Nesta entrevista, Rose Marie Inojosa, que atuou na Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), revisita momentos de sua trajetória e destaca o impacto do trabalho da instituição no fortalecimento do sistema de saúde em São Paulo na década de 1980. Envolvida diretamente nos projetos de descentralização e municipalização da saúde, Rose compartilha memórias afetivas e profissionais que mostram a relevância do trabalho conjunto com a Secretaria de Estado da Saúde e sua equipe, em um período marcado por transformações importantes nas políticas públicas de saúde.

Rose enfatiza a metodologia participativa aplicada pela Fundap, que aproximava gestores, técnicos e a base da população atendida. Esse trabalho de “pesquisação” foi um divisor de águas, permitindo que a saúde pública paulista avançasse com a criação dos  Escritórios Regionais de Saúde (ERSAs) e se tornasse um modelo para outros estados. A entrevistada lembra o compromisso das equipes em consolidar um sistema que se preparava para a municipalização, garantindo que as decisões tomadas no nível central chegassem de forma eficiente às cidades.

A entrevista também destaca o papel da Fundap no cenário mais amplo de políticas públicas, atuando não apenas na saúde, mas em áreas como educação e assistência social. Rose reflete sobre a liberdade técnica que os profissionais tinham para desenvolver projetos inovadores, algo que foi se perdendo com o tempo e resultou no gradual enfraquecimento da instituição. Ela ressalta o caráter multidisciplinar da equipe e a integração que a Fundap promoveu, tanto dentro do estado de São Paulo quanto em outras regiões do Brasil, levando boas práticas e aprendizados para diversas realidades locais.

Em uma nota pessoal, Rose compartilha o impacto transformador que essa experiência teve em sua vida, tanto profissional quanto pessoal. O contato com grandes nomes da saúde pública, a imersão no processo de reforma sanitária e o trabalho colaborativo com a Secretaria de Estado da Saúde foram fundamentais para sua formação. A trajetória descrita por ela é um testemunho valioso sobre como a cooperação entre gestores e instituições pode gerar avanços duradouros no sistema de saúde e preparar o terreno para o futuro Sistema Único de Saúde (SUS).

Nelson Ibañez: Pode contar um pouco sobre sua trajetória na área da saúde, especialmente na Fundap, e sua participação efetiva nesse processo?

Rose Inojosa: Muito obrigada por se lembrar de me convidar para essa conversa! Esse período tem um significado muito especial para mim, mais afetivo do que técnico. Eu trabalhava no planejamento e gestão da Fundap, mas ainda não estava diretamente envolvida no grupo da saúde. Acompanhava o trabalho que o Luciano Junqueira e a Carmen Lavras estavam desenvolvendo com a Ana Figueiredo.

Isso aconteceu por volta de 1983, e o Luciano estava articulando com o  Otávio Azevedo Mercadante para ampliar o trabalho na secretaria. Quando essa articulação se concretizou, foi que me integrei à equipe. Foi um divisor de águas na minha trajetória profissional, pois logo percebi que precisava aprender mais sobre saúde e decidi fazer o curso na Faculdade de Saúde Pública.

Nelson: Esse curso foi o de duração curta ou longa?

Rose: Fiz o curso longo.

Nelson: Sua formação básica é em comunicação social?

Rose: Sim, minha formação inicial é em comunicação social. Antes de conhecer vocês, e antes de ingressar na Fundap, eu fiz mestrado em Ciências da Comunicação, também na USP. Naquela época, meu foco era mais voltado para gestão e planejamento. Quando comecei a trabalhar com saúde, me apaixonei pela área e senti a necessidade de aprofundar meus estudos. Assim, entrei na especialização e, mais tarde, completei meu doutorado em Saúde Pública.

Trabalhei por mais de 20 anos em projetos de saúde. Inicialmente na Secretaria de Estado e depois em outros estados, como o Espírito Santo, mas com foco principal nos municípios. O trabalho da Fundap e nossa equipe, liderada pelo Luciano, teve um papel fundamental na municipalização da saúde.

