Nesta entrevista, apresentamos uma conversa entre a pesquisadora Ana Luiza d’Ávila Viana com o professor da Unicamp, Gastão Wagner, médico sanitarista com extensa trajetória na saúde pública brasileira. Wagner discorre sobre uma gama de assuntos, desde a gestão e os desafios do Sistema Único de Saúde (SUS) até as questões que permeiam a educação pública no Brasil. A análise se estende ao impacto das políticas neoliberais em ambos os setores, ressaltando a necessidade de reformas que priorizem a universalidade, integralidade e equidade.

Ao longo da entrevista, Wagner aborda as diferenças na gestão da atenção primária entre estados brasileiros, destacando as especificidades de São Paulo em comparação com outras regiões. Ele critica a fragmentação do sistema de saúde e a influência do mercado na deterioração das políticas públicas, sugerindo a adoção de estratégias mais integradas e colaborativas, similares às praticadas no National Health Service (NHS) do Reino Unido.

A entrevista oferece um panorama sobre os obstáculos enfrentados na implementação de uma gestão de saúde eficaz e na manutenção de um sistema educacional público que responda às necessidades da população. Gastão Wagner convoca a uma reflexão sobre as ações necessárias para fortalecer o SUS e a educação pública, enfatizando a importância da participação coletiva na reconstrução desses pilares fundamentais para o bem-estar social.

Ana Luiza Viana: Por que você escolheu iniciar sua carreira em saúde pública trabalhando especificamente no ABC paulista durante um período marcado por intensas atividades políticas e sociais?

Gastão Wagner: Agradeço a oportunidade de compartilhar um pouco da minha trajetória e do projeto que tanto me orgulha. Não sou originário de São Paulo, mas sim de Catalão, uma pequena cidade goiana com uma história de 400 anos, marcada pela presença de colonizadores catalães. Minha formação em medicina se deu na Universidade de Brasília, no ano de 1975, uma época em que ainda se podia sentir o espírito revolucionário com o qual Darcy Ribeiro sonhava para a instituição. A medicina na UnB seguia um modelo experimental, algo inovador naquela época e que, até hoje, se destaca pela sua contemporaneidade.

Este modelo educacional baseava-se na interdisciplinaridade e na prática desde o início do curso, algo que definitivamente moldou minha visão de medicina e saúde pública. No primeiro ano, vivenciamos uma experiência única, compartilhando salas de aula com alunos de diversos cursos, abordando temas como evolução e biologia contemporânea, o que ampliou significativamente nossa compreensão sobre as ciências e a medicina. Essa abordagem holística incluía, desde o início, uma forte ênfase em medicina preventiva, reunindo estudantes de várias áreas do conhecimento.

A partir do segundo ano, o curso se dividia em blocos temáticos, cada um abordando aspectos integrados de saúde, como segurança alimentar, desnutrição e o sistema gastrointestinal, entre outros. Essa estrutura permitia uma imersão profunda em cada tema, apoiada por um vasto material bibliográfico e experiências práticas em ambulatórios e hospitais. Essa formação interdisciplinar foi crucial para a minha decisão de seguir na área de saúde pública. Após concluir minha residência em medicina interna, fui inspirado por figuras proeminentes da saúde pública a me mudar para São Paulo, onde prossegui minha formação em sanitarismo, além de realizar mestrado e doutorado em Medicina Preventiva e Social na USP. Essa jornada não apenas moldou minha carreira profissional, mas também reforçou minha convicção na importância da saúde pública e da medicina comunitária como pilares para o bem-estar da sociedade.

Ana Luiza Viana: Como sua experiência com a militância política e o movimento pela anistia em São Paulo influenciou sua trajetória profissional e sua visão sobre a saúde pública?

Gastão Wagner: Minha trajetória sempre oscilou entre a paixão pela saúde pública e a vocação para a docência. Sempre fui apaixonado por ensinar, e isso ficou evidente quando pessoas da Santa Casa começaram a me convidar para dar aulas. Naquela época, estava imerso na elaboração de uma dissertação sobre o trabalho médico, sob a orientação de Amélia Cohn. Regina e Selma, grandes sociólogas da área me proporcionaram minha primeira experiência como professor. Me envolvi voluntariamente na docência, contribuindo para a formação de futuros médicos e profissionais da saúde. Essa experiência reforçou minha convicção na importância da educação como ferramenta de transformação social.

