e “convence” seu público, sem perder de vista os limites inerentes à seleção e à ordenação do material em cortes temáticos.
No plano metodológico, o trabalho combina análise de conteúdo de Laurence Bardin com a hermenêutica de profundidade de John B. Thompson. A análise opera etapas de pré-análise, exploração, codificação, categorização e inferência, permitindo transformar dados brutos em conjuntos comparáveis e inteligíveis. A hermenêutica, por sua vez, abre espaço para interpretar os sentidos implícitos e as continuidades discursivas. Essa combinação sustenta o diálogo entre quantificação de frequências e interpretação dos enredos que organizaram a cobertura.
Um dos núcleos argumentativos mais consistentes aparece na seção “Opinião econômica”, tratada como um editorial informal. Nela, a defesa de princípios neoliberais foi recorrente, incluindo proposições de privatização que tangenciaram o sistema público de saúde.
Em 1992, por exemplo, articulistas defenderam a concessão de serviços públicos à iniciativa privada como saída para a estagnação, associando a corrupção a um “Estado grande e cartorial” e vinculando a reforma do Estado à construção de um novo projeto nacional. O repertório se repetiu em textos de diretores de hospitais e planos de saúde, que cobravam “livre-iniciativa” na assistência médica e retratavam o Estado como ineficiente.
Essa moldura ideológica reverberou em avaliações de conjuntura e em juízos de valor sobre a gestão pública. Em 1994, artigo citado pelo estudo reitera que o Estado seria um “péssimo administrador”, incapaz de controlar desvios e prisioneiro de uma máquina de pessoal, concluindo que a “medicina complementar” seria a alternativa “de qualidade” para milhões de brasileiros — ainda que isso implicasse pagar duas vezes, via tributos e planos privados. A formulação reproduz o eixo central da crítica: reduzir o SUS a um arranjo disfuncional e associar o padrão de qualidade à esfera privada.
Ao detalhar o escopo do corpus, o estudo identifica 7.756 matérias publicadas entre 1º de janeiro de 1983 e 31 de dezembro de 1994, o que dá dimensão à intensidade do debate público no período. O levantamento, além de mapear a cobertura, finca marcos que permitem relacionar economia e política social: a lista de tabelas inclui séries de inflação, gastos federais e estaduais em saúde, saneamento e a dinâmica da Aids no estado, articulando contexto macroeconômico e pressões sobre o sistema. Essa base comparativa ajuda a compreender como a pauta da saúde foi muitas vezes atravessada por disputas sobre orçamento, prioridades e modelos de gestão.
A leitura longitudinal mostra que, mesmo diante de reformas e novos arranjos institucionais — AIS, SUDS e SUS —, o núcleo da crítica permaneceu. As mudanças, quando notadas, tenderam a ser enquadradas como insuficientes diante da “ineficiência” estatal, enquanto a solução era frequentemente deslocada para o mercado, por meio de concessões, privatizações pontuais ou expansão da assistência supletiva. Assim, a saúde pública foi narrada menos como política de cidadania universal e mais como provisão residual — o que alimentou o estigma que associa o SUS ao atendimento de baixa renda.
Ao inserir a cobertura no ambiente de redemocratização, o trabalho também evidencia como a Folha mobilizou seu ecossistema editorial para construir verossimilhança: cruzou dados, opiniões e reportagens com o objetivo declarado de “convencer” o leitor.
Essa estratégia comunicativa, comum ao jornalismo, ganha relevo quando se observa a convergência entre vozes de mercado, editoriais e colunas temáticas na produção de um senso comum sobre o papel do Estado e os limites da gestão pública em saúde. O resultado, medido pela persistência da imagem negativa do sistema, sugere uma coerência discursiva que atravessou o período e organizou expectativas do público.
Por fim, a pesquisa reconstrói a engrenagem discursiva que enquadrou a saúde pública na década que antecede e sucede a Constituição de 1988. Ao combinar método e leitura de contexto, mostra como um grande diário operou, com estabilidade de orientação e variações de intensidade, uma narrativa que associa o sistema público a falhas de gestão e reserva à iniciativa privada a promessa de eficiência. A imagem produzida — e reproduzida — foi robusta o suficiente para sobreviver às mudanças institucionais do período analisado.