Aquele período na Secretaria de Saúde foi um tempo de intenso aprendizado para mim, de estudos e aplicação do conhecimento em planejamento. A metodologia que adotávamos na Fundap foi muito marcante. Lembro-me claramente de muitas cenas desse período, e quando você mencionou, a primeira imagem que me veio à mente foi a de uma mesa que ocupamos por bastante tempo, quase que permanentemente.

Lembro com muita clareza daquele ambiente, quase como uma memória fotográfica. Aquele lugar onde nos encontrávamos para discutir e traçar os caminhos era praticamente permanente para nós. Tínhamos inúmeras reuniões com o Otávio Mercadante, que era o chefe de Gabinete do João Yunes, com você, Nelson, no Programa Metropolitano de Saúde (PMS), com o Marcos Ferraz, da Saúde Mental, o Gonçalo Vecina e a Ana Malik, da área hospitalar. A Ana Figueiredo também tinha um papel muito forte naquele momento e ajudou imensamente. Álvaro Escrivão também estava presente.

Aquelas cenas de reuniões repetidas vêm à minha mente. Na maioria das vezes, eu e o Luciano, pela Fundap, estávamos lá. Havia outras pessoas envolvidas, claro, mas éramos nós dois que participávamos diretamente das discussões com vocês. Nosso papel era ouvir, aprender com vocês e tentar entender de que maneira os instrumentos de trabalho que trazíamos poderiam auxiliar no processo de descentralização e na reorganização da Secretaria de Estado da Saúde.

Esse processo foi ganhando forma aos poucos, a partir da experiência e das reflexões de vocês. A saúde estava em plena ebulição, algo realmente cativante. Não era só na Universidade de São Paulo, mas havia todo o movimento da reforma da saúde e as propostas que surgiam das universidades. Aquilo era uma efervescência, uma movimentação que apontava para a criação do SUS, ainda que o sistema parecesse distante na época.

Claro, o SUS só se consolidaria mais tarde, na Constituição, e dois anos depois com sua regulamentação. Mas nesse meio tempo, houve o Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS) e outras iniciativas que pavimentaram o caminho. E a Secretaria de Estado da Saúde foi pioneira nesse processo todo.

Nelson: Vocês fizeram um contrato de apoio da Fundap à Secretaria e começaram com a pesquisação, não entrevistar, mas conversar com toda a estrutura da secretaria. O que te chamou a atenção nesse processo que a secretaria estava vivendo naqueles momentos de interação com os atores?

Rose: O que mais me chamou a atenção foi que era um processo extremamente vivo. As pessoas envolvidas na secretaria, especialmente aquelas no nível central, não compartilhavam exatamente a mesma visão sobre o futuro da saúde, mas todas elas tinham uma compreensão profunda do contexto brasileiro e, ao mesmo tempo, estavam abertas a olhar para experiências internacionais. Havia uma disposição muito clara de contribuir para uma mudança significativa.

Alguns estavam mais cautelosos, talvez defendendo uma descentralização mais gradual, enquanto outros eram mais ousados, vislumbrando uma municipalização que só viria muito depois. O que me impressionou foi a coesão teórica desse grupo, mesmo com diferenças de opinião. As discussões eram profundas, e havia um entendimento claro do que estava em jogo. Cada pessoa trazia consigo uma trajetória distinta, o que enriquecia o processo. Apesar das divergências, o grupo era unido na vontade de pensar junto e construir algo novo.

Claro, não foi um caminho sem percalços, mas a vibração desse momento era inegável. Para nós, da Fundap, que estávamos apoiando, foi extremamente estimulante participar desse processo. Não apenas por ser um momento especial na saúde, mas pela dedicação e envolvimento desse grupo que, com suas diferenças, estava decididamente comprometido em fazer o melhor. Foi nesse contexto que nasceu a ideia do ERSA. Não lembro de quem surgiu o nome, mas a ideia foi se consolidando aos poucos, costurada nesse ambiente de colaboração.

Nelson: Tinha o ERGs, Escritório Regional de Governo, que o Franco Montoro iniciou.

Rose: Nós, na Fundap, também estávamos envolvidos nesse processo do Escritório Regional de Governo. Tínhamos até um diretor, que já faleceu, mas que trabalhou muito com a gente nessa época. A Fundap tinha uma lógica muito parecida com a do ERG, o que tornou nosso trabalho junto à Secretaria mais fluido. Na Fundap, havia essa ideia de trabalhar em equipe, de fato. Os diretores atuavam lado a lado com os técnicos, e isso facilitava muito a nossa interação com vocês.