Decidi, então, dedicar cinco anos da minha carreira atuando como sanitarista na região do ABC Paulista, um local que na época foi um epicentro de atividades de esquerda e movimentos sociais significativos. Essa decisão foi motivada tanto pela minha vontade de trabalhar com saúde pública quanto pelo meu interesse nas dinâmicas sociais e políticas que influenciavam a área. Durante esse período, envolvi-me no movimento pela anistia e participei ativamente na formação da primeira chapa do Sindicato dos Médicos. Esse engajamento com o sindicalismo e com as questões sociais da época foi fundamental para aprofundar meu entendimento e compromisso com a saúde pública.

Após cinco anos de intensa atuação como sanitarista e envolvimento com questões sindicais, surgiu uma oportunidade que marcaria o próximo capítulo da minha carreira: um concurso na Unicamp. Fui aprovado e iniciei minha carreira docente, uma transição que considero um ponto de virada. Sob a liderança de Nelson Rodrigues da Silva, assumi a coordenação do Projeto Paulínia, um ambicioso programa de medicina e saúde comunitária fundado nos anos 70, que buscava integrar a prática médica à realidade comunitária desde a graduação até a residência. Essa mudança para Campinas não representou apenas uma alteração geográfica, mas também a consolidação de minha vocação docente.

Ana Luiza Viana: Diante do contexto histórico e das mudanças político-sociais, como você avalia a posição da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo em relação ao fortalecimento do SUS, especialmente considerando os desafios impostos pelo avanço das políticas neoliberais?

Gastão Wagner: Minha trajetória como ativista teve início ainda antes de chegar a Brasília, onde me envolvi profundamente com a luta pela anistia e contra a ditadura militar. Nesse período, cheguei a me filiar ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), conhecido como Partidão, influenciado por figuras como David Capistrano e Carlos Nelson Coutinho. Eles nos proporcionaram uma formação que buscava combinar socialismo e democracia, baseada nos ensinamentos de Gramsci sobre o Estado e políticas públicas. Essa formação foi essencial para a minha crítica ao stalinismo e ao que se chamava de comunismo real, pois, apesar da minha inclinação para a esquerda, sempre fui contra o autoritarismo e a falta de democracia nos regimes socialistas da época.

Durante minha graduação na Universidade de Brasília, a influência do trotskismo foi decisiva, protegendo-me de um possível envolvimento com a guerrilha. Naquele momento, a universidade era um fervilhar de ideias e movimentos estudantis inclinados à esquerda, muitos dos quais simpatizavam com a luta armada. Os trotskistas, por outro lado, ofereceram-me uma perspectiva de luta política que evitou que eu me juntasse a grupos guerrilheiros, algo bastante presente no contexto da época.

Minha atuação política se estendeu para além da luta antiditatorial, engajando-me ativamente nas questões de saúde pública em São Paulo, antes mesmo da criação do SUS. Trabalhei em projetos específicos da região, que, embora não fossem o SUS como o conhecemos hoje, representavam os primeiros passos para uma saúde pública mais abrangente e programática. Essa experiência foi ampliada pelo meu envolvimento com o movimento sanitário brasileiro, participando do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e contribuindo com a revista Saúde em Debate, o que me permitiu estar em contato com importantes figuras do cenário político e de saúde da época.

Refletindo sobre a implementação do SUS, acredito que o Estado de São Paulo teve um papel crucial, apesar de haver certas divergências quanto ao projeto inicial do sistema. O movimento sanitário, especialmente no Rio de Janeiro e em uma parte menor de São Paulo, foi fundamental para a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que influenciou diretamente a constituição do SUS. Contrariamente ao que muitos pensam, o SUS foi mais inspirado no modelo do NHS britânico do que em outros sistemas de saúde, como o cubano. A estrutura do SUS, com 80% a 85% de suas diretrizes baseadas no NHS, reflete a importância da atenção primária, um princípio que tem sido essencial para o sucesso e a eficácia do sistema de saúde brasileiro.