Nelson: A Fundap, nesse momento, congregava intelectuais e pessoas de muito alto gabarito. No fundo, a Fundap foi criada com um brilho nesse período. Quem eram os diretores desse período que você está falando? A Fundap tinha também um colegiado que discutia processos do Estado, quer dizer, apoio ao Estado.

Rose: O interessante é que nós tínhamos um colegiado de diretores que vinha de diferentes áreas. Havia um diretor da Universidade de São Paulo (USP), outro da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e todos tinham perfis técnicos e intelectuais. Eles não eram apenas burocratas, mas estavam realmente imersos nos processos e projetos do Estado. Isso tornava as discussões muito ricas, pois cada um trazia sua expertise e contribuía para que os projetos avançassem de maneira mais consistente e integrada.

Nelson: E discutiam com propriedade as coisas, mesmo não sendo da área…

Rose: Sim, exatamente. Nós éramos responsáveis por produzir, não apenas por gerenciar. Tínhamos uma dinâmica interna muito interessante, sem divisões rígidas. Nesse momento histórico, a Fundap não tinha uma estrutura hierárquica tradicional. Havia um colegiado de diretores e um corpo técnico. Entre nós, não havia degraus hierárquicos estabelecidos. Claro, algumas pessoas tinham mais experiência ou conhecimento em determinadas áreas, mas isso não implicava em uma posição de subdireção ou gerência, o que acabou acontecendo mais tarde, infelizmente, com a burocratização.

Nelson: Não havia uma estrutura, um organograma com hierarquia rígida. Era um matriciamento, certo?

Rose: Sim, e isso era extremamente saudável. Eu mesma trabalhava em outra área antes de ser chamada pelo Luciano para participar de um primeiro projeto na saúde, que ele já se dedicava bastante. A estrutura permitia que fôssemos coordenadores em um projeto e técnicos em outro, sempre trocando muito entre as áreas. Tínhamos especialistas em educação, gestão, meio ambiente, assistência social, e circulávamos por essas áreas, o que nos proporcionava um aprendizado enorme. Isso acabava refletindo no trabalho com nossos clientes, porque falávamos muito sobre desmanchar as “caixinhas” de estrutura rígida, algo que vivíamos na prática e sabíamos que funcionava bem.

Nelson: Era um processo criativo e inovador?

Rose: Sim, na saúde encontramos eco porque já havia uma discussão em andamento. Em comparação com outras áreas, a saúde já tinha uma abertura maior para a lógica de descentralização, embora ainda fosse um ambiente bastante centralizado e hierarquizado. O planejamento ficava sempre no topo, distante dos profissionais que operavam e entregavam o serviço à população. Isso era menos evidente na saúde, talvez por causa do perfil de vocês e do envolvimento com a reforma sanitária. Em outras áreas, a resistência era muito maior.

Nelson: Antes dessa reforma, o Walter Leser já tinha iniciado a descentralização com as regionais e distritos. A coordenadoria de saúde da comunidade era o centro dessa tradição no Estado de São Paulo. O desafio era como tornar essa descentralização mais efetiva e inovadora. Como você viu isso?

Rose: Esse processo foi impulsionado, especialmente pela Ana Figueiredo e sua equipe, que já tinham experiência em tentar aproximar a gestão da base. Enquanto outras áreas eram mais prudentes ou resistentes, a saúde se destacava pela busca por mais descentralização. O Programa Metropolitano de Saúde (PMS), também foi uma peça importante, e você, Nelson, já olhava para isso. Havia avanços, mas a prática ainda era muito centralizada, e enfrentávamos uma rede de serviços fragmentada. Os postos de saúde da prefeitura não se conectavam com os Centros de Saúde do Estado, e os hospitais operavam de forma isolada, sem interação com essas unidades.

Nelson: Não havia integração nem entre os Centros de Saúde, quanto mais entre a assistência hospitalar e especializada, que também operavam de forma compartimentada dentro da secretaria, certo?

Rose: Exatamente. Na base, eram mundos diferentes, e essa segmentação era refletida na própria estrutura da secretaria, apesar da boa vontade e entendimento das pessoas. Essa fragmentação ainda persiste, não apenas na saúde, mas em todas as áreas do governo, nas universidades e até nas empresas. O que vemos são “clausuras setoriais”, como diz Edgar Morran, onde as divisões de saber e as corporações se agarram a seus territórios, disputando recursos. Isso reforça a fragmentação para o cidadão, algo que, na saúde, começamos a enxergar muito cedo.

Embora não tenhamos superado completamente essa fragmentação, a saúde foi pioneira em reconhecê-la e liderar o movimento de municipalização no país. Na própria legislação dos ERSAs, já havia menção à municipalização como o caminho a seguir, algo que muitas áreas nem discutiam na época. A saúde demonstrou que era possível descentralizar e que isso era o futuro, mesmo quando o Estado ainda detinha muito poder sobre a operação dos serviços.

Nelson: Se você tivesse que destacar os principais conflitos, no sentido de propostas, quais foram os principais entraves que vocês identificaram e colocaram em discussão para avançar nesse processo de mudança na secretaria? Como vocês analisavam isso?

Rose: Acho que havia uma dissonância entre o que as pessoas acreditavam teoricamente e o que estavam dispostas a colocar em prática. A gente percebia uma dificuldade de pensar em como fazer essa transição sem perder a qualidade. Havia clareza entre vocês, os profissionais da área, sobre a necessidade de reorganização, mas ao mesmo tempo, a dúvida era como executar isso na prática sem deixar o controle escapar.

Esse foi um conflito comum: o desejo de mudança versus a realidade de implementá-la sem desandar. E é natural que, em um processo de mudança tão grande, o poder se dilua em outros níveis. A preocupação era exatamente essa.

A gente também notava a dificuldade em transformar essa teoria e experiência prática em ação real. Quando organizamos o ERSA em São João da Boa Vista, por exemplo, vimos de perto como funcionava no centro da secretaria e como os ERSAs realmente se organizavam. Cada um tinha seu ritmo e força, e isso variava muito.

O desafio maior para vocês, gestores, era a escolha das pessoas certas para esses ERSAs. Claro, nós podíamos ajudar com critérios, mas a decisão final dependia do conhecimento de quem estava na ponta. Isso foi um marco importante na transição.

A saúde passou por várias transições rápidas. Acabávamos de organizar os ERSAs e, logo em seguida, novas instituições e reformas surgiam. A reforma sanitária avançava e a municipalização já estava no horizonte. O Estado de São Paulo teve um diferencial, porque já tinha começado esse movimento de descentralização antes de outros estados.

Nelson: O processo que vocês vivenciaram de integração das coordenadorias, da assistência médica com a programação e do centro de saúde com a rede de serviços — quais foram os pilares que sustentaram isso? E quais resistências vocês sentiram? Houve resistência consciente ou inconsciente a essas mudanças?

Rose: Quando comparo São Paulo com outras Secretarias de Saúde, vejo uma diferença significativa. Em São Paulo, essa discussão já estava amadurecida, mas não sem conflitos. Havia uma proposta teórica sólida entre os dirigentes, mas a dificuldade estava em aplicar isso na prática, especialmente na descentralização.

A insegurança vinha da incerteza sobre como isso impactaria a secretaria e a entrega de serviços na base. As equipes de ERSA tinham visões diferentes, o que criava dúvidas sobre o resultado. As questões práticas eram: como integrar o hospital na base? Como a saúde mental se articularia de fato? Na base, muitos estavam focados em áreas específicas de entrega, o que tornava a integração um desafio.

Nelson: Os ERSAs se multiplicaram e com isso veio a preocupação com os quadros, os dirigentes e a formação dos profissionais. O movimento sanitarista e a Faculdade de Saúde Pública estavam formando pessoas para essas funções, com uma carreira em construção. Qual foi a influência dos recursos humanos na criação dos ERSAs? E como foram definidos os critérios para dirigir um ERSA? Vocês pensaram nisso de forma estruturada?

Rose: Lembro que discutimos isso bastante com vocês. Como seria feita a escolha dos dirigentes? Havia uma preocupação em garantir que as decisões não fossem meramente técnicas, mas também baseadas no que já se conhecia sobre a trajetória de cada pessoa. Um ponto positivo foi que o impacto da política partidária nas escolhas foi menor do que em outros lugares.