Ana Luiza Viana: Na sua opinião, quais são os principais desafios enfrentados pelo SUS em São Paulo, especialmente no que diz respeito à fragmentação do sistema e à implementação de políticas integradas de saúde?

Gastão Wagner: Em São Paulo, a rede de saúde pública sempre se destacou pela sua robustez, especialmente quando comparada ao restante do Brasil. Esse sistema, baseado em centros de saúde, adotava uma abordagem teórico-prática programática, que, em certo momento, me levou a um debate intelectual de alto nível com o departamento de Medicina Preventiva da USP. Este debate envolveu figuras como Ricardo Bruno e Lilia Blima, e, apesar das divergências, nunca afetou nossa amizade. O cerne da discussão girava em torno da defesa de uma saúde programática focada em ciclos vitais e Inter profissionalidade, mas sem a ênfase na atenção primária nos moldes do NHS, modelo adotado posteriormente por Portugal, Espanha e Itália, que se centrava em profissionais generalistas, como médicos e enfermeiros, com uma perspectiva clínica ampliada.

Este debate me inspirou a aprofundar meus estudos sobre a clínica, não apenas no que tange à determinação social da saúde, mas também na integralidade e na integração dos cuidados, pilares do NHS. Foi esse interesse que me levou a envolver-me com o Projeto Paulínia, que, apesar de inicialmente focado em atenção primária para populações carentes, permitiu-me experimentar e aplicar esses conceitos na prática. Na Unicamp, fui responsável pela integração da atenção primária nos estágios de graduação em medicina, enfermagem e odontologia, uma imersão profunda que hoje buscamos recuperar após um período de regressão ao modelo hospitalar especializado.

Acredito que a saúde pública em São Paulo, sob lideranças como a de Walter Leser, nunca apoiou efetivamente a estratégia de saúde da família, que começou a ganhar força no Brasil entre 1994 e 1996. Comparando a implementação do SUS em São Paulo com outros estados, como Minas Gerais, Ceará, Bahia e, mais recentemente, Rio de Janeiro, percebe-se uma falta de priorização da atenção primária. Essa resistência também se reflete na gestão das redes hospitalares e na relação com as Santas Casas e hospitais públicos, mantendo-se um modelo mais tradicional.

Recentemente, fiz uma revisão teórica e empírica sobre as concepções e práticas da atenção primária em São Paulo, Rio de Janeiro e Campinas, publicada em vários artigos. Esta análise confirmou a minha percepção de que a cidade de São Paulo, com exceção talvez do último ano da gestão Haddad com Alexandre Padilha, nunca adotou plenamente a estratégia de saúde da família. Governos anteriores, independentemente de suas razões, como os de Maluf e Pitta, não apoiaram essa estratégia, refletindo uma resistência a um modelo de atenção primária mais integrado e centrado no paciente. Esse cenário revela os desafios e as oportunidades para a saúde pública no estado, destacando a importância de promover uma maior integração dos cuidados e de avançar na implementação de políticas de saúde mais eficazes e inclusivas.

Ana Luiza Viana: Considerando sua experiência na área de saúde pública e coletiva, como você percebe a contribuição do estado de São Paulo para a inovação e implementação de políticas de saúde, especialmente em termos de atenção primária e cuidado paliativo?

Gastão Wagner: Ao refletir sobre minha experiência e observações ao longo dos anos, percebi que o sucesso inicial de um determinado modelo em saúde pública pode paradoxalmente criar barreiras à sua evolução e aprimoramento. Em São Paulo, a saúde pública tradicional, diferentemente da saúde coletiva ou da atenção primária, alcançou um grande sucesso. Isso se deu, em parte, graças a uma sólida rede de formação de sanitaristas, da qual fiz parte antes de gradativamente me distanciar para incorporar a clínica e as diretrizes da saúde coletiva em minha prática. Ainda assim, nunca abandonei completamente a cultura da saúde pública tradicional, buscando antes transcendê-la.