Em outros processos, o impacto das escolhas políticas era muito forte e às vezes prejudicava os critérios técnicos. Isso não foi o caso na secretaria. Embora sempre haja alguma influência política, natural em qualquer contexto, não percebemos que isso comprometia a qualidade das decisões técnicas.

Nelson: Havia uma frente de partidos como o MDB e o início da criação do PT. Esses partidos interferiram politicamente, tanto no interior quanto na capital?

Rose: Houve uma interferência ideológica, naturalmente, porque o governo tinha suas diretrizes políticas. Porém, essa interferência não comprometeu os critérios técnicos de forma significativa. Percebíamos que as escolhas eram coerentes com o que se esperava tecnicamente, embora, claro, fosse um grupo grande, com alguma diversidade nas formas de caminhar.

São Paulo é um Estado muito diverso, com várias carências e riquezas, além de diferentes ideologias e maneiras de enfrentar problemas sociais. Isso teve impacto nas escolhas, mas o foco sempre foi em garantir que as pessoas pudessem levar a descentralização adiante com consistência, mesmo considerando as diferenças regionais.

No entanto, enquanto os ERSAs estavam ainda se consolidando como atores locais, o processo de municipalização já avançava. O SUDS e o movimento de Reforma Sanitária começaram a se misturar com as ações dos ERSAs. E aí surgiu o mesmo dilema: o desejo de avançar para a municipalização, que era o ideal da Reforma, e, ao mesmo tempo, a preocupação com a possível perda de controle técnico e da qualidade dos serviços.

Nelson: Isso mesmo, antes das Normas Operacionais Básicas (NOBS), as experiências municipais começaram a emergir dentro desse cenário regional. As prefeituras desenvolveram suas próprias iniciativas de integração e havia também um movimento de baixo para cima. Você acha que os instrumentos de financiamento foram discutidos? Como o repasse de recursos da Previdência, através das AIS, e o avanço para consolidar um sistema descentralizado, como o SUDS. Como foi o debate sobre financiamento, contratação de pessoal, expansão de recursos e aumento da demanda?

Rose: A questão do financiamento sempre foi um grande impasse, especialmente na saúde, onde os recursos são curtos para todas as demandas. A necessidade de fragmentar o orçamento para atender a diferentes áreas sociais era constante, e isso gerava preocupações no nível central.

Quando começamos a ver o desmantelamento do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), a secretaria enfrentou o desafio de assumir equipamentos e estruturas complexas. Ao mesmo tempo, após o trabalho mais abrangente que realizamos com vocês, a Fundap voltou seu foco para a municipalização. Trabalhamos em várias cidades, como Diadema, Santos, Penápolis e Porto Alegre, apoiando esses municípios na organização de seus sistemas de saúde.

Nelson: A Fundap então atuou unindo o nível central da secretaria, colaborando com o Inamps e oferecendo apoio aos municípios. Como foi essa linha de atuação?

Rose: Foi quase simultâneo. E a grande vantagem era termos os ERSAs no estado de São Paulo. Em outros estados, esse trabalho foi mais desafiador. A linha direta de apoio aos municípios foi muito interessante, principalmente ao compararmos cidades de São Paulo com diferentes níveis de organização, como Santos e Diadema, que já tinham uma estrutura mais consolidada, e outros lugares menores e mais distantes dos escritórios regionais.

Nelson: Então, foi uma linha direta de apoio ao município.

Rose: Exatamente. Essa linha direta nos permitiu observar diferentes cenários: em alguns locais, já havia parcerias bem estabelecidas, enquanto em outros, ainda havia certa disputa ou distanciamento. Isso refletia a realidade da organização do estado e como cada região estava trilhando seu caminho na descentralização da saúde. E o que ficou claro para nós, ao longo desse processo, é que o trabalho da Secretaria de Estado da Saúde foi fundamental para o avanço da reforma sanitária, apesar dos desafios. O desmantelamento do Inamps, por exemplo, trouxe a expectativa de que os recursos viriam para os estados e municípios, mas isso só aconteceu parcialmente.