São Paulo se destacou no SUS, particularmente em áreas como vigilância em saúde e epidemiológica, além de vacinação, com o Instituto Butantan sendo um exemplo emblemático dessa tradição. No entanto, o SUS, enquanto sistema, enfrenta resistências significativas à medida que tenta se aproximar de modelos de gestão e cuidado mais integrados, similares aos do NHS. Nesse contexto, a saúde pública tradicional, com suas vigilâncias, começa a se difundir na atenção primária, mostrando a importância da prevenção, da promoção da saúde e do trabalho territorial comunitário.

Porém, a partir de meados da década de 90, observou-se uma divisão no movimento sanitário, influenciada pela ascensão do neoliberalismo e pela ideia de que a terceirização seria necessária para modernizar o sistema público, percebido por alguns como obsoleto. Essa tendência contrasta com as experiências do NHS na Inglaterra e do sistema de saúde na Espanha, onde a colaboração com o setor privado ocorre, mas de maneira controlada e integrada. Em Portugal, por exemplo, a interação entre as Santas Casas e o sistema público de saúde é mais harmoniosa, com os hospitais participando ativamente do planejamento regional e operando sob o crachá do sistema público.

Em São Paulo, por outro lado, essa dinâmica evoluiu para uma cultura que, infelizmente, se tornou hegemônica no SUS, caracterizada por uma falta de políticas de pessoal consistente e pela terceirização de serviços para as organizações sociais. Embora esse modelo também seja utilizado na Espanha, a falta de controle e moderação observada em São Paulo destoa significativamente da abordagem europeia. Essa reflexão sobre a evolução do SUS e a interação entre o setor público e privado em São Paulo destaca os desafios contínuos enfrentados pelo sistema de saúde pública brasileiro, bem como as oportunidades para aprender com experiências internacionais na busca por um sistema mais equitativo e eficiente.

Ana Luiza Viana: Como sua pesquisa recente destacou diferenças significativas na gestão da atenção primária entre o Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente em relação ao controle e diretrizes estabelecidos pelas respectivas secretarias municipais de saúde, poderia detalhar os impactos dessas diferenças na qualidade e integração da atenção à saúde nesses estados?

Gastão Wagner: Na pesquisa recente que conduzi, constatei uma diferença marcante na gestão da atenção primária entre o Rio de Janeiro e São Paulo. No Rio, a atenção primária é administrada por organizações sociais (OSs), mas sob um controle significativamente mais rígido da Secretaria Municipal de Saúde. A secretaria carioca estabelece normas rigorosas para gestores, exigindo formações específicas em saúde pública, saúde coletiva, gestão pública, ou residência em saúde da família ou medicina preventiva. Além disso, os gestores devem ter uma experiência mínima na rede, algo que contrasta com a prática em São Paulo, onde as OSs têm maior liberdade para indicar gestores.

As diretrizes e metas no Rio de Janeiro são claramente definidas pela Secretaria de Saúde, focadas na atenção à família e na proibição da conversão de unidades em prontos atendimentos, buscando promover uma atenção primária integrada e completa, em linha com os princípios do NHS. Essa abordagem evidencia um compromisso com a integralidade da atenção, algo que ainda enfrenta obstáculos em São Paulo. Apesar dos avanços, como na vacinação e na estruturação de centros de saúde, a rede social paulista se consolidou de tal forma que dificulta a transição para um modelo mais focado na saúde da família e na atenção básica, muitas vezes misturando-se com unidades de pronto atendimento.

Em Campinas, minha visão divergente sobre essa questão levou a confrontos institucionais, uma espécie de “guerra civil” sem violência, mas marcada por intensos debates entre diferentes correntes sobre a estratégia de saúde da família. Durante minha gestão como secretário, enfrentei oposição no Conselho Municipal de Saúde, mas, ao retornar em 2000, consegui, por uma estreita margem de votos, implementar a estratégia de saúde da família na cidade.

A dificuldade de integrar e implementar uma visão unificada do SUS em São Paulo reflete uma tendência mais ampla no movimento sanitário brasileiro, onde a integração entre diferentes níveis de atendimento e a colaboração entre hospitais, universidades e a atenção básica representam desafios significativos. A experiência de figuras como Jatene, que passou da cirurgia para a saúde pública, ilustra a potencialidade de transformações no SUS com uma visão mais aberta e integradora, apesar da falta de hegemonia dessa abordagem no estado.

Ana Luiza Viana: Como você analisa a evolução das correntes políticas no movimento médico e sanitário brasileiro, especialmente em relação ao impacto dessas correntes na gestão do SUS e nas políticas de saúde pública em São Paulo, considerando a sua experiência e observações sobre o conservadorismo, neoliberalismo e esforços de renovação dentro do sistema?

Gastão Wagner: Ao abordar as correntes políticas dentro do movimento médico e sanitário, percebi que a denominação “Kassabismo” poderia ter sido mais precisamente descrita como conservadorismo tradicional, reconhecendo que essa influência ultrapassa a figura de um único político. Essa reflexão me levou a considerar médicos conservadores, que, embora não sejam favoráveis à socialização da medicina à maneira do NHS, defendem uma intervenção estatal regulatória sobre o setor privado, incluindo a credenciação de consultórios e a fiscalização da formação médica. Essa postura, que denominei inicialmente de neoliberal, representa, na verdade, uma perspectiva mais atrasada e retrógrada do liberalismo clássico.

Dentro desse espectro, identifico ainda um setor de renovação, especialmente visível no movimento sindical e em lugares como o Rio de Janeiro e Recife, que defende veementemente o SUS e promove a discussão sobre modelos de atenção primária. Essa parte do movimento médico, que inclui professores da área pública e outros profissionais favoráveis ao SUS, acabou por influenciar a indicação de gestores e assessores importantes, filiando-se a partidos como o PSDB, PT, e PCdoB, refletindo uma diversidade humanista e heterogênea no apoio ao sistema de saúde.

Apesar das críticas que faço a certas correntes, reconheço a contribuição de figuras como Seixas e Guedes, originárias do PSDB, mas ativas no movimento sanitário, que durante suas gestões promoveram um SUS mais integrado. No entanto, mesmo sob a liderança dessas personalidades, São Paulo enfrentou dificuldades teóricas e práticas para avançar na implementação de um sistema público de saúde mais horizontalizado e focado na atenção primária.

A tradição de terceirização em São Paulo, promovida por governos conservadores, contrasta com os esforços de outros estados, como o Rio de Janeiro sob a gestão de Daniel Soren, que expandiu significativamente a cobertura da atenção primária. A gestão subsequente do prefeito Crivella, por outro lado, reduziu drasticamente essa cobertura, uma tendência infelizmente revertida apenas recentemente.

A atual liderança da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, associada a uma visão neoliberal do movimento médico, continua a promover uma agenda de desmonte do sistema público de saúde, embora ainda mantenha programas valiosos como o HumanizaSUS. Esse programa, que foi desativado no nível federal durante a gestão de Dilma Rousseff, sobreviveu em São Paulo, exemplificando um compromisso, ainda que contraditório, com princípios de humanização e participação social na saúde.

Ana Luiza Viana: Quais foram os principais desafios e contribuições no desenvolvimento e implementação do SUS, especialmente em relação às iniciativas de municipalização e descentralização em São Paulo, e como essas estratégias se comparam com as abordagens adotadas no Rio de Janeiro?

Gastão Wagner: Na construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e sua implementação, iniciada pelo Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) e pelas Ações Integradas de Saúde (AIS) antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 1988, diversos atores, teóricos e operadores tiveram papéis fundamentais. Destaco, em especial, as contribuições vindas do Rio de Janeiro, como as de Sergio Arouca e Ésio Cordeiro, que visavam não apenas a integração do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) com o Ministério da Saúde, mas também o desenvolvimento de uma visão de saúde pública mais ampla e integrada em São Paulo. A municipalização e a descentralização foram estratégias chave nesse processo, com Nelson Rodrigues dos Santos e Gilson Carvalho se destacando na luta por esses princípios, influenciando a primeira diretriz do SUS em 1990, voltada à municipalização.