Nelson: Você mencionou vários municípios que receberam assessoria, como Penápolis, Santos e Campinas. No processo de municipalização, a política partidária dos prefeitos teve influência nas decisões?

Rose: Com certeza. A política partidária, especialmente no âmbito municipal, influenciava muito. Inclusive, na própria escolha pela Fundap. Se observarmos os municípios que atendemos, como Penápolis e Santos, eram locais com prefeitos mais à esquerda, menos conservadores. Havia uma afinidade de visão entre a equipe da Fundap e a gestão municipal, o que facilitava a concretização de contratos de assessoria. Embora a Fundap fosse uma instituição que trabalhava com diversas áreas e sem restrição partidária, os prefeitos que procuravam consultoria tendiam a buscar afinidade ideológica. Isso influenciou muito o trabalho que desenvolvemos junto à Secretaria Estadual de Saúde (SES), aos municípios e até ao Inamps. Afinal, ao trabalharmos para a reorganização do sistema, muitas vezes éramos vistos como “inimigos” por estarmos, de certa forma, desmantelando o Inamps.

Nelson: Quando o Pinotti substituiu a gestão Quércia, vocês continuaram com o apoio à secretaria ou houve uma ruptura no nível central? A gestão dos ERSAs já havia sido feita, mas houve uma reorientação. Vocês foram chamados para apoiar esse novo processo?

Rose: Não, houve apenas algo muito pontual. Na verdade, o nosso trabalho com o Inamps não era com as diretorias regionais ou estaduais, mas no nível central, ajudando na viabilização da descentralização que eles tinham decidido. Era um desafio muito grande. Acho que foi durante a gestão do Hésio Cordeiro, se não me falha a memória, porque o Guedes ainda não estava no comando do Inamps.

Nelson: Além da municipalização, em que outros apoios vocês foram solicitados a trabalhar na área da saúde? E sobre os municípios, especificamente no ERSA de São João da Boa Vista, como funcionou esse apoio?

Rose: Penso que o processo de contratação foi conduzido pela secretaria, mas quem procurou inicialmente foi o próprio ERSA. Houve dois contratos em São João da Boa Vista, um com o ERSA e outro com a área de assistência, onde discutimos um projeto muito interessante chamado Rede Adolescente Interações pela Vida, que visava a promoção social dos adolescentes. Não me lembro ao certo como foi o processo do contrato, mas era um trabalho específico, não um contrato guarda-chuva.

Nelson: A Fundap fazia relatórios detalhados? Ou era mais uma pesquisação? Como era a dinâmica de entrega de documentos?

Rose: Sim, fazíamos muitos relatórios detalhados. Isso fazia parte do perfil da equipe, especialmente do Luciano e meu. Produzíamos relatórios para vocês e para acompanhamento interno. Registrávamos cada passo da consultoria. Não sei se todo esse material foi arquivado pelo Estado, mas me lembro de que produzimos uma grande quantidade de documentação. Infelizmente, não tenho mais esses relatórios comigo. Talvez o Luciano tenha guardado. Posso verificar.

Nelson: O arquivo da Fundap foi para o arquivo do estado, não foi?

Rose: Sim, foi para o arquivo do Estado. Mas eu não sei ao certo se todo o material foi enviado, porque realmente era muita coisa. Naquele momento, a Fundap tinha uma preocupação enorme com o aprendizado contínuo. Cada projeto que fazíamos era amplamente discutido para que pudéssemos refletir sobre o que deu certo e o que precisava ser melhorado. Esse processo resultava em muitos documentos e relatórios. Além disso, tínhamos seminários internos onde discutíamos esses aprendizados, o que nos ajudava a criar um acervo robusto de registros e conhecimentos.

Nelson: Deixa-me falar, como é que você avalia o papel da Fundap no desenvolvimento dessas inovações da política pública nesse período? Como é que você vê a importância que a Fundap teve nesse processo?

Rose: Avaliar o papel da Fundap no desenvolvimento das inovações de políticas públicas naquele período envolve tanto uma análise técnica quanto emocional. A Fundap era composta por dois grandes grupos de pessoas: um grupo mais focado na gestão, planejamento e orçamento, e outro voltado para as áreas sociais, como educação, saúde e assistência social. Embora não houvesse uma divisão rígida entre essas áreas, o perfil das pessoas acabava naturalmente definindo suas atuações. O grupo social, onde eu me inseria, se dedicava de maneira muito intensa às áreas de educação, saúde e assistência social — essa última, na época, ainda não era vista como promoção social.