A gestão de Guedes na Secretaria de Saúde foi marcante por sua criatividade e implementação de grandes ideias, contribuindo significativamente para o desenvolvimento do SUS. Contudo, reconheço que, apesar dos avanços, a saúde pública em São Paulo enfrentou dificuldades em se adaptar e evoluir conforme as novas diretrizes do SUS, persistindo em uma visão de saúde pública tradicional. Isso se refletiu na criação dos escritórios regionais de saúde nos anos 80, que, embora inovadores, ainda se pautavam por uma concepção de saúde pública anterior ao SUS.

A regionalização da gestão de saúde, promovida pela Secretaria Estadual, e sua regulação sobre hospitais revelaram-se insuficientes e frágeis, demonstrando a persistência de uma abordagem tradicional em saúde pública. Essa resistência à transformação e à incorporação dos princípios de saúde coletiva, apesar de avanços teóricos e práticos, ilustra as dificuldades encontradas no estado para abraçar plenamente o modelo do SUS.

No Rio de Janeiro, ao contrário, a presença marcante de hospitais públicos federais demonstra uma tradição de gestão de saúde que contrasta com a realidade paulista, onde o setor privado exerce uma influência significativa, mesmo sem ter hegemonia na gestão pública de saúde. Essa contradição se evidencia na gestão de figuras como Guedes e Barradas, que, apesar de suas origens na saúde pública, enfrentaram desafios ao tentar implementar uma visão mais integrada e coletiva da saúde.

Concluo que a saúde pública em São Paulo, assim como em outras grandes e médias cidades, ainda está muito influenciada por uma cultura de saúde do início do século XX, focada em vacinação e vigilância, mas frágil na construção de redes integradas, na promoção da integralidade dos cuidados, na gestão da urgência e emergência e, especialmente, na atenção primária. Esse panorama reflete a necessidade de uma profunda transformação na forma como a saúde pública é concebida e praticada em São Paulo, visando uma verdadeira integração com os princípios da saúde coletiva propostos pelo SUS.

Ana Luiza Viana: Como a adoção de políticas neoliberais afetou a gestão e eficácia das políticas públicas de saúde?

Gastão Wagner: O desmonte das políticas públicas seguiu o fracasso do comunismo real, um evento que eu, pessoalmente, aplaudi dada minha oposição ao estalinismo e suas variantes. Esse colapso foi sucedido por uma forte ofensiva neoliberal contra as políticas públicas, marcando um período em que o mercado ganhou predominância e as políticas públicas foram colocadas sob ataque. Nesse contexto, observou-se uma migração dos partidos social-democratas, que abandonaram a ideia de equilibrar mercado e política pública em favor de políticas de privatização e terceirização, um retrocesso significativo na minha visão.

Este ajuste fiscal e a retirada de direitos trabalhistas foram promovidos não apenas por governos conservadores, mas também por figuras da social-democracia na Europa, gerando descontentamento entre suas bases. No Brasil, essa tendência resultou no abandono da luta contra a desigualdade através de políticas públicas robustas, com Fernando Henrique Cardoso e outros líderes adotando uma agenda de privatizações. Como resultado, setores da esquerda que ainda apostam em políticas públicas, como o SUS, encontram-se em uma posição difícil, com o SUS permanecendo essencial para a promoção da saúde, apesar de enfrentar desafios significativos em sua implementação e cobertura.

A fragmentação do SUS, com a adoção de modelos de gestão como as Organizações Sociais de Saúde (OSSs) e a falta de uma efetiva regionalização, reflete essas dificuldades. As prefeituras e estados, ao optarem por consórcios e contratações que frequentemente escapam à regulação adequada do SUS, contribuem para uma medicalização excessiva e uma especialização fragmentada do sistema de saúde, longe dos princípios de universalidade e integralidade.

A falta de uma política de pessoal comparável àquelas de países com sistemas nacionais de saúde bem-sucedidos, como o NHS no Reino Unido, Portugal e Espanha, evidencia um dos principais obstáculos para o SUS. Em tais países, políticas de pessoal modernas e públicas promovem compromisso e responsabilização, contribuindo para a eficiência e eficácia do sistema de saúde. Contrariamente, no Brasil, propostas nesse sentido são muitas vezes mal interpretadas como liberalismo, quando na verdade representam uma necessidade de modernização e comprometimento com a saúde pública.

Essa análise ressalta a importância de repensar e fortalecer as políticas públicas de saúde no Brasil, superando a fragmentação e promovendo uma maior integração e eficiência no SUS, em linha com os princípios de universalidade, integralidade e equidade que fundamentam um sistema de saúde verdadeiramente público e efetivo.

Ana Luiza Viana: Como o modelo colaborativo do NHS do Reino Unido, com planejamento regional integrado, contrasta com os desafios enfrentados pelo SUS no Brasil, como ineficiência e fragmentação?

Gastão Wagner: O modelo adotado pelo National Health Service (NHS) do Reino Unido nos últimos dez anos, que privilegia o planejamento regional através de colegiados com representação de hospitais, atenção primária e gestores, representa uma abordagem integrada e colaborativa na gestão da saúde pública. Embora não inclua diretamente os usuários no processo de planejamento, a participação de setores essenciais como saúde mental, reabilitação, atenção primária e hospitais garante uma visão holística e coerente das necessidades de saúde da população. Este planejamento trienal, com revisões anuais, assegura que o sistema se adapte continuamente às mudanças e necessidades, seguindo uma lógica estratégica ao invés de ser influenciado por emendas parlamentares ou interesses políticos pontuais.

Essa estrutura contrasta acentuadamente com a situação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, onde a crônica ineficiência e a falta de planejamento estratégico minam a efetividade e a credibilidade do sistema. A gestão fragmentada e a influência de interesses políticos e partidários no direcionamento de recursos – muitas vezes sem a devida consideração pelas necessidades reais da população ou por critérios técnicos de priorização – contribuem para a desmoralização do SUS. Esse cenário reflete não apenas nos serviços de saúde, mas também na educação e segurança públicas, ampliando a crise de legitimidade das políticas públicas no país.

A perda de legitimidade das promessas social-democratas e das políticas públicas vai além das lideranças políticas, atingindo a percepção da população. A indistinção entre os partidos, agora vistos majoritariamente como entidades focadas na apropriação dos orçamentos públicos para benefícios privados, sem um planejamento eficaz ou prioridades claras, evidencia uma crise política profunda. Essa realidade impõe desafios significativos para a governança e a implementação de políticas públicas efetivas no Brasil, demandando uma reflexão crítica e urgente sobre a necessidade de reformas estruturais no SUS e em outros setores essenciais para o restabelecimento da confiança e da eficácia das ações governamentais na promoção do bem-estar da população.

Ana Luiza Viana: Qual é a relação entre os desafios enfrentados pela educação pública no Brasil, a influência do mercado sobre as políticas públicas, e os impactos dessas questões no Sistema Único de Saúde (SUS) e na formação de profissionais de saúde?

Gastão Wagner: A situação atual da educação pública no Brasil reflete uma crise profunda, com a maioria das escolas de ensino médio e fundamental sendo públicas, mas encontrando-se em condições precárias. A realidade é alarmante: ambientes de aprendizado inadequados e uma significativa porcentagem de alunos que, após dois anos de estudo, ainda não possuem habilidades básicas de leitura, escrita ou matemática. Essa deficiência estende-se à formação cidadã, um vácuo que vem sendo preenchido pelos colégios cívico-militares, indicando uma tentativa de resposta a uma lacuna deixada pelo sistema educacional tradicional.

Este cenário insere-se em um contexto mais amplo em que a sociedade contemporânea parece não ter um projeto claro para conter a avidez do mercado. Se o sistema público apresenta vantagens, então deve-se limitar a influência do mercado sobre este, ao invés de incorporar a lógica mercantilista que acaba por deteriorar o planejamento e a governança, aumentando a fragmentação e diminuindo a eficácia das políticas públicas.

A situação do Sistema Único de Saúde (SUS) ilustra bem essa problemática. A metáfora do pão de queijo, que, apesar de ser uma tradição valorizada e apreciada, “escorre pelas mãos”, simboliza a dificuldade de manter o SUS fiel aos seus princípios originais em face das pressões por flexibilização e privatização. O movimento sanitário, outrora coeso em torno de uma visão de saúde pública inclusiva e equitativa, encontra-se agora fragmentado, com muitos gestores voltando-se para um modelo de gestão mais empresarial, distante das raízes do SUS.