Na Fundap, aplicávamos uma metodologia participativa, especialmente nas áreas sociais. Isso significava trabalhar junto com os gestores, ouvir o cliente que, muitas vezes, tinha o maior domínio sobre os problemas que enfrentava. Acho que a área social foi onde essa metodologia participativa encontrou seu espaço de maneira mais ampla. Já nas áreas de gestão, que lidavam com modelos e orçamento, a dinâmica era um pouco diferente, mais estruturada e com menos interação direta. A Fundap, em geral, se envolvia muito nos projetos de estado, especialmente nesse período de grande efervescência política e administrativa.

O que era interessante naquele tempo era a liberdade de ação que o corpo técnico da Fundap tinha. Nós, técnicos, procurávamos os projetos diretamente nas secretarias, nos aproximávamos dos gestores e desenvolvíamos as propostas. Somente depois desse contato inicial é que levávamos as ideias para a diretoria da Fundap. Havia um movimento de baixo para cima, que criava um ambiente muito propício para a inovação. Isso, mais tarde, foi reduzido, quando passou a ser exigido que os projetos fossem aprovados inicialmente pela diretoria. Essa mudança afastou a Fundap da vida prática das secretarias e do governo em geral.

Outro ponto importante foi o intercâmbio de experiências com outros estados. Inicialmente, a Fundap tinha permissão para trabalhar em várias regiões do Brasil, o que nos proporcionou uma visão ampla das diferentes realidades locais. Esse contato com estados como o Espírito Santo, o Ceará e o Sul do Brasil permitiram uma troca de aprendizados muito rica. O que aprendíamos em São Paulo, levávamos para outros estados, e vice-versa. Isso ampliava nosso entendimento e nos ajudava a desenvolver soluções mais ajustadas às necessidades de cada localidade.

Mas, com o tempo, essa abertura também foi limitada, e nos foi proibido trabalhar fora do Estado de São Paulo. Isso, infelizmente, enfraqueceu a capacidade da Fundap de expandir e diversificar sua atuação, e acabou afastando a instituição da realidade prática das diferentes regiões do Brasil, algo que foi muito enriquecedor durante os períodos em que isso era permitido.

Nelson: A inteligência da Fundap era, claro, baseada em São Paulo, mas também tinha um aspecto emocional, certo?

Rose: Sim, exatamente. Era um aprendizado conjunto, uma “passeação” pelos diferentes lugares, aprendendo com as experiências locais. Quando isso acabou, quando a Fundap foi encurralada e perdeu a liberdade de atuar em diferentes estados e setores, perdeu sua essência. A instituição foi encolhendo até acabar, porque sem essa dinâmica de troca e aprendizado, realmente não fazia mais sentido. Foi uma pena ver isso acontecer.

Nelson: Você mencionou algumas pessoas da equipe que participaram desse processo. Quem eram essas pessoas e como contribuíram para o trabalho na saúde?

Rose: Além de mim e do Luciano, tínhamos pessoas muito competentes. Sueli Comaxo, formada na FGV, foi uma colaboradora muito ativa. Sandra Inês Baralho Granja também se apaixonou pela área da saúde e participou intensamente. Maria Josefa Kiparelli fazia parte da equipe, além disso, contratávamos consultores para nos apoiar em projetos específicos. Muitos deles vinham da própria secretaria de saúde, como o Tanaka, o Gonçalo, você e a Ana. Era uma equipe robusta, e cada um trazia uma contribuição essencial para os projetos.

Gostaria de expressar meu profundo agradecimento à área de saúde e, especialmente, a vocês, pela equipe que formaram. O impacto desse grupo na minha vida profissional e pessoal foi imenso. A partir do trabalho com vocês, eu realmente direcionei meu foco para a saúde, tanto no aprendizado quanto na atuação. Foi um processo transformador e extraordinário para mim. Embora tenha me envolvido em outras áreas mais tarde, esse período foi extremamente importante e gostaria de deixar isso registrado aqui.

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