A formação médica e de outros profissionais da saúde também reflete essas tensões, com a expansão das escolas privadas e a introdução de políticas de cotas buscando democratizar o acesso à educação superior. Embora essas mudanças possam trazer novas perspectivas e diversidade ao campo da saúde, elas também desafiam as tradições estabelecidas e demandam uma reflexão profunda sobre o futuro da saúde pública no Brasil.

A necessidade de uma campanha cultural e educacional persistente, que reitere os valores fundamentais do SUS e da educação pública, torna-se evidente. É crucial insistir na importância do planejamento, da avaliação e da humanização no atendimento à saúde, visando reverter a tendência de mercantilização e garantir que o SUS e a educação pública continuem a servir efetivamente a toda a sociedade brasileira, refletindo sua diversidade e suas necessidades.

Ana Luiza Viana: Como você avalia a evolução da relação entre social-democracia e mercado e suas implicações para a resistência enfrentada pelo SUS e pela Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, considerando que, nos anos 80, houve um esforço para reforçar o setor público? E diante das mudanças profundas na política e na sociedade, como a polarização política e o fim do neoliberalismo, como você vê a organização atual do Ministério da Saúde, especialmente a separação entre as Secretarias de Atenção Especializada e Atenção Primária, em termos de integração e fortalecimento da atenção primária?

Gastão Wagner: Nas outras regiões do mundo que defendem sistemas públicos de saúde, existe uma integração completa, caracterizada por um planejamento e regulação integral. No Reino Unido, por exemplo, o sistema de saúde envolve diversos níveis de cuidado no processo de planejamento, dando poder significativo à atenção primária. Isso inclui a capacidade dos hospitais de influenciar decisões, como a necessidade de expandir serviços para reduzir filas de espera, com o gestor tendo poder de veto imediato. Essa dinâmica reflete uma integração que ainda não conseguimos alcançar no Brasil. A fragmentação persiste, especialmente no nível do ministério, impedindo um planejamento integrado eficaz e a execução de um orçamento que abranja todas as necessidades regionais de saúde.

Defendo há anos a importância de as regiões poderem executar o orçamento de forma integrada, combinando recursos federais e estaduais para atender às necessidades específicas de cada região. Esse modelo permitiria enfrentar questões como a atenção primária e a urgência com mais eficiência, envolvendo ativamente ministério, secretarias e outros órgãos em discussões e supervisões. No entanto, a realidade atual se distancia dessa idealização, com a saúde mental, reabilitação física, hospitais e atenção primária operando de maneira desarticulada, refletindo a necessidade de uma política de redução de danos que recomponha a gestão pública e institua novas políticas de pessoal.

No contexto atual, os sistemas de saúde que funcionam bem ao redor do mundo adotam políticas públicas claras, ao contrário do Brasil, onde cada município, hospital, ou estado parece operar como uma torre de Babel, sem coordenação ou diretrizes comuns. Há uma necessidade de diretrizes gerais que englobem especificidades de cada área da saúde, desde a saúde mental até a reabilitação física e hospitais, incluindo aspectos de financiamento, formação médica e educação permanente.

A saúde é apontada como o principal problema do Brasil por uma parcela significativa da população, o que destaca a urgência de discussões para restaurar e relegitimar o SUS. O debate não deve ser pessimista, mas realista, reconhecendo os desafios e buscando soluções pragmáticas para melhorar a integração e eficácia do sistema de saúde público. A experiência de São Paulo, com sua vanguarda em políticas de saúde pública e coletiva, desde a atenção primária até o cuidado paliativo, oferece importantes lições e modelos que podem inspirar a renovação do SUS em nível nacional.

Expresso minha gratidão por São Paulo, onde minha carreira como sanitarista e professor de Saúde Coletiva foi construída e onde pude contribuir significativamente para a saúde pública. A riqueza de iniciativas e a institucionalização da saúde pública e coletiva em São Paulo, incluindo programas de humanização e cuidado paliativo, demonstram a capacidade de inovação e liderança do estado no setor.

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